Olhai as Tartarugas (Autor Ricardo de Faria Barros)

Este texto não é sobre tartarugas.

É sobre um monte de coisas que existem no oceano de nosso viver, coisas do tipo bacanas, que não as vemos, por não saber que existem, ou por ter esquecido de olhá-lhas. Até que alguém nos desperta para isto, e voltamos a ver o que nem nós sabíamos que existia de tão bom em nossa vida.

Frequento uma praia em João Pessoa-PB, há pelo menos 50 anos.
Eu e ela crescemos juntos. Posso até dar nome aos coqueiros e a cada reentrância da praia que se amolda ao mar. Nós a chamamos da Praia do Iate, em referência a um Clube Náutico que por ali existe, embora seja a Praia do Bessa I.
Mas, algo só me ocorreu neste veraneio. Acontece que minha irmã veio nos visitar e disse que uma tartaruga estava nadando bem perto dos banhistas, inclusive passando próximo ao meu sobrinho e cunhado, na praia do Iate.
Sempre soube que elas usam este trecho de praia para desovar, mas nunca tinha me passado a ideia de que elas ficassem na área, dando uma nadada boa. Enquanto esperam a hora, nas luas cheias de janeiro, fevereiro e março.

Depois do almoço com a mana, fui até mar, com o firme propósito de nadar com elas. Mas, não as encontrei.
No outro dia, fui ver o sol nascer da praia, e eis que uma tartaruga emerge para respirar, bem na prumada do sol que eu via nascer.
A partir daí, transformei-me em observador de tartarugas. Sei até o melhor horário para vê-las, das 5h às 7h. Até criei minha própria técnica para ter sucesso na observação de tartaruga. Nada de ficar passeando a vista no imenso mar à minha frente. Isto só diminuirão as chances.

É preciso se concentrar num único ponto. E esperar, esperar e esperar. Como elas passam um bom tempo nas profundezas, flagrá-las emergindo, e acertar o local, torna-se quase uma loteria. Então, é preciso acreditar que naquela faixa do enquadramento do olhar, mais cedo ou mais tarde, ela aparecerá.

Confesso-lhes que estas férias têm tido este sabor especial.

Então, algo mudou em meu ser. E, foi uma mudança profunda, estrutural. Todos os dias, bem cedo, aprumo a vista para vê-las nadando. Não é coisa fácil, exige paciência, foco, disciplina e até sorte. Hoje um banhista, apanhador de nascer do sol, quis até me acompanhar, mas logo desistiu. Disse que elas não apareceriam. Eu lhe falei:

- Senhor, elas estão ali naquele mar, têm muitas tomando o café da manhã neste momento. E não é o fato de não as vermos que elas não estão lá.

Ele, deu de ombros, sem entender muita coisa, e continuou sua corrida matinal.
O que houve em mim, do ponto de vista cerebral, com a nova perspectiva das tartarugas?
Eu remodulei os pensamentos, emoções e comportamentos, em função delas.
E tornei-me mais presente, criando as condições para que minha percepção selecione qualquer mudança de tonalidade, ou agitação, na lâmina d’água que possa facilitar nosso encontro.
Engraçado que a competência de observar as tartarugas, a partir de um toque que minha irmã me deu, ocorre com um montão de coisas que estão passando no oceano em nosso viver.
Às vezes só precisa que alguém nos apoie na remodulação de nosso olhar, sobre o oceano de nosso viver.
É uma escolha. Quantas coisas bacanas estão ocorrendo lá no interior de nosso mar, e que não as reconhecemos?
Mas, esta escolha exige mudança de modelo mental. Exige uma mudança de perspectiva, de enquadre.
É preciso que tomemos consciência, fruto do autoconhecimento, e que passemos a nos tornar observadores de coisas boas.
Imagine que nossa vida seja como este trecho de mar da Praia do Iate. Imagine que avistar uma tartaruga nadando é uma coisa que causa bem-estar.
O desafio que se faz presente, nos tempos atuais, é encontrar nas profundezas de nosso oceano interior as tartarugas.
Isto exigirá paciência, foco, determinação e muita constância de propósitos, mas valerá a pena.
Há muitas pessoas na humanidade fazendo este caminho. Pessoas que se cansaram com o vazio existencial da coletividade, com uma sociedade escrava do consumo e da agitação.
Pessoas que aprenderam a observar tartarugas.

Ter pais vivos podem ser boas tartarugas a observar. Ter um lar, uma família. Ter filhos, um trabalho, ter saúde, ter um animal de estimação, ou um amor pra chamar de seu. A lista é grande de “tartarugas”.

Que estão ali, mas que deixamos de vê-las por ignorância, mágoas, ressentimentos, falta de perdão, ou até mesmo de percepção do bem que nos fazem.
São coisas que para serem apreciadas, valorizadas e reconhecidas precisarão ser libertas das correntes da indiferença, rotina ou da falta de gratidão.
Por 50 anos eu via aquele mar, com olhos normais. E, olhos normais não acham coisas especiais. É preciso olhos encantados e assombrados, com o dom de viver, para achar o belo, o bom, o virtuoso escondido em meio ao caos e a perplexidade dos tempos atuais.

Mas, é uma escolha. E racional. Podemos passar o dia reclamando do que não temos, sendo rabugento com quem nos aborda. Fazendo aquele tipo de achar que “nada está tão ruim, que não possa piorar”. Ou o tipo que vive agitado, pilhado, cheio de ansiedade e que busca o sentido na vida, ao contrário do sentido da vida.

Mas, também podemos começar a cultivar uma vida mais simples, mais desapegada, com menos tralhas emocionais a carregar. Uma vida mais empática, solidária e mais coletiva. Uma vida mais leve, de mais amorosidade, autoconhecimento, de busca pelo crescimento interior, de um maior cuidado com o outro, e o consequente respeito.

São estas pessoas que observam as tartarugas.

E, eu quero treinar minha modulação cerebral para ser como elas.
Há coisas boas ocorrendo no oceano de teu ser.
Preste mais atenção, esteja mais presente, e não desista de si mesmo só porque ainda não achou as tartarugas. Calma, tenha foco, persistência e fé. Logo as verá em vários lugares de teu viver. Acredite.
Mas, é uma escolha. E racional.

Este texto não foi sobre tartarugas.

Foi sobre tanta coisa boa que existe no oceano de nosso viver que não mais as percebemos, valorizamos e nos satisfazemos com elas. Até sentir sua falta, num dia comum, daqueles que andamos cegos e indiferentes, ofuscados pela rotina cotidiana, no qual algo nos ocorre e as perdemos. Aí sentimos sua falta. Afinal, como disse Freud, o desejo é o alvo da falta.

Um comentário:

  1. Sim, Ricardo. A maturidade nos ensina a apreciar, cuidar e amar as “tartarugas” de nossa vida de forma legítima, fazendo o simples se tornar extraordinário. Admiro a sua sensibilidade. Adorei seu texto.

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