Ele destacava-se dos demais, ele estava subvertendo uma ordem reinante, uma ordem de vender cocos secos. Ordem secular.
Ele achara uma oportunidade de encantar seus clientes sem desqualificar seu processo. Dissera-me que reserva uns tantos no modo tradicional, pois “tem cliente que tem medo de que eles se danifiquem expostos ao tempo.”
Maravilha de ser humano. Sábio e instintivo. Sapiens-demens.
Chegando a São Paulo, após um dia cansativo de missão tomei um relaxante banho de banheira, prazer que só desfruto em hotéis, aqui em casa não fiz este mimo.
Já relaxado, decidi ir tomar um chope no shopping à frente. Peguei a chave do hotel, uns 50 reais, e cruzei a rua em direção ao prazer etílico.
Chegando à boca do caixa, já babando de desejo, a mocinha pediu a minha identidade.
Fiquei constrangido, pensara que era um trote. Sorri e disse “você tá brincando né?”. Tinha deixado a carteira no quarto do hotel. Com medo de ladrões. Coisa de matuto na cidade grande. Mal sabia que numa batida policial seria preso por falta de documentos.
Ela, visivelmente aborrecida, falou que não. Era lei em São Paulo. Sem identidade, não se toma bebida alcóolica, independente da idade.
Retruquei qualquer coisa, paguei o prato de gostos-tira e sai para comê-lo cabisbaixo. Depois disso, ensimesmado, resolvi ir falar com o gerente.
Argumentei que a lei poderia ter uma parcela de bom-senso, uma flexibilização para aparências corporais que denunciassem a idade, e coisa e tal. Ele olhou-me friamente, e disse-me, “eu cumpro as leis.”
Sai dali, entrei noutro restaurante, pedi a mesma cerveja e fui atendido.
Fiquei matutando sobre leis, normas, decretos, portarias.
Por melhor que sejam elaboradas, não dão conta da riqueza, complexidade e diversidades das situações humanas.
Precisam de um descumpridor de leis de plantão, que tenha o peito de assumir os riscos de sua decisão e reverter cursos de ação que seu cumprimento tácito causaria.
Ainda sorvendo meu chope, com um gostinho de vingança na boca, vejo nos telejornais paulista que uma grávida de nove meses fora presa por não ter pago a pensão ao marido. Fiquei duplamente assombrado, pelo fato de uma grávida de nove meses ser presa e pelo fato de mulher também pagar pensão.
Mais uma vez me perguntei, nãos seria o caso daquele oficial de justiça se fingir de cego e não achar sua “meliante”.
Tem a moral, mas a ética lhe supera. Nem sempre a moral, com seu código de leis e padronizações normatizadas, dá conta de lidar com os princípios éticos que lhes aparecem, até para situações nunca pensadas, que apela para um novo código que privilegie a ética da vida, dos direitos fundamentais e da dignidade.
Um iminente sociólogo, considerado o pai da sociologia - Emile Durkheim, caracterizava o não cumprimento de padrões sociais como uma doença, uma anomia, perigosa, pois poderá quebra a coesão social.
Até concordo, mas há uma brecha de proporções infinitesimais que pode agir o ser humano. Lembro-me quando era caixa e chegava aquele velhinho, carcomido com o tempo, com os documentos num saquinho plástico, que ao desembarace-los dali contatara que esquecera a identidade só estando com o carne da aposentadoria do INSS, antigamente chamado de APB.
Olhava para ele e dizia este risco eu posso correr. Vou pagar ao senhor. Pagava ao velhinho.
O problema das leis e normas é que ela diz o que deve ser feito em dada situação, mas não diz o que deve ser feito em outra situação.
Ou legisla sobre procedimentos que uma vez feitos, não excluem outros também serem feitos.
Dia seguinte recebi um telefonema de um candidato, da mesma missão que estava desempenhando, só que a de Brasília. Ele alegara que “tomaram o cartão respostas” da prova que fizera, sem permiti-lo que terminassem de preenchê-lo, após tempo regulamentar da prova de duas horas.
Ele soluçava.
Lembrei a ele que o regulamento do certame dizia que teríamos que avisar aos 30 minutos do término.
Ele perguntou se custava nada terem dito que faltavam 5 minutos.
Realmente, não custava. Mas não estava no regulamento.
Entende onde quero chegar?
Regulamentos são pobres por natureza, pois excluem um outro olhar sobre o que acontece. Tudo tem que caber ali, estar contido ali, e nem sempre eles dão conta.
Por exemplo, não havia nada no regulamento que impedisse os fiscais do Certame de avisarem aos 5 minutos. Havia uma recomendação de avisar aos 30min.
Mas, a tensão de conduzir processos normatizados é tão grande que tememos sair da norma, ou criar algo não previsto, mesmo que não ferisse o regulamentado, e expor a todos.
Por isso gostei do descascador de cocos. Ele entendeu que podemos, nas brechas do impossível tocar no infinito.
Lembro-me da enfermeira da UTI Neo-Natal, na qual nosso filho ficou por 30 dias, e que só podíamos visita-lo as 09hrs e 15hrs, e por 60 min. Um dia perguntei se não poderia trazer minha esposa para beijar nosso filho, à noite, já que estava internada no mesmo hospital no qual nosso JG lutava pela vida, com seus 1370kg, nascido de 31 semanas de vida. Ela curava-se de uma pré-eclâmpsia, com a as incomum hipertensão pós-parto. Ela olhou com “candura’ nos nossos olhos e falou. “O regulamento só permite duas visitas.”
Não sabia aquela senhora que uma visita extra, na boca da noite, faria mais efeito do que qualquer dose de hipertensivo que ela tomaria.
Mas tudo é visto pelo excesso quando é descumpirod. Ela deve ter pensado, “já pensou o furdunço que será isto aqui se os país poderem vir a qualquer hora.”
Assim pensa a cabeça dos que não flexibilizam nada, dentro das rais do possível.
Sai e minha esposa comentou debilitada: “paciência, ordens, são ordens.” Pensei, odeio esta frase.
Passei a lembrar das vezes que pude flexibilizar algo, sem perder a ética ou feri-la e por em risco o normativo ali estabelecido.
Nas vezes que usei e abusei da ousadia de arriscar, mesmo diante de todos os riscos que poderiam advir.
No dia seguinte barrei um candidato da prova que fui aplicam em SP que chegou 20 minutos após o início, embora ninguém ainda houvesse seguido.
Cumpri o rito. Mas, que rito bobo!
Poderia ter sido escrito assim: “Se nenhum candidato entregou a prova, mesmo com tempo de duração menor, será permitido aos candidatos atrasados entrarem na sala, e fazerem a prova, sem instrução de abertura alguma”. Por conta e risco dos mesmos.
Outra candidata errara o lugar da prova, e não autorizei que ali fizesse, embora sobrassem provas de candidatos faltosos. Fiquei com o coração na mão. Mas uma regra boba, que poderia ser contornada, sem ferir o processo ou quebrar a isonomia.
Desembarquei em Brasília com aquelas cenas da cabeça: a grávida de nove meses presa, com cesárea marcada para o dia seguinte. O chope para maiores com identidade. O jovem com seu cartão de respostas recolhido. A jovem que errou de endereço e foi para o outro polo de aplicação de provas. E o outro que chegou 20 minutos atrasado, pois seu ônibus quebrara.
Segui para casa reflexivo e recebo a ligação de Maurício. Ele coordenara o Certame nacionalmente. Solidário com meu relato resolvera conferir a prova do jovem do cartão recolhido. Caso ele tivesse acertado todas as questões que não tinha tido tempo de marcá-las, ainda assim não seria aprovado.
Fiquei profundamente sensibilizado com a atitude do Mauricio. Ele foi subversivo. Rompeu também os limites do estabelecido e fez algo não previsto, mas não desautorizado, no Certame. Re-conferiu uma prova, sob outro olhar.
Agradeci ao Mauricio seu belo gesto e liguei para o jovem.
Ele ficou emocionado.
Acho que seu coração sossegou.
E vim pra casa pensado no quanto de brechas tem em nossos normativos, leis, procedimentos que podemos agir, sem coloca-los em prejuízo, assumindo os riscos da situação.
Queria então declarar para meu viver ser como um descascador de cocos para meus clientes. Alguém que facilite a vida para o outro. Que encontre as brechas para aprovar, e não fique procurando o rigor da lei para eliminar.
Queria poder ser uma comissão superior de recursos para onde fossem encaminhadas as queixas de vítimas de leis, procedimentos e normas.
Queria ter o poder de ali mesmo, sem consultar ninguém, deferir ou indeferir.
Reguladores de plantão ficarão atônitos com minha crônica, “mas como, será uma desordem”!
Mas quem falou que a vida cabe na ordem? Como diria o poeta, navegar é preciso (no sentido de precisão dos procedimentos), viver não é preciso. Viver é caótico. E os caminhos do coração, vixe Maria, estes nem é bom falar.
Na minha vida houve pessoas lindas que descumpriram normas. Não tinha direito a folgas para ir buscar a família na Paraíba, para vir para o interior da Bahia, onde tomei posse. Um cara chamado Alcione disse: Vai Paraíba, agente dá um jeito. Tu trabalhas uns dias fora do expediente e compensa. Não havia banco de horas nos idos de 1986, ele antevia com sua humanidade esta necessidade.
Outro destes seres iluminados fez o admissional de minha esposa numa empresa do setor aeroviário. Pegou seu exame neurológico e disse, esta tua disritmia que apareceu aqui não vai te bombar. Embora conste como desclassificatório. Se você fosse pilotar avião estava certo, mas para ser assistente social, é demais. Vou usar o bom-senso. Hoje ela é uma profissional realizada e nunca, nunca mesmo, em seus 14 anos de empresa, teve um acesso de disritmia que pode causas desmaios involuntários.
São estas pessoas que fazem a diferença nas Organizações e que fazem, inclusive, que os códigos internos, leis, regulamentos e normas, sejam atualizados contemplando as novas demandas sociais.
A elas quero fazer um tributo, uma homenagem. Obrigado por existirem. Obrigador por terem interpretado e legislado a favor da ética, mesmo se expondo.
Por melhor que seja o procedimento, por m ais rico e abrangente, nunca dará conta do fenômeno humano, e, nestes casos, um ser humano de plantão fará toda a diferença.
É como a mocinha da do check-in que poderia cobrar uns 100 dólares por mala extra no embarque internacional, EUA-Brasil, e que ao abrir a mala, a pedido do passageiro, e constatando que a mesma estava cheia de adereços para uma festa infantil: balões, bichinhos, decoração, solidarizou-se e só cobrou a metade. Este amigo trouxe adereços para a festa dos 3 anos do JG, com o tema George o Curioso (ver Discovery Kids). Tome macaco naquela mala.
Ela descumpriu uma regra interna e cumpriu outra, de ordem muito maior, a da empatia e solidariedade. Lógico que dentro dos limites e margem de ação a si conferidas.
Então decidi. Quero ser abridor de cocos para os que me rodearem. Encontrar formas de atendê-los nas suas necessidades, sem me sujeitar a dominações ou limitações de direitos, dentro do limite do razoável e do eticamente-sustentável.
O humano sempre em primeiro lugar. E gente é assim mesmo, cheia de direitos. E que bom.
Digo aos que trabalham comigo, se não gostar de gente e de seus humores e mal humores, tá no lugar errado.
Quanto ao quem redigiu a lei fechada em si mesma, como aquela do chope, ahhh...ele não precisa saber, bota um copinho num copo descatável que saio tomando este divino líquido e não te exponho. (risos)
Mas, isto é assunto de fórum íntimo! Quero mais é ser descascador de cocos secos para os outros. E, como diria o Marcos, aquele da feira do início deste texto, só pelo prazer de servir.
Fico a pensar se os excessivamente moralistas, zelosos cumpridores de regulamentos, normativos e leis, quando estão do outro lado do balcão, e são as vítimas, apelam para customizações. Se quando saem de férias, se é que saem, pedem que seu excesso de bagagem seja flexibilizado pelos atendentes das empresas aéreas.
Quanto a mim sou um usurpador, um subversivo, um marginal de leis e regulamentos indecentes, que não contemplam aspirações e situações das mais diversas de nossa humanidade. E que venham os riscos. Aliás, “e que a minha loucura seja perdoada. Porque metade de mim é amor E a outra metade também,” conforme poesia abaixo:
Metade
Oswaldo Montenegro
Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.
Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade.
Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo.
Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso, mas a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste, e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro de ter dado na infância
Por que metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei.
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço.
Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Porque metade de mim é platéia
E a outra metade é canção.
E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.
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Fragmentos Inspiradores deste Texto:
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