O valor de uma ida ao salão (Por Ricardo de Faria Barros)

Voltando da caminhada, arfando que nem cachorro criado em casa de açougueiro, dei-me conta de que não levara a chave da portaria.
Dirijo-me então à recepção, e, ao dela me aproximar, vejo conversando com o porteiro Antonio uma vistosa senhorinha, de uns 1,85 de altura, cabelos bem branquinhos, toda elegante e altiva.
Ela fala em voz alta, e toda sorridente, que não vai esperar ficar boa da saúde para ir ao salão, cortar o cabelo, e que aguarda o Uber.
Abestalhado com o que escutei, a cumprimento emocionado, e peço para Antonio abrir a portaria.
Despeço-me deles com um leve sabor de vida impregnado até os confins de meu ser.

Você já cruzou com alguém e saiu com a alma perfumada?
Aquela senhorinha aromatizou meu viver.

Horas depois, perguntei ao Antônio quem era ela. Ele disse-me que se trata e Dona Terezinha, 92 anos, moradora do ap 401.
Fiquei mais admirado ainda, e, porque não dizer, perfumado.
92 anos e com aquela jovialidade!
Dona Terezinha disse que não tinha tempo para aguardar ficar boa, e botou sua melhor roupa, fez maquiagem, estampou um sorriso no rosto, e foi renovar sua auto-estima.
Que atitude bonita dela, diante dos limites da vida.

Lembrei-me de Luzia, aquela da marchinha de carnaval de João de Barros (Braguinha):
"Anda, Luzia, pega o pandeiro e cai no carnaval.
Anda, Luzia, essa tristeza lhe faz muito mal.
Apronta a tua fantasia, alegra o teu olhar profundo,
A vida só dura um dia, Luzia.
E não se leva nada deste mundo..."

Foi como se eu visse a Terezinha com o seu pandeiro na mão, enfeitiçando as horas da vida, ao transformá-las em vidas das horas.
Lembro de mamãe, Dona Denise, 80 anos, que também anda tocando o seu pandeiro e não deixa de participar ativamente das pastorais da Igreja do Rosário.
Lembro de papai, Sr. Evandy, que prestes a chegar aos 82 anos ainda se alegra com tudo, e transmite muita paz, mesmo que esteja chupando dindin (sacolé), e de água.
Creio que estes "novos velhos" têm muito a ensinar aos velhos jovens de hoje em dia, em qualquer idade que estejam.

Ensinar a persistir, quando tudo ao lado já desistiu.
Ensinar a gratidar a vida. Verbo que criei para conceituar a capacidade ativa de sentir e expressar gratidão.
Ensinar a ter foco e disciplina, para correr atrás dos objetivos.
Ensinar a não desanimar, diante dos inevitáveis aperreios da vida, e continuar respirando, mais um dia, mais um dia, mais um dia...
Ensinar a dar valor às pequenas alegrias, reconhecendo-as como verdadeiras dádivas restauradoras da esperança de viver.

Precisamos urgente de muitos pandeiros na humanidade, de muitas Luzias, Denises, Evandys e Terezinhas.
Precisamos inspirar pessoas a enfrentarem seus monstros, a superar seus muros, reais ou imaginários, a expressarem o seu melhor potencial humano, dentro dos limites e possibilidades que a vida lhes impõe.

Dona Terezinha está certa. Não há tempo disponível para esperar ficar curada. Melhor, enquanto isto não chega, ir cuidar do cabelo.
A humanidade vive hoje uma epidemia de vazio existencial. Há falta de Terezinhas no "mercado".
Isto deriva tanto de uma educação infantil que não fixa limites, e não responsabiliza o jovem para ele mesmo correr atrás de seus próprios progressos.
Como do aumento da individualidade, consumismo e narcisismo digital, like-me please!
As pessoas estão virando produtos de consumo, coisas, e os relacionamentos ficando mais voláteis. E, sem o outro, um outro para confiar, nós murchamos como coletividade.
Assim, germinam-se em todo lugar pessoas que não estão sendo devidamente educadas para o enfrentamento da vida. Que acham que existe almoço grátis, ou que podem chegar nas janelinhas em esforço algum, só porque merecem.
Os brotos humanos que germinam deste ambiente, de baixíssima resiliência, são frágeis para aguentar os trancos e sopapos da vida.
Resiliência não se aprende em cursos e livros. Se aprende com a própria experiência humana. Então, se estamos criando pessoas super-protegidas, ou não estamos cortando os cordões umbilicais deles, estamos sabotando as suas próprias vivencias de frustração, medo, angústia, triunfo e realização
E, quando algo sai errado, este imenso grupamento humano - frágil e carente de sentido na vida, aprende a colecionar suas dores, viram colecionaDORES. Não basta ter uma dor, é preciso que ela seja compartilhada, distribuída, valorizada, como figurinhas premiadas de um álbum.
Pessoas que não processam suas dores, não a dissolvem, destilam, ou delas se livram. tornam-se escravos de suas coleções de dores, numa postura de vítima sufocante.

E, vamos enchendo as narrativas de nossas vidas com cenas dolorosas passadas, para justificar ainda não termos desabrochado, no presente.

Outra categoria muito comum, na atualidade, são os PortaDORES. Pessoas que quando chegamos perto delas saímos doentes de sua presença. Porque elas só falam coisas pesadas, ruins, sofrimentos, aperreios e aflições. Elas têm uma atração por divulgarem isto em suas redes sociais e para todos que delas se aproximam. Precisam despertar afago, atenção e cuidado, revelando o quão suas dores são grandes e vistosas. Como em porta-estandartes.

Por último, têm os ativaDores. Pessoas que possuem um prazer sarcástico de não se alegrar com quem se alegra, de nutrir inveja má, de machucar pessoas que pensam, ou agem, diferentes delas. Este tipo anda muito presente nas redes sociais. A pessoa não se basta em discordar de algo, ela precisa se sentir humilhando o outro, vencendo-o ao sobre elas jorrar um monte de palavras-armas, no qual qualquer espécie de diálogo cai por terra, cambaleante.

Terezinha nos deu uma tremenda lição. Com autonomia, com coragem e ânimo ela foi buscar o seu pedaço de bem-estar emocional positivo, conceito bem maior do que o da própria felicidade. Não ficando à mercê das circunstâncias, nem numa asfixiante postura de vítima.

Anda, Luzia, pegue o pandeiro e vem pro carnaval!

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