Arcabouços Emocionais



Tem dia que a gente e conosco acontece cada coisa, nestas horas digo: só comigo!
Não é que um monte de lixo caiu de um caminhão de limpeza urbana, e ficou jogado na Avenida do Sol, anteontem, por onde transito todos os dias. Quando vi a presepada, já era tarde, atropelei um dos sacos, o que ficava mesmo no meio, entre as duas rodas e que não deu para desviar. Como fizera dos outros.
Numa fração de segundo torci para só ter coisas flexíveis ali dentro, pois poderia amassar tudo.
Não ouvi um som sequer. Ufa!!!
Olhei no retrovisor, para ver a bagaceira que poderia ter ficado na rua, e nada.
Nada de saco e o seu lixo. Fiquei encasquetado.
Para onde teria ido aquele saco? Voar não voou, pois aparentava certo peso. E que passei por cima, ah eu passei!
Chegando perto de casa, ao reduzir a velocidade, ouvi uma chiadeira vinda de debaixo do carro.
Parei em casa. Avaliei a situação. Ih, o carro estava arrastando o saco, que ficara preso no catalisador do silencioso, por debaixo da parte central do carro.
Contudo, entre matar a fome e me arrastar debaixo do carro para recolher a “vítima”, optei por pelo acúmulo de calorias gastronômicas, ao invés de sua queimá-las com esforço físico.
Disse comigo mesmo, ele vai cair sozinho. Pense numa decisão errada! Só senti o impacto desta decisão, hoje, dois dias depois.
O saco não caia sozinho. Tome chiado. Voltei até o trabalho e por um longo trajeto ainda ouvia o chiado, perto do trabalho silenciou. E fiquei aliviado. Ao descer do carro senti um cheiro forte de borracha queimada. Ajoelhei-me e vi que saia de restos de plásticos que ficaram pregados no cano, relevei. Não era de ser nada.
O importante era que o saco desprendera-se do duto do escapamento.
Saindo do trabalho peguei uma chuva torrencial e voltei para casa, não mais pensando naquele saco. Todas as ruas de Brasília viraram rios, dirigia com cuidado, esquecendo-me completamente das desventuras do saco de lixo.
Hoje pela manhã sigo para o trabalho e nem dirijo uns 10 km, dos 30 que faço no percurso de ida, o mau cheiro invade o carro.
Abro os vidros apressado, JG comenta que tá fedendo. E para piorar, ainda pego engarrafamento na 3ª ponte. Só comigo.
O cheiro de borracha adentrava, com vigor renovado, deve ter sido a chuva do dia anterior.
Fico entristecido, lá sei foi o cheirinho de carro novo. Assalariado é azarado, quando tem direito a sorver aquele cheirinho manjar dos deuses, mesmo que em 48 prestações, é surpreendido com um gás concorrente que anula tudo. Constatei que teria que conviver com este gás tóxico e fétido, emanado da borracha queimada por uns tempos.
Ele ficava ali guardado, pronto para manifestar-se após um calor mais forte nos escapamentos.
Ele chega de mansinho, tirando todo o aroma do interior do carro, empestando o ar, até anulando o efeito dos perfumes pessoais.
Dá uma carona neste carro será uma vergonha. A pessoa chegará toda fedida.
Saquei que precisarei por si só ele não sairá. Demorará muito tempo para ir derretendo e perder sua potência fétida. Precisarei alterar minha rotina de final de semana, sempre corrida, ir numa oficina – sempre cheia, e pedir para que retirem os restos de borrachas ali derretidas, seja com uma talhadeira, seja como uma lixa.
O que aprendi com esta vivência e queria compartilhar com vocês?
Tem coisas que só sai de nossa vida se a gente tirar com talhadeira, ou usarmos outros métodos, a exemplo dos grandes petroleiros e transatlânticos que precisam periodicamente retirar o limo, cracas e mariscos que vão se afixando nos cascos.
Os donos de embarcações, a exemplo do que ocorreu comigo e meu carro, precisam intervir nos “encostos” dos cascos e retirá-los.
Nos estaleiro, usa-se a velha e boa dupla talhadeira-lixa, ou uma corrente elétrica no casco, ou o contato deste com a água doce, ambos dissolvem a cola das cracas e ostras facilitando sua queda.
O fato é que esta borracha pregada no escapamento, que ao ser aquecida, fede e invade o mais vedado dos carros, além das cracas dos barcos, lembram as coisas que vamos permitindo que se afixem em nosso viver, fruto da nossa própria saga, da jornada do Homem.
Tudo que nos paralisa como pessoa, nos sufoca, nos limita, nos diminui, nos elimina, nos oprime acaba agindo nossa psiquê tal como as borrachas derretidas em escapamentos, ou as cracas em cascos de embarcações.
São os lixos emocionais com os quais nos deparamos, os encostos afetivos, familiares, laborais, sociais, de toda natureza, que tiram o encanto de nosso viver, fedem e diminuem a nossa energia vital e motivação em seguir adiante. Tal qual o atrito causada pelas dificultando o deslizar dos cascos pelas águas.
Famílias vampiros-emocionais. Trabalhos vampiros-emocionais. Relacionamentos afetivos vampiros-emocionais.
Roubam toda nossa energia. Ou seja, tem que ter uma a ação para romper o ciclo de dominação.
Se deixar pela própria natureza das coisas não acontecerá a mudança.
Tem situações em nossa vida que teremos que agir para nos desvencilhar.
São situações venenosas que nos imobilizam, nos envergonham, nos entristecem e que muitas das vezes a resolução das mesmas exige de nós uma força hercúlea, maior do que temos para agir naquela situação e tomar uma decisão.
Entendo os fracos, sou fraco. Eles sabem que algo precisa ser feito, só não tem forças.
Estão limitados por razões econômicas, ou familiares, na maioria das vezes.
E aí estes vampiros emocionais apoderam-se de nossa fraqueza, de nossos não-ditos, dos sapos engolidos, e crescem.
Se deixarmos as coisas que nos diminuem, ferem nossa dignidade e nos entristecem como estão - achando que por si só resolverão, nem sempre dá certo. Podemos nos ferir irremediavelmente.
Algumas destas situações-limite ficam em nosso ser impregnadas. Reivindica uma tomada de consciência, uma intervenção, um resgate da autonomia para serem enfrentadas.
Por tabela, uma forte dose de autoestima.
Estas situações são qual o gás venenoso de borracha queimada, pregada no escapamento, empestam o viver.
Quando acontecem ficamos completamente reféns da situação, e elas passam a gerir a nossa vida, a direcionar nossos comportamentos e emoções.
Então, não tem jeito. Não tem jeito. Por mais que tentemos adiar o enfrentamento da situação, chegará a hora que teremos que encontrar um resto de força, de dignidade, de motivação, de esperança e agir diante daquela situação que está nos enclausurando.
Romper os limites desta situação é doloroso. Tal qual uma talhadeira batendo num ferro, ou uma lixa retirando algo ali afixado. Porém, caso não seja feito, toda vez que nosso ser “entrar em funcionamento” a opressão se fará presente.
O problema ali, onipresente, embora encoberto e escondido.
Aparentemente tá tudo bacana. Até fingimos bem para nós mesmos e para os outros.
Tal qual meu carro quando parado e polido. Bonitão reluzente.
Mas que desconfiaria que ele, ao se movimentar, fede em seu interior?
Ninguém desconfia de nada. Assim são as situações e arranjos humanos. Neles cabem de tudo. Não estranho mais nada.
Por fora, lindos. Por dentro, massacrados e com indigestão emocional dos sapos engolidos.
Basta o problema está ali, pairando, a qualquer momento volta a revelar-se por inteiro.

O cheiro do tânatos.
E eu não falo de luto. Por que o luto, ou bem ou mal, põe fim à dúvida. Seja pela separação de amantes, pela morte, o desemprego ou a migração da terra natal, ele estabelece um fim.
Ele chega. Estabelece a separação. Como ao arrancar um dente.
A diferença do luto para a convivência com situações esmagadoras, de nossa energia vital, é a que o luto põe uma inscrição em nosso ser dizendo: acabou!
Com isso não quero dizer que o luto é mais fácil de processar.
Já a convivência com relações difíceis, do tipo plástico-fedido-quando-esquenta pode perdurar por anos a fio. Pode ser acomodada na nossa dinâmica do viver.
E a gente vai pagando este preço diariamente. O preço de se envolver com alguém dividido, em sua vida afetiva, sempre nos escamoteando. Ou de se envolver com alguém cujo mundo dos valores não bate com o nosso. E quando a gente põe na balança ainda tem coisas legais, e por conta destas coisas vai ficando, mas vai renunciando muitas outras coisas, às vezes ficando por um fio, por uma pseudo-segurança econômica, pelo status, fé, ou até pelo medo da solidão.
São preços que pagamos pelas nossas escolhas.
Romper com estas situações, no papel, num texto piegas de autoajuda é fácil.
Vai fazê-lo! Vai lá e rompe. Vai lá e passa a talhadeira. Vai lá e leva seu coração para um estaleiro para retirar dele as cracas que foram se afixando. Vai...
Nesta crônica é bonito. Porem, o medo imobiliza.
A pessoa nesta situação se encontra, na maioria das vezes, impotente.
Fica entranha, sente-se estranha, deslocada, qual a letra da canção do The Doors "People Are Strange":
“Pessoas são estranhas quando você é um estranho
Rostos olham feio quando você está sozinho
Mulheres parecem cruéis quando você é indesejado
Ruas são irregulares quando você está pra baixo

Quando você é um estranho, rostos saem da chuva.
Quando você é um estranho, ninguém lembra seu nome...”

Até o salmista passou por momentos de desolação pelas escolhas que fizera:
Trata-se de uma tristeza, melancolia, angustia não é uma depressão.
A pessoa tem consciência que está nas redes desta situação. Tem consciência de sua fraqueza em lidar com isto, ou superar, ou sair dessas redes.
Quem dera tivéssemos nestas ocasiões, nas quais redes nos sufocam um Capitão Magnus por perto para nos ajudar. Magnus Spence é o capitão de um barco que levava turistas para observar as baleias nas ilhas no norte da Escócia. No final do passeio, eles encontraram uma baleia Jubarte, de mais de 12 metros enroscada nas cordas que foram descartadas no mar. A baleia se debatia, mas Spence colocou o equipamento de mergulho, entrou na água e, com uma faca, cortou as cordas. A baleia nadou para longe, aparentemente sem ferimentos.
Nem sempre temos por perto um capital Magnus na nossa vida.
Quando este personagem externo se revela e intervêm, pode nos ajudar, como à baleia, a nos libertar. Às vezes um novo amor, uma viagem, uma experiência mística, um amigo, um novo trabalho, podem ser acontecimentos Magnus.
Às vezes até numa crise de saúde, ou dificuldades financeiras, podem nos empurrar para tomar decisões por séculos adiadas.
A compreensão que estamos presos nesta rede afetiva, familiar, profissional, etc... é o prenuncio da mudança.
Algo não vai bem, não cheira bem, foi retratado fidedignamente pelo salmista:
“Porque meus dias se dissipam como a fumaça. E como um tição consomem-se os meus ossos. Queimado como a erva, meu coração se murcha. Até me esqueço de comer o meu pão. A violência de meus gemidos faz que se me preguem à pele os ossos...” SL 101(Hebr. 102).
Este sentimento de incomodo pode ser a alavanca para a transformação.
Esta é a esperança que tenho.
Uma esperança fruto da convivência e aprendizados com as minhas próprias redes. Quando eu fingia que não as via, seja parando para ter uma conversa franca, com medo do desgaste, Ou por que na balança do trabalho o saldo era positivo, e não valeria a pena enfrentar a situação e lutar por minhas melhorias.
Eu negava a dor. Sublimava a dor. Vivi fases de profunda negação da dor, de resignação, de aceitação-mórbida - estágios da morte e do morrer.
Fui empurrando com a barriga, aceitando-me com baixa-estima. Adaptando-me a agressões cotidianas, puxadas de tapetes, ao pensar pequeno.
Um dia rompi. Hoje acho que demorei muito.
Porém foram as escolhas que fiz naquele momento.

A gente tem que fazer escolhas. Até que ponto dá para conviver, por que certo nível de indigestão emocional é natural ao acontecer no mundo.
A gente nunca vai ter todas as situações resolvidas. Sempre vamos estar em débito com a vida. Pagando a conta do viver. O viver tem um custo.
Aliás, a busca frenética da felicidade também é uma doença, é um fardo.
Ou seja, tudo tem seu custo.
A gente precisa ponderar o momento em que isto faz com que fiquemos, ad-eternum, devedores do cheque especial da vida.
Sei que as famílias não são perfeitas. Que a vida a dois nem sempre é um mar de rosas. Que no trabalho nem sempre encontramos satisfação.
Porém, mesmo diante destas situações, se ainda temos pequenos e grandes prazeres, estamos no lucro.
Eles darão créditos para cobrir o cheque especial do viver.
O problema começa a ficar crônico quando vamos perdendo capacidade de reagir, perdendo vitalidade, saúde. Deixando de apresentar resultados no trabalho.
Entrando em parafuso nas finanças pessoais.
Perdendo a capacidade de passear de carro com a minha família com os vidros fechados, na analogia-tema desta crônica.
Percebe?
Ai a gente começa a ficar inadimplente emocionalmente.
E uma ação se faz necessária e urgente. Não podemos terceirizar nossa existência.
Levei muito anos para me ouvir. Para me querer bem. Para me levar para passear.
Para dizer basta. Sempre era refém da religiosidade, dos valores familiares, profissionais, até do status social.
Eu não sei o que acontece na vida de cada um que ler esta crônica.
Só sei, por vivencia pessoal, que mais cedo ou mais tarde, de tanto sorver este gás venenoso, oriundo de plástico de lixo derretido e colado em nosso viver, vamos morrendo em nosso interior.
Se não agirmos enquanto resta forca, a chama da esperança e uma fração de autoestima poderão ser tarde.
Se você não tem esta força, quem sabe se agisse como a baleia Jubarte, presa às redes, que ao bater sua cauda chamou a atenção do Capital Magnus.
Quem sabe não é hora de buscar ajuda.
De espernear.
De encontrar uma pessoa amiga que lhe fortaleça para que possa, por si só, cortar as amarras do seu viver.
Procurar ajuda numa terapia, na fé, em algum grupo religioso ou social, ou até num familiar.
Se você não consegue ir sozinho para a oficina, quem sabe alguém possa te ajudar.
Não banque o forte, se sua conta existencial começou a tender à inadimplência.
Tome as rédeas da situação. Não se envergonhe ou se vitimize. Muitos já passaram por isso que está passando, ou passarão. Faz parte do viver.
Ou seja, se já está pelo talo e limite de sofrer. Se o cheiro ruim, quando desce do carro, já te acompanha. É chegada a hora de agir!
Não será fácil. Pode ter recaídas.
Por pior que venha a ficar a situação, após tua intervenção, ainda assim será menos dolorosa do que a dor que sentes ao anestesiar a sua própria existência.

Um comentário:

  1. Há muito carrego lixos encasquetados. Tanto, que penso que é melhor se desfazer do carro.

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