Artefatos-Conexão



Pela manhã saímos para deixar minhas calças velhas na costureira, que seriam transformadas em bermudas.

Fiquei do lado de fora contemplando um belo dia, quando me deparo com as linhas de transmissão da imagem que ilustra esta crônica.

Vejo que no entroncamento delas tem “um artefato de conexão” em forma de X.

Este as sustenta, articula, e faz com que o fluxo de energia se distribua pelos postes e siga seu caminho até o seu destino final, sem atropelos ou gargalos.

Lembrei-me de uma cena recente de minha vida pessoal, na qual por falta deste artefato de conexão - entre setores, fui tratado como coisa.

Tudo começou quando houvera recebido um encaminhamento de meu cardiologista, para uma operação de urgência às 16h00min. Num outro hospital, único que tinha vaga e profissional para tal procedimento.

Ele me encaixaria, entre uma operação e outra, que faria naquele hospital à tarde. A razão da urgência é que meu coração disparara novamente e estava a 170 por minuto, sem voltar à normalidade com medicação, exigindo um procedimento de eletrochoque.

Meu coração estava em fibrilação atrial. Nestas condições, há fortes riscos de derrame – AVC Isquêmico, ou de Infarto, pela liberação de coágulos do interior das suas cavidades, na corrente sanguínea.

Isto acontece, pois o coração em fibrilação atrial não bate, treme. Como consequência, podem ficar restos de sangue em seu interior e formarem-se coágulos. E, caso liberados na corrente sanguínea, provocarão sérios danos.

Como combinara com o médico, eu e minha esposa nos apresentamos no Centro Cirúrgico às 13h30min. De lá, pediram-nos que déssemos entrada pela urgência, para que fôssemos encaminhados formalmente e para que a autorização do plano de saúde fosse mais rápida. O procedimento a que precisaria ser submetido chama-se de Eletrocardioversão (choque por desfibrilador, mediante anestesia geral).

Ao chegar ao Setor de Urgência cardíaca começou nossa novela mexicana, pela falta daquele “artefato de conexão”, citado no início desta crônica.

A cardiologista de plantão sentiu-se diminuída, “by-passada” pelo “pessoal do outro setor”.

Ela, visivelmente nervosa, e sem poupar-nos de seu palavreado em alto e bom som, dizia que “não sou assistente administrativo de médico algum... sou eu quem avalia se um paciente deve ou não ir ser operado”.

Não precisa dizer que àquele momento meu coração galopava, tamanho o desconforto com aquela situação que vivenciávamos.

Contudo, ficamos ali no Box 4, caladinhos. Com mede de uma reação nossa agravar o conflito entre áreas.

Nesta situação-limite o paciente vira refém.

E tome telefonema entre setores. E tome disse-me-disse.

Às 15h30min o meu médico sobe e sensibiliza a área de urgência para que me encaminhem para o Centro Cirúrgico.

Apelou para a responsabilização da área, caso algo ocorresse comigo, aí liberaram meu passe rapidinho. rsrs

Fiquei pensando, só muda o crachá. Seja hospital, igreja, banco, indústria, universidade... etc.

Esta mazela de falta de articulação, sinergia, sentido de pertencer a um único negócio e de sucesso coletivo é geral em nossas Organizações.

O que mais vemos por aí são confrontos velados ou explícitos entre áreas internas a uma mesma Organização. Então, já viu né!

Perdem-se em brigas, contendas internas, procedimentos administrativos que desconhecem a cadeia de valor entre áreas, os inputs e outputs, protocolos que mais dividem do que juntam forças.

Que mais servem para que as pessoas se escondam atrás dos processos – minuciosamente descritos, para justificar o não atendimento das demandas entre áreas. “Não está previsto em nosso procedimento”.

A situação agrava-se com o empobrecimento da inteligência social (ou emocional) na cultura subjacente, com aumento do individualismo, de uma espécie de neo-narcisismo, e do fenômeno da retribalização planetária. Todo mundo se achando dono de alguma coisa. Nem que seja de sua estação de trabalho.
O senso de pertencimento a um coletivo – mesmo que seja o coletivo organizacional, vai se deteriorando, nestes tempos ditos modernos.

Cada um só enxerga sob a ótica da sua própria realidade, faltando a empatia e a engenharia social que permitem tecer redes de cooperação, cooperação e parceria.
Então, volto aos artefatos de conexão, descritos no início desta crônica, em forma de X (veja ilustração), para provocar uma reflexão refletir sobre a dificuldade que as Organizações estão tendo para alcançarem resultados, sempre que para este alcance seja necessário o estabelecimento de relações de confiança e cooperação.

Neste ambiente de trincheiras, ou jogos internos organizacionais, no quais as áreas disputam entre si recursos, poder, posição no organograma, para sua fantasia de dominação seja saciada; minguam-se os espaços de criação coletiva do saber, de inovação, de troca de informações e de concertação (gestão social), necessários ao sucesso coletivo.

Perdem todos, principalmente o cliente final.

Administra-se como que em feudos, em caixinhas herméticas, ou sem alterar ritos institucionalizados, suscitando a pergunta bendita, a mãe de todas as mudanças: “é por que não?”.
Ou seja, administra-se pela imanência das coisas, sem muito espaço para a transcendência, para rompê-lo do lugar comum e para se fecundar o novo.

No meu caso, pouco importava meu estado de saúde.

O foco era no procedimento administrativo, que alguma das partes tinha atravessado. O foco não era a pessoa. Era o processo. A médica da urgência escondia-se/protegia-se no processo estabelecido para envio de pacientes ao Centro Cirúrgico para não agir.

Ou agir à sua maneira, sem considerar customizações e/ou flexibilizações a uma nova realidade que se apresentara.

Diariamente me confronto com estas cenas.
Falar em organizações matriciais, em tomada de decisão coletiva, é quase uma utopia. A segregação de funções/processos, as forças das “caixinhas” do organograma, e a hierarquização das relações são as práticas cotidianas.
Em qualquer Organização, até nas religiosas, há setores em conflitos, com crise de identidade, sombreamento de papeis, jogos de poder e de vaidades.

Em alguns a coisa é velada. 

Noutros as brigas são explícitas e contaminam todos os membros, a partir de uma postura imatura de seus gestores, que as alimentam.

Que jogam sua área contra as áreas com as quais se relaciona, ou na sua fantasia de perseguição, estão em guerra para com ele.

Ou o pior, aquela postura de: “isto que você está fazendo pertence à minha área, então deixa comigo que não faço”.

Quanto mais departamentalizada uma Organização, mais exposta a estes riscos de perda de energia interna – de entropia.

Precisava haver um intenso processo de desenvolvimento de competências em inteligência emocional e social, em concertação, e gestão social.

Para que cada líder seja um artefato de conexão.

Um articulador de processos, recursos, pessoas.

Um gerador e mobilizador de energias entre áreas, distribuindo-as entre todos, visando ao alcance dos objetivos organizacionais.

Para muitas empresas o que parece óbvio é uma luta de convencimento.

É óbvio os membros de uma determinada Organização conceberem-se integrantes de um mesmo negócio: da saúde, da fé, das finanças, do vestuário, da alimentação, etc.
Contudo, o óbvio é difícil de convertido em práticas saudáveis do tipo cliente-fornecedor.

De verem-se como de um mesmo negócio, independente de serem área-meio ou fim.

Não é de estranhar o apelo exaustivo por uma tal de unicidade entre as “pontas”, diretorias, vice-presidências, o escambau.

Programas são descontinuados, congelados, esquecidos, ou vítima da indiferença organizacional, simplesmente por falta de uma combinação sinérgica das áreas envolvidas com a sua consecução.

Uma pena!

No meu entender as Organizações estão esquizofrênicas.

Ao criarem falsas realidades para nelas habitar, lindos programas de planejamento estratégico, que irão para fundos de gavetas, ou serão sutilmente boicotados por forças da resistência ás mudanças.

Pois as mudanças exigem uma postura coletiva de enfrentamento.

Exige um pensar e fazer coletivo, para os quais as Organizações estão perdendo vigor.

Ou seja, na hora do vamos ver, ninguém quer largar seu naco de poder, ou descer o “jabuti” do tronco de uma árvore.

Um pesquisador do comportamento organizacional, Stephen Robbins, no seu livro: A Verdade Sobre Gerenciar Pessoas, descreve bem esta situação ao afirmar que boa parte dos problemas entre áreas de uma Organização, não são por déficit de comunicação, e sim por déficit de relacionamento.

Somos frutos de uma sociedade que não tem nas suas disciplinas escolares a de “escutatória”.

Na qual o cara acha que pode subir a qualquer custo, pisando em todos, e quando chega a cargos gerenciais, acha que está numa trincheira de guerra, e que precisa ser defendida a unhas e dentes.

Acha que é um pequeno Deus e que até o cosmos gira em torno de seu ego.

No campo pessoal também existem pessoas “artefatos de conexão”.

Com alto Q.I. S – Quociente de Inteligência Social. Você ao certo já cruzou com elas, ou é uma delas. Quem tem a felicidade de conviverem com elas ganham um salario indireto.

E, se for o seu chefe, você ganhou na loteria.

Estas pessoas são catalisadoras de relacionamentos. Consegue negociar posições, buscar convergências, mobilizar pessoas numa visão de futuro.

Consegue construir parcerias, suscitar empatias, nutrir relacionamentos.

Pessoas-artefatos-de-conexão exalam vida. Fazem com que o fluxo de energia, onde inseridas, flua. Conectam, sustentam, articulam pessoas.

Olhando para esta ilustração relembro as vezes que não fui um artefato de conexão, que fui barreira, muro, trincheira para o outro.

Nesta reflexão, renovo os votos de ser conexão apesar de toda desconexão.
De questionar minhas posturas e identificar atitudes que possam estar contribuindo para isolar, segregar pessoas.

Às pessoas-artefatos-de-conexão, com as quais cruzei, o meu muito obrigado, vocês tornaram meu existir mais prazeroso.

A você, artefato de conexão, um apelo: não se deixe embrutecer e perder a capacidade de construir pontes entre culturas, povos, áreas organizacionais e até entre famílias.

2 comentários:

  1. Mais uma vez, parabéns! Sua leitura, interpretação e comunicação das situações cotidianas são certeiras.

    Realmente, o óbvio só o vai ser se comunicado na linguagem do receptor. Seja no bolso, na alma, nos valores, na sustentabilidade daquilo que o sustenta. Você parece que entende bem disso, por isso te refiro muitas vezes como "mestre", não é à toa.

    Só um porém: o artefato de conexão fotografado me lembrou de imediato aquele equipamento de tortura medieval de estiramento. No contexto do estado atual das Organizações a que você se referiu, acho que representa bem a pessoa que se dispõe a dar a cara a tapa, estou enganada?

    Mas cada um sabe de sua missão e, com uma boa mentoria, sabe que o preço a se pagar vale a pena. Utopia?

    Abraços!

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    1. Utopia nada, fantasia e das boas... um outro lugar de trabalho nascerá.

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