Nossos Quintais



Era como um dia de segunda qualquer, daqueles que acordamos enfastiados e chateados com algo que nem sabemos o que é.

Neste dia, eu folgara do trabalho e tirara para visitar uns amigos em Londrina-PR.

A mulher bicuda comigo. Dias antes, na virada do ano, houvera elogiado os tons amarelos do seu cabelo, e ela dissera que já estavam daquela cor desde o natal, e eu não notara.

“Você não olha mais para mim!”

Torou dentro[i], adeus clima de virada de ano. rsrsrs

Já viu tudo né.

Depois, soube que poderia ter sido pior, poderia ter dito que os tons estavam de um “esverdeado” bonito, ao invés de dourados. Seria divórcio na certa.

Ao chegar à casa de sua amiga, dirijo-me para os fundos da casa, para deixa-las mais à vontade tricoteando.

Nos fundos da casa, vejo um quintal protegido do acesso por causa do serelepe cachorro de estimação, o Leão, por uma cerca rústica de paus à pique.

Leão foi o meu presente em 2005, para a Dona Zilda (72) – a mãe da amiga da minha esposa e proprietária da casa onde nos encontramos já há mais de 10 anos.

Presentei Leão como uma forma de terapia ocupacional para Dona Zilda, que sofria o luto da morte de seu marido.

Leão é um SRDM – Sem Raça Definida Mesmo.

Segundo Dona Zilda, “este cachorro pensa que é gente e só falta falar”.

Virou o amigo dela de todas as horas.

Mas, se entra naquele quintal, adeus hortas e frutas.

Abro a pontinha, chamo Leão e vamos cometer uma transgressão explorando aquele quintal, coisa que nunca o fizera nestes mais de 10 anos que visitamos estes amigos.

Sento embaixo de um velho limoeiro, ainda produzindo. Ouço o som de cotovias, de pardais, de bem-te-vis, do vento farfalhando as folhas, e o cheiro de terra molhada.

Aquelas sensações vão inundando meu ser e o revigorando.

Percebo as sutilezas daquele aprisco rejuvenescedor.

No seu interior a temperatura é bem mais agradável do que lá dentro de casa.

Neste dia fazia um calorão em Londrina.

As folhas caídas eram cuidadosamente “arrumadas” nos troncos das árvores mais frondosas.

Havia uma certa cumplicidade da mãe natureza naquele local sagrado. Formigas, abelhas, minhocas, folhas em decomposição, frutos maduros no chão, tudo estava em comunhão e numa relação de ajuda mútua.

Ali, naquele quintal, revivi os quintais de meu viver.

Acho que todo mundo deveria ter nas lembranças um quintal.

Um quintal onde colhemos frutas maduras e docinhas, ou o milho plantando nas primeiras chuvas, o mais doce, pois é adubado pelo resto das comidas jogadas no seu solo.

Tive a felicidade de ter avós que tinham quintais. Vovó Dulce de João Pessoas com seu quintal com uma goiabeira frondosa e um tanquinho de juntar água da chuva, que tempos depois virou nossa piscina.

E o de Vovó Maria, em Juazeirinho, que mais parecia uma tripa comprida, daqueles terrenos de 8x60 tão comuns nas cidadezinhas do interior do nordeste.

Revivi estas cenas. Percebi o quanto me foi precioso e o quanto cresci brincando naqueles quintais.

Voltei de meu mergulho pela infância com Leão latindo para uma pombinha que houvera feito o ninho no limoeiro.

Apalpei o chão e senti como estamos interligados com a mãe GAIA, como somos parte de um projeto maior.

Olhei aquele galinheiro, quase tombando, e relembrei sua história de intolerância. Tempos atrás, Dona Zilda recebeu a visita de sua vizinha que estava bastante nervosa.

Alegava que não conseguia dormir com o galo que ali habitara e que iria denunciá-la ~´a polícia.

Dona Zilda, do alto de sua sabedoria e bondade, deu fim aos seus galináceos.

Aquele galinheiro deveria ser um marco, um marco da capacidade de cedermos para acomodar os outros em nosso viver. A capacidade de renunciar, de fazer escolhas que possam construir pontes, mesmo que para isto tenhamos que perder um pedaço de nossas próprias estruturas, para compor algo diferente e reestabelecer o reinado da paz.

Olhava para aquele galinheiro e ouvia o galo cantando, e a vizinha perdendo o sono.

Entre lutar pelo direito de ficar com o galo cantador e manter a vizinha com insônias todas às 4 da manhã, ela optou pela pessoa humana, em detrimento de seu próprio orgulho ferido – com a investida hostil da vizinha.

Ela cedeu, renunciou, mudou a si mesma diante de uma situação limite.

Lembro-me de Sr. Antônio – marido de Dona Zilda, já falecido, quando ainda era vivo e provocado por mim, sobre a história do galo, dizia: “Olhe Paraíba, esta vizinha é “probremática” e não gostamos de confusão“. Que exemplo!

Pouco a pouco fui sendo bafejado pelo hálito da esperança, que ali habitava. Senti o quanto fazemos nossos próprios infernos para nele habitar e nos vitimizar.

Então, relaxei. Não mudaria o bico de minha esposa. Não mudaria a percepção de pouca atenção só com palavras.

Ela precisaria de um tempo para processar aquilo que sentira, e era direito seu.

Quanto a mim, restaria aceitá-la como estava, e aguardar seu renascer, qual tudo naquele quintal.

Passei a sentir-me tão melhor que sai e comprei na venda da esquina umas latinhas. Abri solenemente aquela cerveja, sentando num banquinho, comendo torresmo, e sentindo o quão eu sou precioso e estou em comunhão com a mãe-terra a Gaia.

Leão compreendeu o momento e sentou aos meus pés. Para ele também, aquela era sua primeira experiência “quintalesca”. E não arrancou nenhum pé de alface ou tomate, pelo menos que eu tenha visto.

Naquela casinha tão simples e humilde, que já houvera sido de madeira rústica, habitava a paz.

Nas suas paredes rachadas, grades enferrujadas, pinturas carcomida, telhado abaulado com o peso das telhas sobre madeiras podres que não o sustenta mais, morava a bondade, esperança e solidariedade.

Acho que em nossos corações tem sempre um quintal como estes, acima descritos.

É neste lugar que habita nossa autoestima. Ela que nos faz resistir contra toda desesperança. Ela que nos enche de valor quando tudo ao nosso redor é só indiferença.

Ela que nos dá a coragem de enfrentar obstáculos e de nos sentir bem conosco mesmos, em qualquer que seja a situação.

Sentido o aroma daquela terra molhada, escutando sons de folhas se abrindo para receber o orvalho da manhã, sorvendo o aroma de flores em fruto, vendo o João Gabriel e o Leão correndo embaixo daquela sombra e revirando folhas secas, ou brincando com terra, senti uma felicidade tamanha de estar vivo e poder contemplar aquele momento.

Nada como um quintal para nos reestabelecer o sentido de viver, a harmonia para conosco mesmos, e a fé em tempos melhores.

Um pena que as cidades engoliram os quintais revestiram-nos com cerâmicas, cimentos, e eles rareiam.

Mas resta a cada um de nós ser quintal para o outro. Ser temperatura amena, sombra, frutos, abrigo.

Ser silêncio, ser escuta, ser oração, ser ternura, para aqueles que puxam um banquinho e repousam seus coração cansados e aflitos em nossa presença.

Na autopoeise de viver, na teia da vida, tudo se recria, renova-se, muda, conecta-se e afirma a força do existir.

É só nos mantermos neste fluxo vital, nesta comunhão com sons, aromas, cores, formas e sabores que cada um que cruza em nossa presença os traz.

Talvez esta seja uma das essências e temperos da vida. Vermos-nos e vermos aos outros como quintais, apriscos prazerosos de se conviver.

O outro ensinamento que tiro deste quintal é que um velho galinheiro – mesmo sem galos e galinhas, representa o espaço da aceitação, da flexibilidade, da adaptação, das escolhas em ceder aos caprichos e idiossincrasias dos outros, para mantermos as pontes, entre ele e eu, ainda intactas e que poderão no futuro servir para nos aproximarmos e calçar as sandálias dos outros, ver com seus olhos, empatizar a relação.

Assim, debaixo daquele limoeiro, ouvindo os sons da natureza, pude compreender as razões do bico e sacar o quanto fora desatento.

Em tempo: o bico passou três dias depois. Talvez pela minha postura em não procurar me justificar, ou fazer o jogo do “bico, agora é a minha vez”.

Mas em amar com a generosidade de quem não espera ser amado, correspondido nas expectativas, mas só pelo prazer de amar, sem esperar nada em troca, mas de olhos bem abertos.

Nas goiabeiras do quintal da Vó Dulce; nas melancias, aboboras e romãs da Vó Maria; no limoeiro da Dona Zilda, um lugar seguro para o florescer do quintal de meu coração, para que outros dele se apropriem.




[i] No Nordestinês = Deu tudo errado

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