A Generosidade da Marcela

 


Enquanto dirigia para a roça, os pensamentos faziam caracóis em minha alma, do tipo cinzentos e sem vigor.

Eu fazia contas do que ainda precisava investir, para que a construção se desse por acabada.  Lembrei de uma frase de meu pai: “obra nunca acaba”. E ele estava certo, uma coisa vai puxando a outra, vamos nos empolgando, e o saldo bancário vai ficando raquítico.

Entrando na BR 060, sentido Brasília-Goiânia, vejo um belo arco-íris à minha frente. Daqueles de tirar o fôlego de tão belo. Como o trânsito estava carregado, e chovia, pude ir contemplando aquele presente de Deus por um bom tempo. Senti o calor de generosidade vindo da natureza e aquecendo meu ser.

Os pensamentos cinzentos foram se dissipando, e uma tênue luz em minha alma acendeu. Suficiente para direcionar meus pensamentos para as coisas boas e belas da vida, guardando por hora, numa gavetinha de preocupações, a questão da obra.

Já fazia planos de olha r perua que tava chocando uma ninhada. De averiguar se as pitayas tinhas segurado, após a floração, e se o machucado no vira-lata Pirata, fruto de uma briga com o labrador Nino, tinha sarado.

Entrando em Santo Antônio do Descoberto-GO, paro numa padaria de esquina, que é um de meus points de café madrugueiro, em direção à chácara.

Peço dois pães na chapa, e com ovo, e pra viagem. Pois que gosto de tomar café com o Júnior, o caseiro, quando chego por lá.

E um café pra tomar ali mesmo, enquanto espero os pães ficarem prontos.

Eis que me aborda um senhor com a sua filha de uns 13 anos. Ele tinha um capacete numa das mãos, na outra segurava sua filha, que estava com fardamento infantil. Ele me pergunta se eu estou de carro e se eu poderia leva-lo com a filha no Colégio, pois que a moto dele arriou a bateria, e não pegava de jeito algum, na saída da padaria.

Falei que lógico que sim, e pedi que a moça me desse a conta, para eu adiantar o pagamento para não os atrasar mais ainda.

Tudo resolvido me aproximo deles e chamo para a carona. Aí ele me mostra que está com uma chave de um carro. E que levará a filha na escola e voltará pra entregar o carro, e resolver a moto. E que é o carro da atendente que nos servia, que ouviu a história dele, e que se compadeceu, emprestando generosamente o carro dela.

Ele partiu com a filhota e eu não conseguia partir.

Fiquei um bom tempo dentro de meu carro, degustando aquela cena que acabara de testemunhar. De imensa generosidade para com o próximo.

No outro dia, parando novamente, eu a abordei e perguntei-lhe o seu nome. Ela se chama Marcela. E eu reconheci o gesto dela de emprestar o carro, ao que ela me respondeu, com humildade e um sorriso discreto, “Não foi nada não, ele é um cliente daqui...”

Fiquei me perguntando em quantos estabelecimentos que sou cliente, se eu precisasse de um carro, qual atendente, ou proprietário, me cederia seu veículo.

Não, Marcela!

O que tu fizeste foi muito mais do que um “foi nada não”.

Tu foste generosa sem medir as consequências de teu ato. Sem fazer uma análise de riscos. Sem temer algo que pudesse ocorrer no caminho, e te prejudicar.

Apenas tu agiste. Seguindo o arco-íris de teu coração, tu transformaste o dia daquele pai e filha. E tornou o mundo melhor com a tua presença.

Precisamos de Marcelas no mundo. Precisamos Marcelar a vida vez por outra, e tornar a ser bom, generoso e gentil. Fazer algo que surpreenda alguém, sem antever algum lucro, ou vantagem com o gesto. Só pela simples alegria de servir.

Estamos ficando tão apegados ao material, cheios de individualidades, que abrir em nossas agendas pessoais espaço para generosidade vai rareando.

E precisamos dela. A coletividade precisa de generosidades. Eu preciso. Tu precisas.

Quem recebe algo de forma generosa fica mais forte para enfrentar as dificuldades da vida. Que faz um ato generoso melhora a fluidez emocional positiva, fica mais são, mentalmente falando

E se estabelece uma corrente do bem. Quem recebe generosidade quer doar generosidade. E todos vão ganhando.

Num sistema no qual as pessoas vão sendo confundidas com objetos de produção, é revolucionário dizer não, e ousar semear generosidades vadias, pelo nosso caminhar. É um ato de coragem, neste mundo tão egoísta, ser generoso e partilhar. 

Sofia, vamos ver o sol nascer! (Por Ricardo de Faria Barros)

 


Sentei-me na varanda da casa de meus pais, contemplando os belos tons de um pôr do sol. Contudo, nada obstante a paz do entardecer, tudo naquele instante me soava um tanto estranho. Como se fora uma primeira vez.

É que a nossa casa, outrora tão barulhenta, e com uma profusão de familiares e amigos que a frequentavam, agora fazia reverência ao silêncio.

A vizinhança também contribuía, com lacunas de sons que falam, ou que faltam, presentes na partitura do tempo, de um tempo que sabe compor saudades, inclusive daquilo que não chegamos a ser.

Em cada recanto daquele terraço, havia um pedaço de papai, ouvindo nossas histórias. De Guia, chegando de um mandado, e sempre a sorrir; e de Celina, convidando-nos para irmos logo para a cozinha, jantar. Ao que fingia que ficava brava, quando pedíamos só mais um tira-gosto. E não tem mais a Mel, a se enroscar em nossas pernas, pedindo um carinho, um dengo.

No infinito, badalavam os acordes do sino do Mosteiro das Clarissas, celebrando as 18h, e irrompendo os sons do silêncio com aquela melodia afetiva: “bem, bem, bem, bem, bem, bem!

A luz do poste se acendeu, como quem quer acordar os interiores de alma, para que iluminadas possam acolher, com serenidade, o fluxo do rio de suas histórias.

Mirei os olhos na mureta, de acesso da calçada para a varanda, e lembrei-me de que meus filhos nelas se sentavam, e sobre aquele gramado brincavam.

Quantas fotos registrei deles ali, naquele cantinho de tanta harmonia!

Na sala de visitas, mamãe adentra, falando alto ao celular.

Ela proseava com a tia Darcy, que mora em SP.

Logo depois, mamãe adentrou à varanda, para contar-me as novidades da tia. E a maior delas era que tia Darcy tinha encontrado uma carta de vovó, escrita para ela há muito tenpo, e que a carta era muito significativa e cheia de bons afetos. 

Quis o mistério do tempo que aquela carta ficasse perdida, em meio a importantes documentos, daqueles que sempre carregamos conosco, tipo escrituras e assemelhados, e que ao revirá-los ela foi encontrada.

Foi como se minha tia recebesse um afago do tempo, ao ter acesso à tão precioso registro, que em condições normais, crise à crise, mudança à mudança, migração à migração, teria sido extraviado. Como tantos que um dia guardamos, um dia esquecemos, um dia perdemos...

Lembrei do que falei pra minha neta, a Sofia (1 ano), sobre o nascer do sol que ela estava vendo.

“Sofia, quer você queira, quer não queira, ele irá nascer. E no final do dia ele vai se recolher, dando espaço para que a noite comece o seu próprio acontecer. Então, neta amada, aproveite o dia, pois ele passará”.

Acho que ela não entendeu muita coisa. Mas, foi mais ou menos assim que falei pra ela.

O que eu quis dizer é que a vida segue sua jornada. O sol nasce, se põe... e mais um dia nos ocorreu.

O que vai de fato diferenciar, um dia do outro, um nascer-pôr do sol, não são as condições climáticas. Mas, o que naquele dia fizemos para eternizá-lo.

Como a carta da vovó para Tia Darcy.

Como o carinho de minha mãe ao caprichar, numa de minhas jantas, com um bode com farinha, mesmo que a Fátima dissesse a ela que não sabia preparar bode. E ficou divino.

Como meu tio Ednaldo, ajudando a tia Cléo a preparar uma Traíra, com o que ele sabia fazer, que era martelar o dorso do peixe para cortá-lo em postas.

Como a Celina que nos espera amanhã em Alcantil, para um dedo de prosa e um almoço daqueles...

Como a Guia que aceitou ficar com a nossa querida Mel, uma cachorrinha dócil e amiga.

Percebem que são nossas pequenas atitudes, ao longo de um dia, o que vai dando sentido à vida, e com o qual ela vai sendo preenchida, e nas esquinas do futuro será lembrada?

E, por falar em sol, a única coisa que diferenciará um dia do outro, na composição das melodias de nosso viver, e o que faremos com o nosso sol interior.

A quem iluminaremos, com a nossa presença no mundo, com gestos e atitudes concretas?

Por quem nos deixaremos ser iluminados, aquelas pessoas que nos fazem sentir parte de uma Constelação quando estão em nosso convívio?

A quem aqueceremos com amor, ternura, respeito, paz e compreensão?

Quem deixaremos que nos aqueça, tirando-nos do útero da solidão?

Não é apenas um bolo. É redenção, superação, reinvenção... (Por Ricardo de Faria Barros)




Entrei na cozinha da Girlane e ela estava animada. Dançando ao som dos Aviões do Forró, enquanto mexia algo no fogão.
Cheguei mais de perto e vi que eram bananas, que eram fritas na manteiga, e em seguida polvilhadas com canela.
E aquele cheiro gostoso enebriava o ar daquela cozinha. Que junto à música e à alegria genuína da Girlane, criavam uma atmosfera de acolhimento e paz. Adoro cozinhas. Creio que elas são a morada do afeto, lugar de encontros, diálogos e de muita amorosidade. Quando alguém te chamar para a cozinha da casa, pode ter certeza de que tu és especial para esta pessoa.
Voltando à animação era que era que tinham aparecido mais dois pedidos de bolos de banana, um para as 17h, e outro para as 19h, numa semana em que as vendas estavam fraquíssimas. E que as bananas, previamente compradas da Marcilene, iriam estragar sem serem usadas.
Salivando, lembrei-me do meu primeiro bolo que comi, vindo da Girlane Bolos. Foi um presente que meu filho mandou pra minha mãe, no Dia das Mães. E eu estava em Campina Grande-PB, com minha mãe, e pude saborear aquele manjar, ao lado dela.
Tem preço isso?
Não sou muito de comer doce, mas aquele bolo me conquistou. Na verdade, aquilo lá não é um bolo, é uma torta de banana que junto ao leite moça, farinha de trigo, ovos e outros produtos (que ela não revela nem a pau) a tornam uma iguaria. Daquelas de se comer ajoelhado, agradecendo a Deus.
Na cozinha, a dancinha de forró continuava, e tome bananas na frigideira! Cada torta leva uma “palma” de bananas, algo em torno de 12 bananas. E, após botar montar as bananas na forma, junto com os demais ingredientes, numa montagem que por si só daria uma crônica, ela o coloca no forno, para em 30 minutos ficar pronta.

Voltando para onde eu estava, de seus olhos saem orvalhos marejados. Que ela tenta disfarçar.
Pergunto-lhe o que ocorre, por que ela está emocionada?
Aí ela me conta que eram lágrimas de felicidade, porque aquele bolo-torta de banana era sua redenção. Era sinal de esperança em sua vida e da bondade de Deus.
Como adoro uma história, fui fuçando para saber um pouco mais.
Não sei você, que me lê, mas eu adoro uma memória afetiva de alguma comida. Adoro saber sua história e o que está por trás da vida de quem a produz.
Não sem razão meus olhos brilharam no Globo Rural de hoje, dia 16/10/2022, ao ver a história dos produtores do queijo da Canastra, uma região de Minas Gerais.

Girlane me contou que quando se separou, em 2020, ela perdeu tudo que tinha, pois que foi uma separação litigiosa, e como ela trabalhava para o ex-marido, além de ficar desempregada, ainda ficou com os bens, objeto da partilha, bloqueados para venda, pois que estão, ainda hoje, sub judicie. Aguardando a decisão judicial.
Então, de um dia pra outro, ela se viu sem eira e nem beira, como dizemos por aqui no Centro-Oeste. Ou seja, falida e mal paga! E com uma filha pra alimentar e criar, além dela mesma.
Aí teve a ideia, estimulada pela filha Mariana, de fazer uma receita de bolo-torta de banana que recebeu da professora Fátima, da escola Municipal Luiz J. Avelino, no bairro do Jeremias, em Campina Grande-PB. Girlane já houvera trabalhado lá, como Secretaria. E ela tinha guardada a receita.

Mas, e com que dinheiro compraria o material necessário para começar? As formas de bolo, a frigideira, a batedeira, e os insumos? Pois que o ex-marido rapou tudo que tinha na casa, como forma de puni-la por ter querido a separação?
Aí apareceu a anja da guarda Patrícia, uma de suas melhores amigas, aposentada do Banco Itaú, que sensibilizada pelo desfecho horrível que o divórcio tomara, a emprestou-deu R$ 500,00 reais, para pagamento um dia qualquer, num futuro distante. Sem juros nem pressa.
Fico aqui marejando a alma com este gesto da amiga Patrícia. Que não a deixou só, naquele momento tão difícil, que só quem já se separou sabe de onde falo.
Patrícia teve muita sororidade, que é a empatia entre mulheres.
Então, com aqueles recursos ela foi no Atacadão fazer as compras dos recursos que seriam necessários.
Mariana, sua filhota, que à época tinha 23 anos, foi a maior incentivadora. Não deixou a mãe ficar desanimada, nenhum minuto sequer. Não soltou a mão da mãe.
E, naquele início de 2020 ela começou a produzir e vender os bolos. Um negócio impulsionado no Instagram (@girlaneboloss) pela filhota Mariana, e pela rede de amigos de ambas.
Contou-me que cada bolo vendido era direcionado para custear as despesas de seu lar: água, luz, ração para cachorros, material de limpeza e alimentação. Até que aparecesse uma outra remuneração, aqueles bolos foram os bolos da salvação. Como se diz no Nordeste, aqueles bolos foram “a safra de umbu”. Que quando chega salva o produtor rural que vem de meses numa seca, e agora na beira das estradas vende os umbus e consegue sobreviver mais uns meses.
A procura de um emprego formal seguia desesperada. Era início de 2020, e nada aparecia. E, o pior, chega à pandemia, e adeus aparecerem vagas de empregos formais no Brasil. Então, sua única fonte de renda passou a ser a venda dos bolos, e que sem eles tudo teria sido muito mais difícil.
O despertador apita os 30 minutos. Ela retira do forno o primeiro bolo-torta e começa o trabalho de desenformá-lo. Fico ansioso, temendo que aquilo lá se desmonte. Mas, com um jeitinho que só ela tem, o bolo-torta cai sobre a plataforma da embalagem, sem se despedaçar. E aí é que o cheiro fica bom mesmo. E aquela obra de arte fica convidativa ao prazer do degustar.
Girlane me conta que a maior dificuldade, na pandemia, era encontrar boas bananas, do tipo prata. E que os preços subiram muito. Um dia, ela contou os trocados que restaram, da venda de um bolo, e depois que tirou o que precisava para a gasolina do carro (que usa nas entregas) e comprou o item mais caro da receita, o leite moça, sobraram 5 reais que dariam pra comprar duas palmas de banana. Ou seja, daria pra dois bolos. Ela foi na mesma pessoa que vinha comprando. Ele pediu 6 reais nas duas palmas. Ela só tinha 5 reais. Tentou negociar, pechinchar, deixar aquele um real que faltava no pendura. Mas, aquele feirante não estava num dia bom. E a tratou com rispidez, sem fornecer qualquer desconto e fechando a cara.
Ela chorou por dentro. O filme de sua vida passou, bateu medo, desesperança, agonia. Nem sentia o chão de tamanha humilhação que passou.

Com olhos cheios de sofrimento, vagou atônita por entre feirantes, e passou pra o outro lado da rua, onde também têm barracas.
Macilene, ao olhar para Girlane, leu os sons do silêncio dela. Leu a alma. Viu de onde ela falava, e o que estava passando. Teve empatia e sororidade ao sofrimento dela. Macilene também tem uma filha e isto gerou mais uma ponte de afeto entre elas.
E, não só deu o desconto, nas palmas de banana, como ainda vendeu outros produtos, e no fiado.
Achei belíssima a sororidade de Macilene para com a Girlane. Sororidade é a quando uma irmandade, empatia e parceria entre mulheres acontece. E aí, entre elas, se faz mágica, mística, magia e mistura boa de afetos.

Macilene é agricultora familiar há dez anos. Ela tem uma um sítio em Alagoa Nova, cidade que dista 30 km de Campina Grande-PB, no qual produz, junto com o maridão e família, os melhores hortifrutigranjeiros da feirinha do Zé Pinheiro. E tudo sem agrotóxicos, com geração de emprego e renda locais, e produzidos com o maior esmero. Ela acorda com o maridão todas as madrugadas, para colher os produtos e já comercializá-los pelas 6 da manhã. E sua vida não é nada fácil, nem glamorosa, como as que vi no Globo Rural dessa manhã. Não é nada fácil vida de pequenos agricultores familiares que comercializam produtos sem muito valor agregado, verdadeiras comodities rurais, cujo lucro muitas das vezes é bem pequeno, e que ainda são explorados por atravessadores e grandes de redes varejistas. Diferente dos produtores de queijo da Serra da Canastra. Por isso adoro comprar em feiras livres, e de produtores locais.

Entre uma dancinha e outra, agora não mais chorando, ela me contou que nos momentos mais difíceis a Macilene a emprestava dinheiro, para ela comprar outras coisinhas que não vendiam na sua banca, e que estavam faltando em casa. Além de deixar na “Caderneta de Fiado” os itens de sua própria banca.
E que sempre entendeu quando ela dizia que “tinha deixado a bolsa em casa com o dinheiro”.
Não fazia perguntas, não a humilhava, apenas anotava no caderninho e a abraçava. Como quem diz, um dia tua vida vai melhorar!
Hoje a filha da Girlane, a Mariana, está empregada em Brasília. É advogada e das boas. Girlane também terminou seu curso de Direito, e trabalha como advogada na área na prefeitura de Campina Grande-PB. Patrícia vive de boa, em João Pessoa, curtindo a vida de aposentada e vem sempre em Campina, ficando na casa de Girlane, são amigas fiéis. Macilene tornou-se da família, e ambas ainda são grandes amigas.
E Girlane ainda tem a mesma alegria ao receber um pedido de bolo, que entre um estudo e outro, pra concurso, e uma ida no trabalho, ela consegue produzir.
Quem consome o bolo-torta da Girlane, está consumindo uma memória afetiva, uma bênção, uma história de redenção, de resiliência, superaçãio, de coragem, de garra e sororidade.

Aquele encontro, entre elas, que até hoje persiste, foi Deus quem providenciou. Inclusive a negativa do desconto, do vendedor rabugento, que a humilhou por ela não ter um real para completar a compra. Girlane e Macilene têm a coragem de sobreviventes. Que não têm tempo para ficar chorando o ontem, nem ansiando um amanhã que não chega nunca. O tempo delas se movimenta no presente. Conjugado com os verbos do resistir, insistir e persistir em subverter a ordem reinante, e empunhar a bandeira da esperança e vida! E no aqui e agora.

E, sobre o vendedor que não deu um desconto, nem deixou um fiado, quantas portas fecharam para nós, e que depois vimos que aquilo lá possibilitou que outras, melhores e maiores, fossem-nos abertas? Não é? Se não fosse ele, elas não teriam se conectado.

Obrigado Girlane, Patrícia, Mariana e Macilene, vocês nos ensinam muito, nestes tempos de tão pouca empatia e resiliência que vivemos.

"Esta crônica que você me mandou pelo whatapp só reforça o caminho que estou trilhando. É o caminho certo do bem, e para o bem. A vida vai nos ensinando e o tempo vai trazendo o tom de cada coisa que a gente almeja e luta no dia a dia. E é isso!. A vida ensina e o tempo traz o tom, em tudo que que vem acontecendo em minha trajetória ". 
 

Na foto: Girlane e Patrícia; Girlane e Mariana (sua filhota), Girlane e Macilene. Girlane e este que vos escreve.

Se você estiver em Campina, e quiser encomendar o bolo-torta da redenção, é só clicar aqui:

https://l.instagram.com/?u=https%3A%2F%2Fwa.me%2Fmessage%2FJ2VJ5RNRU2QSD1&e=ATMQhTx4yL6SkNg80M26vd14hFEevZGaCWAszKA-ra8TVYpEFvRYVkE2moaGDuLYj7sCmNaO7xZoZeYRc8wSZomEczdlMryMKrjsDac&s=1)

Graveto a Graveto, à reconstrução! (Por Ricardo de Faria Barros)


Acordei com um barulho na janela do quarto. Esfreguei os olhos, arregalei os ouvidos, e tentei entender o que seria aquele barulho.

Seria um ladrão? Mas, estatelado de medo na cama eu pensei que seria muito difícil ser, pois que moro no sexto andar, e não tem como acessar meu apartamento por aquele local. Só com escadas de bombeiros.

Seria o vizinho de janela, batendo alguma coisa nela? Não seria improvável, mas seria muito fantasioso, dado que o som vinha do meio da minha janela. Se eu tivesse medo de alma, tinha ficado paralisado, mas não tenho.

Então, reuni o pouco de coragem que ainda me restava e fui abrir as cortinas para verificar de onde vinha aquele som. Que ora parecia um aranhão no vidro, ora uma batida.

E vi que era um casal de pombos, que chamarei de João e Maria fazendo um ninho. Cada um deles trabalhava com seu graveto, que iam colocando um sobre o outro, bem arrumadinho, fazendo com eles uma cama. Eles aproveitaram a jardineira de grade que tenho e ali mesmo, e sem cerimônia, começaram a construção. Fiquei um tempo do lado de cá, aproveitando que o vidro é fumê, olhando aquela engenharia de amor entre eles. João corria para pegar um graveto e deixava com Maria, que ia aprumando sobre a estrutura. Aí era a hora dela sair e deixar João, bicando os gravetos, para entortá-los. E Maria batia asas procurando um novo graveto que desse naquele estágio do projeto.

Então, daquela observação, um rasgo de luz invadiu meu ser e meu deu um bom ânimo.  Como é bacana ver algo sendo construído, do nada, só pelo esforço e esperança de poder com aquilo gerar vida.

Então, lembrei-me que no outro quarto também tinha um ninho, na jardineira da janela.  E que eu vinha acompanhando toda a sua evolução.  Quando eu viajei para ministrar um curso a mamãe pomba já estava chocando um ovo. Depois que voltei me esqueci de ir olhar.

Fui lá no quarto e fiquei pasmo com o que vi.

A mamãe-pomba não estava mais chocando o ovo. E, do ovo aparecia restos de um feto. Coloquei na minha mão para enxergar mais de perto, e percebi que o filhote não nascera. Algo ocorreu e o ovo não fora chocado a bom término.

Então, a ficha caiu. Aquele casal de pombos, o João e a Maria, eram os mesmos deste ninho, que não logrou êxito.

E eles não desistiram. Mudaram de quarto, de jardineira de janela, de posição. Escolheram uma outra área, mais sombreada e protegida, pelo ar-condicionado, dando uma distância dele, por conta do calor do compressor.

Fiquei me perguntando por que eles não reaproveitaram o ninho que antes tinha feito, aquele projeto anterior?

Já que todos os gravetos estavam li, e seria bem mais fácil?

Quanto ensinamentos João e Maria nos fornecem?

Quantas das vezes nosso projeto que investimos tanto nele não vinga? Não choca, como aquele ovo.

Seja por circunstâncias que não prevíamos. Seja por falta de recursos. Seja porque não deu pra fazer o que nos propomos, faltaram-nos as forças, faltaram-nos a coragem e a resiliência.

Não sei. Só sei que naquela cena de um ovo que não vingou, num ninho perfeito, muita coisa me tocou.

Nem sempre é culpa nossa quando algo não deu certo. Quando não aconteceu algo que investimos muito.

Como João e Maria investiram tempo e dedicação naquele ninho e na chocagem.

Não foi culpa deles. Algo ocorreu com o processo que deu ruim.

Mas, João e Maria não são de desistirem fácil.

Após se recuperarem da frustração e luto de um projeto que não vingou. Lá estão eles novamente, graveto a graveto, a montarem novamente a estrutura que receberá a vida, após o tempo da postura e chocagem.

Escolheram agora um outro local, zeraram as mágoas, seguiram em frente, e sem olhar para o ninho que ficou, nem o luto do filhote que não nasceu.

Passaram a régua e começaram tudo outra vez, sem ser novamente.

Dedico esta crônica a todos e todas que já ficaram desempregados, que passaram por decepções na política, que não tiveram dinheiro para pagar o custeio básico de suas vidas, que olham para o amanhã e não veem saídas, aos que já perderam entes queridos, que já passaram por desilusões amorosas.  Que sofrem com doenças crônicas. Já passam por relações difíceis no trabalho, Ou os que pensam em desistir de tudo...

Não desanimem, do ovo que gorou em suas vidas. Sempre é tempo de recomeçar, tal qual o João e Maria!

Caso contrário, “eles” e as circunstâncias os terão vencido!

Eu e você temos um João e Maria dentro de nós.

E que possamos também, após um profundo luto, uma grande perda, uma puxada de tapete, um sonho negado, um projeto frustrado, ou um aborto-de-satisfação que nos ocorreu, voltar a regar as sementes de esperança em nosso viver.

Voltar a construir no hoje, graveto a graveto, novas possibilidades de enfretamento da situação.

Graveto a graveto. Sem pensar no ontem, no ovo que não foi chocado. Nem pensar no que pode voltar a ocorrer no amanhã, por conta do trauma do ontem. Tipo, será que valerá a pena fazer outro ninho, e se não der certo novamente?

Quando os ovos de alguns de nossos projetos, desejos, ou sonhos não vingarem, só nos resta se entregar ao presente.

Fazendo o que tem que ser feito no agora. Um dia de cada vez.  Comendo pelas beiradas.

Existindo, insistindo, persistindo e resistindo e sem medo de chorar e recomeçar.  

Graveto a graveto.

Sem temer o amanhã. Nem se aprisionar no ontem.

Apenas subvertendo a ordem reinante, que não se deixa morrer quando se ousa soprar as brasas da esperança.

Obrigado João e Maria por me acordarem!

----------------------------------------------------------------------------------------------------------

Ps. Após a publicação desta crônica, o amigo Hayton, que escreve coisas belíssimas no seu blog o https://www.blogdohayton.com , que recomendo que sigam, presenteou-nos com esta belíssima reflexão abaixo:

É como se Maria e João, no seu infatigável balé de asas movidas pelo espírito de Dom Helder Câmara, nos dissessem em arrulhos: “deixem-nos acender cem vezes, mil vezes, um milhão de vezes a esperança que os ventos perversos e fortes teimam em apagar. Que grande e bela profissão escolhemos: acendedores de esperança!”

Cartas ao JG – Frases Que Aquecem Corações (Por Ricardo de Faria Barros)


Ontem, eu e meu filho saímos para jantar em Brasília. Ele se chama João Gabriel, tem 13 anos, e é o meu quarto filho. Após um brinde, de suco de laranja e um chope, ele me perguntou se eu podia ajudar-lhe numa tarefa da escola. Falei que faria com prazer, caso eu soubesse como.

- Filho, qual a tarefa?

- Pai, a professora pediu ao nosso grupo que elabore 4 frases que aqueçam o coração.

Faíscas de emoção brotaram de meu coração. Afinal, este tipo de tarefa vale para a vida. Desenvolve humanidades. Curioso, perguntei do ponto de vista de quem o coração ficaria aquecido.

- Aquecido como, meu filho? O coração de quem fala a frase? Ou, o de quem a escuta?

JG, demorou a responder. E saiu com um:

- Não sei pai, a professora não falou.

E, não era para falar mesmo. Minha pergunta é besta. Afinal, quando se fala uma frase de aquecer corações, ela aquece a ambos. Emissor e receptor, não é mesmo?

É um movimento recíproco de soprar brasas cardíacas-emocionais, tanto para quem a ouve, tanto para que lhe profere.

Não é mesmo?

Creio que foi intencional que a professora deixou nas entrelinhas isto.

Engraçado que na manhã deste dia, eu revirava um HD antigo, atrás de vídeos e textos para usar em um novo curso. E, não tive como deixar de rever antigas fotos e vídeos de minha vida.

E, não foram as fotos e vídeos de coisas, paisagens, comidas e passeios os que mais mexiam comigo. Os que faziam aquecer meu coração com aquelas saudosas memórias.

Eram os registros nos quais tinham pessoas no enquadramento das fotos e vídeos.

Relembrá-las iluminou meu ser. Pessoas aquecem nosso coração. O outro importa. Mas, não tem como construir uma frase assim.

Disse pra o JG ligar o gravador do celular dele que eu iria falar. Que seriam frases para ele, que ele escutasse no futuro, tal qual eu fiz ao revirar aquele HD antigo.

O futuro do JG é algo que me preocupa, visto que para esse meu quarto filho sou como um pai avô, do alto de meus quase 58 anos.

- Grava aí, JG.

Frase 1 – “Eu confio em você”.

Como é bom escutar alguém dizer isto para a gente. É ou, não é? Na maioria da vida o JG não vai ouvir muito esta frase. Pois estamos perdendo empatia social. E, só fala este tipo de frase quem se interessa e confia na outra pessoa. Coisa que tem ficado mais rara. Desejo, meu filho, que durante tua jornada muitas pessoas confiem em você, e expressem esta confiança.

Frase 2 – “Foi mal, me perdoa, eu pisei na bola contigo”.

Admitir que erramos e tentar restaurar relacionamentos é tão importante. Uma verdadeira fogueira de afetos positivos incandesce o coração de quem pede perdão e de quem o acolhe. Está todo mundo cheio de razões. Muito agressivos e individualistas. Admitir que nossas atitudes e comportamentos podem ter magoado os outros é algo de muita sabedoria. Pois vai nos desenvolvendo. Sabe filho, você poderá machucar pessoas, até sem querer. Ou por omissão, ou por confusão mental, ou por não saber bem avaliar o impacto de teu ser na vida dos outros, ou até por irresponsabilidade afetiva. Mas, aprenda a voltar atrás. E oferecer uma chance à paz. Se a outra pessoa aceitará, não sei. Só sei que o coração dela e o teu ficarão mais aquecidos, com o simples gesto, caso verdadeiro, de pedir desculpas.

Frase 3 – “De que você está precisando, eu posso te apoiar?”

Eita que frase bacana de ouvir, e de falar. Ninguém se basta sozinho, e um galo sozinho não faz uma manhã, como diz o poeta João Cabral de Melo Neto:

“Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos.”

Na vida, precisaremos de pessoas. E, esta postura de ajuda, de se colocar presente na vida do outro e tentar torná-la mais fácil, menos áspera e árida, é bênção. O coração de quem ajuda fica aquecido e o de quem é ajudado. Sabe filho, não se nivele por um mundo no qual ninguém mais ajuda ninguém. Seja um subversivo, um revolucionário, indo contra esta sociedade tão narcisista, tão eu, eu, eu, eu, e se coloque como um nós. Como coletivo, tendo consciência das necessidades e expectativas das pessoas. E tente atendê-las. No que for possível. Esteja atento às pessoas, todos nós estamos muito sozinhos. E, muitos não têm a quem pedir socorro, sofrem calados. Esteja atento a estas pessoas, e seja um porto seguro para elas.

Frase 4 – “Muito obrigado, eu sou grato pelo que você fez”!

Esta frase é como dormir com um amado cobertor de orelha, naqueles dias bem frios. Sentir e expressar gratidão constrói coletividades sadias. Hoje todo mundo acha que merece tudo. E vai ficando cego às coisas boas que lhe ocorrem, e que só foram possíveis porque existem pessoas. Vamos ficando com os olhos opacos da indiferença e deixamos de reconhecer e valorizar as pessoas que tornam nossa vida melhor. Valorizar nosso colaborador. Valorizar nossa família. Valorizar a pessoa com a qual dividimos a jornada da vida. Valorizar os amigos. Valorizar a diarista, o lavador de carros, o copeiro, o zelador, o porteiro, o motorista do carro de aplicativo. Valorizar a vida que temos, mesmo não sendo nem sempre a que pensávamos que teríamos. Sabe filho, nunca seja ingrato. A gratidão é um músculo. Ela precisa ser treinada, para que não fique flácida, e sem mais potência e ação. Treine os músculos da gratidão nas pequenas coisas. Com um olhar perceptivo da vida sob este prisma. Filho, uma atitude de gratidão, de sentir e expressar gratidão, te fará muito bem. E, não espere que façam isto para contigo. Pois, cada vez farão menos. Faça sem esperar retorno, nem retribuição. Valorize por saber que o que ocorreu foi importante para você. As pessoas estão tão carentes de serem reconhecidas que cada vez que você fizer isto elas ficarão muito felizes. Lembro que recentemente pedi a um garçom que chamasse o chef, caso ele pudesse vir. Minutos depois, vi um senhor alto e com toda pinta de chef se dirigindo à minha mesa. Observando-lhe pude sentir seu medo, preocupação e ansiedade, que eram explícitas. Então, disse-lhe que o jantar estava excelente, que eu nunca tinha comido um bobó de bacalhau, e que adorei. Ele abriu um sorrisão, estendeu a mão e deu aquele aperto de mão de quem está feliz. E, soltou uma frase que marcou minha noite: “Ufa, geralmente quando me chamam é para reclamar: do tempero, do coentro, do sal, da textura, da temperatura...”

Então, meu filho JG, não seja mais um que chama o Chef para reclamar. Procure ter olhos para ver: a graça, a bênção, o bom, o belo e o virtuoso. Pois, o ruim, a desgraça, o caos, as decepções, as perdas, o que falta, e o que não saiu como esperava já lhe será dado, neste início de século XXI, tão involuído.

E você que me lê, quais seriam tuas 4 frases? Coloca nos comentários desta postagem.

  





Não Era Apenas um Rodo (Por Ricardo de Faria Barros)


Saí cedinho para pegar o primeiro horário na dentista, que me atende no Paranoá, uma das Regiões Administrativas do DF.
Ao estacionar, fui comprar pão de queijo, que já virou tradição levar para o pessoal da clínica. Um agrado para quem cuida muito bem de mim.
Olhei no relógio e vi que ainda faltava um tempão para meu horário das 9h, e que tinha chegado cedo demais.
Então, fui escutar músicas no carro. Enquanto isto, observo a abertura das portas dos estabelecimentos comerciais, para que seus funcionários entrem.
Vejo uns chegando mais apressados, por certo perderam a hora.
Outros se despedindo dos filhos, que devem ir para as escolas.
Um outro, aproveita para fumar lá fora, com um olhar distante.
De repente, eis que todos se reúnem na calçada e começa um verdadeiro ritual. Um com a mangueira, outro com balde, e tem a turma do rodo e da vassoura.
Demoro um pouco para entender o que ocorre.
Eles estão tirando o excesso de sujeira que está ficando nas calçadas, de acesso aos estabelecimentos, por conta de uma obra que por ali se faz.
Noto que uma das funcionárias não tem muita intimidade com o rodo.
E, até baixo o som do carro para ver a preleção da mais experiente.
"Amiga, faz assim, segura firme e passa como quem alisa um bolo, indo colado ao chão e para frente".
Ahh, agora entendi onde era o erro dela. rsrs
Mas, a carinha da mocinha era de quem estava chegando naquela firma agora. Talvez até nesta semana, na qual o comércio começa a aquecer com as festas juninas e as férias de meio do ano.
Ela meio que estava sem jeito com aquilo que ali ocorria.
Contido, ela sorria, um sorriso humilde, de quem não tinha ideia de que iria enfrentar uma limpeza de calçada, como parte de suas atribuições laborais.
Mas, ela não desistiu. Minutos depois, já estava toda desinibida, e até tirando onda com a outras, dizendo que o pedaço dela já estava limpo e o das outras ainda estava sujo e molhado.
Sorri também com ela.
E humanizei meu coração ao dela.
Podia ser minha filha. Podia ser a tua filha.
Se fosse a minha menina Priscila, hoje com seus 34 anos, e ela comentasse comigo nesta noite; sobre o que tem feito na primeira semana de trabalho, naquela firma do rodo, eu diria para ela ser a melhor lavadora de calçadas da equipe.
Simples assim.
Quando precisamos trabalhar, não há trabalho ruim. É o que temos para hoje e nele temos que nos envolver, até para que possamos aproveitar alguma oportunidade de crescimento. Ou para que num processo de demissão, nosso nome seja poupado.
Diria:
- “Priscila se envolva com o trabalho que tu tens. E, nele dê o seu melhor.
É importante que você ressignifique esta tua experiência.
No lugar de se sentir humilhada, envergonhada, sinta-se parte de um time, comprometida, engajada e conectada com o que precisa ser feito.
E o que precisava ser feito, nesta manhã, era criar melhores condições de limpeza para que os clientes acessem à tua empresa, e sem esperar pelos serviços públicos, que deveriam se responsabilizar por esta iniciativa.”

É importante olhar em perspectiva. Em muitas empresas são os próprios profissionais que assumem a copa e a limpeza. E isto não é desonra para ninguém. É que estas empresas, pelo porte delas, não têm condições de contratar zeladoras e pessoal da copa, para com este tipo e serviço.
Lógico, que quanto maior a empresa mais as funções vão se segregando e eu não consigo ver isto funcionando de forma legal, pois que seria uma forma de assédio, de desvio de função, e de economia ultrajante de custos.
Mas, não é o caso.
O caso é que não dá tempo de pensar em algo do tipo. A poeira é sazonal, fruto de uma obra local, e é preciso juntar o time e resolver a parada.
Eu já entrei em situações assim, quando trabalhava no BB, e não me senti humilhado. Embora não estivessem bem nas minhas funções, eu sabia que aquilo lá era uma contribuição e que eu podia ajudar.
Lembro quando Betinho foi indicado para o Prêmio Nobel da Paz, o Banco do Brasil mobilizou a sociedade para angariar assinaturas que defendessem a indicação, a nível mundial.
O gerente da agência me chamou e perguntou se eu tinha coragem e aceitava ir para um ponto movimentado da cidade de Campina Grande-PB, o Calçadão, e ali ficasse angariando assinaturas.
Perguntei-lhe: “Cadê a mesa, as cadeiras e a prancheta com o abaixo-assinado? Vamos é pra já!”
Noutra vez, o BB foi convidado a pagar uma determinada quantia aos flagelados da seca, e o acordado era que eles não iam se dirigir ao Banco, e sim o Banco iria até eles.
O gerente perguntou qual caixa queria ir levando o dinheiro dentro de um carro da PF, e passar o dia pelos sítios, cooperativas, escolas e associações pagando os flagelados da seca. E isto por uns 15 dias.
Topei na hora.
Trabalhar naquelas condições insalubres, e de altíssimo risco, não estava nos meus planos, mas alguém precisava fazer. E eu entendi o contexto da iniciativa, e a ela me conectei, mudando a forma como muito de meus pares estava enxergando aquela iniciativa de filantropia social.
Esta mocinha me orgulhou muito.
De não ter desistido. De ter mudado sua postura. De ter treinado a resiliência e o trabalho em equipe.
De lutar por seu lugar ao sol. Num mercado de trabalho tão frágil e sem garantias como o dos profissionais do varejo. Principalmente quando a economia não está nos seus melhores dias.
Fiquei pensando nos rodos que posso pegar e ajudar na limpeza de tantas calçadas. Seja na minha família, seja na sociedade, seja nos locais por onde passo e que posso ser contribuição.
Sendo o melhor que puder para o mundo, e não o melhor do mundo.
Obrigado pela lição de profissionalismo e resiliência, mocinha do rodo de camisa vermelha. Sinta-se acolhida e respeitada.
Com certeza, você irá longe nas ocupações de trabalho que vier a assumir.




 

Sobre tampas e panelas. (Por Ricardo de Faria Barros)



"Aqueles lá, são a tampa e a panela."

Outro dia ouvi esta frase, e nunca mais olhei para uma panela e sua tampa, da mesma forma.
Você já deve ter escutado, não é?
É uma frase pequena, com apenas cinco palavras, mas que possui uma imensidão de significados.
Num livro bem recente, a pesquisadora Stephanie Cacioppo estuda os efeitos da tampa e da panela no organismo. Este livro, que ainda não tem tradução no Brasil, se chama Wired For Love.
Recentemente, Stephanie deu uma entrevista à Folha de São Paulo a qual transcrevo um pedacinho:

Folha de São Paulo (20/04/2022): O amor é necessário para a sobrevivência?

Stephanie: O amor é uma necessidade biológica, assim como a água, o exercício físico ou o alimento. Minhas pesquisas me convenceram que uma vida amorosa sadia é tão essencial ao bem-estar das pessoas quanto uma boa alimentação. Essa vida amorosa pode incluir seu parceiro amado, seu círculo de melhores amigos, um grupo social, uma causa, sua família ou até mesmo seu time esportivo favorito.
(Veja em https://folha.com/2wy3zcpv)

Nunca tinha parado para pensar no amor como uma necessidade biológica, e este arcabouço teórico abriu janelas de entendimento em meu ser. Que compartilho com vocês.

Somos "programados" e destinados ao amor. E não é somente o amor entre amantes. Ou seja, o amor de romance, de enamorados. Como a autora fala, é o amor em todas as suas matizes e manifestações. Um padre não tem esposa, mas ama seu sacerdócio, sua comunidade pastoral. Uma pessoa viúva, ama seus filhos, netos. Uma pessoa que não têm relacionamento estável, um amado para chamar de seu, pode muito bem estar em paz, para consigo mesma, e feliz, ao criar laços amorosos com amigos e filhos (caso descasada).

Então, a tampa e a panela falam de relações bacanas entre pessoas. Relações que nos causam bem-estar, que fazem o tempo passar sem percebermos, que nos conectam ao outro, intensamente, de forma emocional.

Olho para minha panela de barro e sua tampa. Aparentemente tão frágeis, mas que num conjunto formam uma parceria exitosa. E convido-lhes a refletir comigo, sobre o amor.

Modelagem - O amor da Tampa e da Panela, precisou ser moldado. Creio que o amor também precisa ser moldado. E, não há uma panela igual a outra, e não há um amor igual ao outro. Pois que são estados da arte, do artesão do tempo, que amassa o barro do coração e vai dando-lhe forma. O barro, na mão do oleiro, é esperança de um outro amanhã possível. Eu e você, vendo o oleiro trabalhar, não vemos a tampa e a panela. Ele vê. Ele vê o que ninguém vê. Ele sabe, para além da razão, que algo legal sairá de seu trabalho. Eu vejo um monte de barro sendo amassado. Ele vê o infinito do amor, vindo logo ali dobrando a esquina, e já cozinhando uma moqueca capixaba. Ele saca que algo ocorrerá, de bom, mesmo antes do ocorrido. Para ele, aquele barro dará liga boa. E não é assim com o amor? Quantas das vezes conhecemos uma pessoa, por breves instantes, e algo ocorre dentro de nós. E já não seremos mais os mesmos, a partir daquele instante. Em nosso corpo hormônios são produzidos, antevendo que dali sairá uma tampa e uma panela, e das boas. Alguns chamam isto de amor à primeira vista. Eu, chamo de um instante mágico, do olhar do oleiro sobre aquele barro. Então, o amor pede construção, nunca acabada, pede investimento emocional em juntos amassar o barro. O melhor molde é o perdão.

Temperança - Uma boa panela de barro precisa ser curtida. Precisa ser cozida, em fogo lento, e colocada para esfriar. Depois, antes de seu primeiro uso, precisa ser untada com óleo e colocada em fogo baixo, para criar resiliência. As melhores panelas passam por este processo, e duram uma vida toda. Então, os relacionamentos amorosos precisam passar pelo fogo. Precisam de renúncia, transparência e verdade. Precisam ser provados, testados e submetidos a tensões. Relacionar-se é criar um espaço para mediar prazeres e sofreres. Um espaço no qual não há vencidos, nem vencedores, mas que se constrói pela comunicação não-violenta, pela empatia e pela compaixão. E isto se faz no tempo, no dia a dia, no cotidiano. Não se cria temperança da noite para o dia. A temperança do amor se faz ao longo da história de vida, de cada uma das pessoas que se unem na tampa e na panela. Seja no romance a dois, o amor de Eros. Seja com amigos e família, o amor de Ágape. Não se fortifica a panela e a tampa sem perdão, sem respeito, sem confiança. Então, o amor precisa suportar as batidas da vida, em seu lombo, e no lugar de ficar mais frágil, ficar é mais forte ainda. A melhor temperança é a verdade.

Encaixe – Uma boa tampa, encaixa sem pressionar, na panela. Uma boa panela, encaixa sem pressionar, na tampa. Quem encaixa em quem? A tampa, ou a panela? Ambos...
Tem gente que acha que este encaixe tem que ser perfeito, sem deixar sair nenhum ar da panela, quando ela vai ao fogo. Sinto dizer, nem na panela de pressão isto ocorre. Se não tiver uma folga, uma abertura, se a tampa for presa na panela, hermeticamente falando, ou a panela na tampa, aquilo lá vai explodir. Quando cozinhamos uma feijoada, é preciso que o vapor do cozimento escape, não totalmente, mas que escape um pouco. Creio que o amor também tem desse tipo de encaixe. Precisa de válvulas de escape, nas tensões diárias que ocorrem naturalmente nos relacionamentos. Precisa de espaços de individualidade, nos quais cada um tenha seus próprios motivadores, que funcionam como “respiros” e que arejam a relação. O amor pede este encaixe de minha panela de barro, que não aprisiona, que não domina, que não tem o outro como “coisa sua” e o manipula. O amor odeia Narcisos. Pessoas narcisistas tendem a querer que o outro se pregue nela, como se fossem fechados nelas mesmas, parte delas. Isto é uma fantasia de poder, terrível para quem já a viveu. Pois que sufoca o amor. E isto causa muito sofrimento. Causa uma co-dependência de modo que uma das pessoas, da relação, não sabe mais viver sem o outro, ou os outros, e isto tira dela mesma a vida. A pior forma de encaixe fixo, sem abertura, sem liberdade, é o ciúme doentio. Então, o amor precisa de liberdade, de autonomia, de individualidades a dois. Não deve ser panela e tampa de cara metade. Mas, panela e tampa de caras inteiras. O melhor encaixe é a empatia.


Então, quem tiver sua tampa e panela, cuide bem dela. Sua amada, seu amado. Seus filhos, netos. Seus amigos. Seus grupos sociais. Seus animais de estimação. Tudo aquilo em que deposita o mistério, a mágica, a tesão de amar e ser feliz!  
Felicidade tal aquela de quem acha uma Flor do Mar (*), para temperar sua moqueca, feita com uma boa panela e tampa.  

(*) Flor do Mar, ou Orvalho do Mar, era como a flor do Alecrin era chamada na Idade Média. Por seus poderes terapêuticos, gastronômicos e aromatizantes. Que cura, alimenta e perfuma, como um bom amor deve ser. 

Partilhar, gesto revolucionário, em tempos tão mesquinhos. (Por Ricardo de Faria Barros)

Acordei cedinho para botar o feijão no fogo.

Certifiquei-me de não ter nenhuma cadeira próxima do balcão da cozinha, para que meu cachorro não queira colaborar no prato. rsrs

Hoje, Dona Rose vem aqui em casa, minha Santa diarista, então é dia de cozinhar para o pessoal do lava jato.

Eles gostam de meu feijão gordo, com carne e ovos.

O pessoal do lava-jato do Antônio está sendo uma das melhores coisas que já me ocorreu, em 2022.

São pessoas batalhadoras, que sabem agradecer o pouco que possuem, pessoas de paz, bondade e cheios da luz de Deus. Quantas das vezes já me sentei com eles, à mesa de café, e saí dali com o coração aquecido.

Sim pessoal, o Antônio teve uma ideia, há muitos anos, de colocar uma mesa de café ao lado de sua Kombi Lava Jato, e nela vão ficando os clientes, amigos e eles próprios. Sempre que o momento permite, que há um vale, eles ali se sentam e proseiam, entre um copo de água, um café, um bolo, ou suco. Antônio e Janete formam um belo casal (Eles estão sentados e juntos numa das fotos), já o Jader, o de camisa mais clara e que está de pé, é uma figura ímpar. Ele fica sempre atento aos que por ali passam. E para eles oferece uma água, um café, ou um pedaço de pão com manteiga, seja a uma profissional de limpeza pública, um morador de rua, ou um motorista de caminhão de entrega. Jáder não deixa ninguém sair dali sem beliscar algo. O Zezinho, este de sorriso farto, que está sentado, é um eletricista dos bons, e gosta de bode.

Zezinho podia ter como sobrenome Conversa Gostosa. Outro dia ele me contou do seu fornecedor de bode, que vem lá das terras de sua parentada, no Piauí. E não é qualquer bode, é bode de sol, uma iguaria.

Se você já foi em Teresina, no acesso ao aeroporto têm vários sendo vendidos à margem da estrada. Então, fiquei animado com a possibilidade de comer algo que sempre desejei, ao voltar de um curso que ministrei por lá, e nunca tinha parado pra comprar, e encomendei 1/4 de bode de sol. Já tinha até me esquecido do fato, dado o tempo que fazia, quando entre um tempero e outro, do feijão, piscou uma mensagem no meu celular.

- "Corra, venha buscar teu bode que ele está sendo muito disputado".

Oxente, deixei Dona Rose pastoreando a panela de pressão e fui lá no lava jato. Há tempos que eu encomendei do Zezinho um quarto de bode de sol. Nem acreditei que chegou.

E, houve até foto da entrega da iguaria, gerando uma felicidade em todos - daquelas de crianças brincantes.

Morri de rir com o Zezinho contando que aquele meu pedaço de bode de sol, quase provoca uma guerra na família dele.

Pois, o cunhado dele ficou de olho no meu bode. Contudo, Zezinho fincou o pé, e não deixou que ele ficasse com ele.

Voltei pra casa sorridente, e com o coração aquecido, e pedi pra Dona Rose documentar a foto do bode, agora aberto do saco. Enorme e belo. A panela do feijão começa a apitar e a cozinha fica incensada com cheiro bom, de comida feita na hora.

Lembro que adquiri esta rotina, de semanalmente fazer um feijão para enriquecer o almoço daquela turminha amada.

Aprendi este lance de cozinhar para alguém, com o Hayton Jurema - colega aposentado que tem um blog maravilhoso e que recomendo que leiam os textos de lá (https://www.blogdohayton.com/). Num de seus textos, eu fiquei sabendo que a sua mãe, Dona Eudócia Jurema, 83 anos, 10 filhos, 22 netos e 24 bisnetos, paraibana e residente em Maceió, quando faz o almoço pra ela, sempre coloca mais arroz na panela, mais carne e água no feijão, e convida os porteiros do prédio para partilharem de sua comida. Ela cozinha pra ela, e pra eles. Todos os dias.  (Na foto, Dona Eudócia está entre o Hayton e sua esposa, a Magdala) 

Partilhar, talvez seja a mais revolucionária experiência humana, em meio a uma sociedade tão não-empática, gananciosa e individualista na qual vivemos.

Recentemente, do nada, o Antônio trouxe para mim, pois soube que eu adoro cachaça, um litro de uma temperada no abacaxi, que o irmão dele faz, lá pras bandas de Cocal, no Piauí. Esta será tomada nos finais de semana, aos poucos, lembrando-me agradecido deste gesto de partilha para comigo.

Desligo a panela, escorro a água, para amassar o feijão e engrossar o caldo, e abro um sorrisão, daqui a pouco será festa, quando por lá eu chegar. E, hoje acertei no sal, atendendo a um pedido do Zezinho que quase morreu de pressão alta, ao comer o último feijão que levei e que tava salgado.

Tenho percebido que minha vida ficou mais alegre, a cada manhã, e que não tomo mais café sozinho. E que vou me interessar pelas histórias de vida deles e aprender muito.

Então, em meu coração, há só gratidão por ter conhecido mais pessoas-luz e que fazem a diferença no meu dia. Ontem, me flagrei comprando coisinhas pra ir tomar café com eles. E foi uma festa. Na ocasião, passou o Emanuel, da Pizza César, que também frequenta o point, e deixou uma pizza divina. Antes de sair, chegou o Marcos, médico acupunturista, e acabei ficando mais um bocadinho. O Marcos atende a Janete, esposa do Antônio, e sem cobrar nada. Mais um gesto revolucionário de partilha. Então é isso. Têm lugares que os anjos de Deus resolvem fazer morada, descansando de tantos corações amargos pelos quais precisam interceder. Ali, naquele local, eles se fazem presente e conosco se divertem. não há conversas sobre mágoas, sobre ressentimentos ou coisas ruins. A conversa gira em torno do lado bom da vida, que pode ser o forro da casa do Antônio que foi colocado... Ou, a alegria de finalmente o Zezinho regularizar o carro dele. Ou o Jáder, falando alto, chamando transeuntes pra boiar conosco, e sendo repreendido para não gritar, ao que todos caem na risada.

São dessas coisas que também é feita uma vida boa.

Obs: O point do Antônio fica na entrequadra da 205-204 na ASA Sul, Brasília, perto da rotatória que dá acesso à Rua dos Restaurantes. Passa por lá, quando estiver por Brasília. Tem sempre uma água geladinha, uma sombra, um café e uma prosa gostosa para te acolher. Sim, e teu carro, se for lavar, sairá como novo de lá. Teu carro e teu ser.

Crônicas Anteriores