A Madrugada em que o Curral Aqueceu o Mundo (Ricardo de Faria Barros)


Meu nome é Ricardo.

Sou o caseiro do curral numa pequena cidade da Cisjordânia. Minha lida começa às quatro da manhã, quando ainda é noite fechada. Cuido de seis vacas. Tiro o leite duas vezes ao dia, alimento, levo para o pasto, limpo o curral e faço queijo. Cada vaca produz quinze litros por dia. Consigo fazer nove queijos. Cinco ficam com o patrão. Quatro comigo. É com eles que sustento minha família.

Naquela madrugada eu fui trabalhar a contragosto.
Não queria ir. Minha filha Sofia, de dois anos, estava doente, chorando de dor no ouvido. Mas eu precisava dos quatro queijos. Era isso ou nada. Era isso ou faltar comida em casa.

Caminhei os dez quilômetros até a terra do senhor Enoque. Dezembro é o mês mais seco da região. Falta água, o pasto some, o corpo pesa mais. Quando cheguei, fui direto à cozinha preparar o café. Era quatro da manhã. Assim que o cheiro do café invadiu a casa, Enoque se levantou e veio me cumprimentar, com o rosto cansado.

Disse que dormira mal. Que perto da meia-noite alguém batera à sua porta pedindo abrigo. Eram retirantes. Um casal jovem. Disse que não abriu a casa. Que não conhecia aquelas pessoas. Que o quarto de casal estava fechado desde que sua esposa morrera. Preferiu dormir no outro quarto e apontou para o curral:
; Se quiserem se abrigar do frio, que durmam lá. Juntem as palhas de milho.

Disse ainda que a moça era muito jovem e carregava um barrigão.

Tomei o café às pressas e fui iniciar a ordenha. Mas algo me inquietava. Pensei na minha filha doente. No quanto a gente se sente órfão quando um filho sofre. Peguei uma garrafa de café, alguns restos de pão que trazia na bolsa e fui até o curral.

Quando entrei, vi uma cena que nunca mais saiu de mim.

O marido ninava a esposa nos braços, tentando protegê-la do frio. Um bebê dormia no cocho da vaca Estrela. E Estrela, que era vaca parida e costumava ficar brava quando alguém se aproximava de seu bezerro, estava mansa. Deitada ao lado do recém-nascido, como quem vigia. Como quem cuida.

Me aproximei devagar. Me apresentei. Servi o pão e o café. Eles agradeceram com olhos cansados e cheios de gratidão. Contaram que iam para a casa de parentes em Belém, mas a gravidez não esperou. Disseram que bateram em mais de vinte portas. Ninguém os acolheu. Um ameaçou soltar os cachorros. Outro chamou de vagabundos. Um terceiro os confundiu com ladrões.

Contei que minha menina estava doente, chorando de dor, e que mesmo assim eu tinha vindo trabalhar porque precisava do que ganho. Quando falei em queijo, os olhos deles brilharam. Lembrei que tinha queijo feito da véspera. Fui buscar. Parti dois talhos e entreguei ao casal.

O senhor Enoque observava tudo de longe, da janela. Não saiu. Dava ordens à distância, como quem teme se aproximar do que não entende.

O bebê acordou.
E então aconteceu algo que nunca vi.

A vaca Estrela se ajoelhou diante dele. Não era espreguiçar. Era ajoelhar. O bezerro fez o mesmo. As outras cinco vacas, que ainda estavam no pasto, vieram sozinhas, sem eu chamar, e formaram um círculo ao redor da mãe, do pai e do bebê. O calor dos corpos aqueceu o curral. O frio cedeu. Maria pôde abrir os panos e mostrar o menino.

Era um bebê tão belo que parecia que as vacas sorriam.

Tirei um pouco do colostro de Estrela e ofereci a Maria. Disse que fazia bem. Que tinha força. Ela pingou na boca do bebê, que lambia os beiços de gosto. Estrela parecia saber que aquele primeiro alimento também era dela. Depois, Maria encostou o menino ao peito para amamentar.

Chamei o marido para tomar café mais afastado, para deixá-la à vontade. O nome dele era José. Falava coisas difíceis de entender. Dizia que o filho não era dele, mas era. Que um Espírito tinha feito. Que ninguém podia saber, porque ninguém entenderia.

Mas eu entendi.

Depois de tanto peregrinar pela vida, aos meus sessenta e um anos, aprendi que nem tudo se explica com um mais um. Como explicar que do mesmo leite um queijo vinga e outro talha? Que da mesma vaca uma dá dez litros e outra não dá nem um? Como explicar o sol que acorda a vida e a lua que embala os sonhos? Como explicar a dor no coração quando um filho sofre, se não é no nosso corpo que dói?

Disse a José que acreditava nele. Que o Espírito seria sempre seu melhor companheiro, porque cuidava do seu filho. Ele sorriu aliviado, como quem finalmente pode respirar.

Maria me deu um pequeno saquinho com um unguento. Mandou passar no ouvido da minha filha. Mas eu não podia sair: tinha seis vacas para ordenhar. José se ofereceu para fazer isso por mim. Disse que era marceneiro, mas aprendera a tirar leite com um amigo. Confiei.

Corri para casa. Sofia chorava. Passei o unguento no ouvido dela. Na mesma hora, o choro cessou. Ela sorriu. Algo se acalmou no mundo. Meu filho Lucas, que insiste que será médico, trouxe uma papa de leite e farinha. Sofia comeu com vontade. Ficamos cheios de amor e esperança.

Então bateram à porta.

Três homens, montados em camelos, estrangeiros e diferentes de tudo que eu conhecia. Perguntaram se eu sabia de um bebê nascido pela região. Convidei-os a descer, tomar café, leite, comer queijo. Antes de irmos, deixaram presentes para meus filhos. Nunca tínhamos recebido presentes.

Uma boneca para Sofia.
Uma lamparina para Lucas.
Uma caixinha de música para Mateus.

Um deles estava ferido de tanto viajar. Passei o unguento. Ele voltou cantando, dizendo que as feridas tinham sarado.

Antes de retornar ao curral, decidi que não iria sozinho.

Disse aos meus filhos que aquele não era um dia comum. Que precisavam conhecer aquele casal, aquele bebê, aquele mistério vivo. Cada menino subiu em um camelo. Sofia veio comigo, sentada entre meus braços e o corpo quente de Baltazar, o dono do camelo ferido; agora curado.

Levei dois presentes.

Para Maria, um colar de fuxico que minha esposa fizera em noites silenciosas, costurando pano sobre pano como quem remenda o próprio cansaço. Um agradecimento simples pelo bebê que ela gerou e pariu em meio à rejeição do mundo.

Para José, levei um machadinho que ganhei de meu pai. Nunca usei. Guardei por anos sem saber por quê. Naquela manhã, soube. Seria útil ao marceneiro. Herança em mãos certas.

No curral, meus filhos ajudaram, brincaram, riram. As vacas deixaram. O bebê dormiu, acordou, sorriu. Sofia encostou a cabeça perto dele, como quem reconhece um igual. O dia passou sem pressa, como se o tempo tivesse aprendido outra medida.

E o senhor Enoque continuou na janela.

Não por falta de pernas, mas por excesso de pesos.
Pesos antigos.
Pesos não chorados.

Enoque não era mau. Era enlutado. E há lutos que, quando não são atravessados, apodrecem por dentro e viram amargura. O quarto fechado da esposa morta não guardava apenas a memória dela; guardava a vida que ele interrompeu junto. Desde então, passou a viver em trincheira, sempre em defesa, sempre desconfiado, sempre pronto para perder antes de tentar.

Acumulava terra, gado e silêncio.
Acumulava razão, medo e ressentimento.
Mas não acumulava vínculos.

Um coração fechado vai ficando pequeno.
Tudo vira ameaça.
Gente vira risco.
Pedido vira invasão.
Partilha vira prejuízo.

Enoque vivia de mal com o mundo porque, no fundo, estava em guerra com a vida. Uma guerra silenciosa contra qualquer possibilidade de recomeço. Ele via o outro sempre como alguém que poderia tirar algo; nunca como alguém que pudesse trazer sentido.

Enquanto o curral florescia em calor, cuidado e milagre, a casa permanecia fria, organizada, correta… e estéril. Onde não se partilha, nada floresce. Onde tudo se guarda, a alma endurece.

Ele viu tudo.
Mas não se permitiu.

E é assim com muitos de nós.

Vemos a dor do outro, mas seguimos da janela.
Vemos o sagrado acontecer na simplicidade, mas preferimos o isolamento.
Temos pão, teto e histórias; mas não abrimos.

Naquela madrugada, o mundo teve duas moradas:
uma casa fechada, segura e silenciosa;
e um curral improvisado, sujo de palha, mas cheio de vida, calor e esperança.

O Natal não entrou na casa de Enoque.
Passou pela janela.
E seguiu adiante.

Porque o Natal não força portas.
Ele nasce onde o coração se abre,
onde a dor não vira desculpa para a indiferença,
e onde alguém, mesmo cansado, mesmo pobre, mesmo ferido, ainda consegue repartir o pouco que tem;
permitindo que a vida floresça outra vez.

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