Sobre Cercadinhos e Pimentas Artesanais


Todos os dias indo deixar o João Gabriel (o JG) na creche, de lá seguindo para o trabalho, observava a cena desta foto.
Era um colírio para meus olhos. Torcia até para o sinal ficar vermelho e poder contemplá-la, com maior tempo na sua profunda singularidade.
O que me chamava atenção, não era o fato de mais um morador de rua ocupar um espaço, relativamente seguro das intempéries, para ali pernoitar.
Drama tão comum em nossas cidades grandes com os seus marginalizados, à margem de qualquer “minha casa minha vida”.
O que chamava atenção, e o que quis registrar na foto que ilustra esta crônica é aquela corrente plástica, amarela e preta, e os adereços vermelhos – nelas pendurados, mais parecidos com aquelas pimentas artesanais, feitas de madeira entalhadas.
Também adorava ver a mesa de passar roupa, decorando a “varanda’ da moita-lar.
Invariavelmente, todos os dias, enchia-me os olhos aquela “decoração”.
Refletia sobre o quanto é humano demarcarmos nosso lugar, nosso ethos, por mais rude e hostil que seja.
Sexta passada entrei em crise, ao passar nas imediações, um pouco abaixo, vi que ali trabalhava uma empresa de jardinagem urbana, podando as árvores.
Como num insight pensei, vão podar a moita que serve de morada àqueles sem-teto.
Chegando ao trabalho me deparei com um jipão estacionado, um fora de estrada. Estava ao lado de onde costumo botar o carro. Meu sonho de consumo. Um 4 x 4 arqueado, possante e pronto para encarar as trilhas mais difíceis. Chegando mais perto vi inscrito, na sua lataria, o nome de seu feliz proprietário: Eteval.
Pensei comigo, assim como aquela moita, esteticamente demarcada em correntes plásticas e pimentas artesanais, este jipão fora demarcado pelo seu proprietário, é parte dele, é sua morada, afirmada na inscrição “Eteval”.
Chegando à minha estação de trabalho, não tive como deixar de contemplar a mesa da Ângela. Aquilo lá é um furdunço. Ela chega mais cedo e tinha saído para o cigarro matinal. Aproximei-me, vi uma coleção de chaveiros, expostas num dos cantos. Vi fotos de seus familiares e filhos. Vi objetos pessoas ali expostos, um sapato embaixo na mesa, ela deve ter ido fumar descalça.
Aquela estação de trabalho, a exemplo do jipão e da moita-lar, também tinha uma marca inconfundível da Ângela, ali era sua toca, seu lócus, seu ethos. Cada chaveiro pendurado tinha vida, tinha história. Ou seja, nada estava ali por acaso, e bagunça só era eu que via. Para ela, tudo estava em perfeita ordem e além e fazer sentido, dava um senso de pertencimento e identidade àquele lugar.
Fiquei imaginando o quanto isto é forte em nós humanos. Todos querem um lugar pra chamar de “nosso”.
Marcamos nosso existir, e não importa se moramos de aluguel, favor, embaixo de ponte, moitas, no nosso carro ou no nosso trabalho.
Aonde viermos a habitar, seja por curta, longa temporada, imprimiremos nossa marca pessoal, nossa identidade e procuraremos personalizar este lugar.
Fiquei embevecido com a cerquinha amarela e preta da foto, e suas pimentas ali penduradas. Pensamos que o senso do belo, da boniteza das coisas, da estética é só para os mais favorecidos. Ledo engano, a sua maneira, qualquer ser humano, independente de sua classe social, procurará dentro de suas condições, embelezar sua existência. Até mesmo com uma foto, de gosto duvidosa e recortada de uma Caras qualquer, pregada no seu único móvel, num quartinho alugado de periferia.
Precisamos de um lugar pra chamar de nosso. Precisamos criar identidade, afirmação, pertencer.
Hoje amanheci com uma pauta enorme de sabadão. Minha esposa houvera trazido, duma viagem para SP, um monte de decorações da 25 de Março.
Presenteou-me com uma coisa que disse que era minha cara: uma espécie de móbile, com chocalhos, pássaros de lata enferrujada e flores artesanais. Fui logo pendurá-lo na entrada da casa. Depois, afastei-me e contemplei aquela estrutura, pensei: é minha cara!
Ao olhar ao lado, na calçada, não pude deixar de rir ao ver o bezerro de fibra que tenho ali, pastando, que também é “minha cara”. Ou seja, personifiquei meu existir aqui também.
Voltando à moita, tomei coragem e chamei a Ângela – sexta passada, para me acompanhar numa visita àquela família e aproveitar o trajeto para discutirmos pendências laborais, “sob o sol da Toscana”, como costumo falar.
Chegando perto me entristeci. Podaram drasticamente a moita, derrubaram todos os objetos com violência, e expulsaram os sem-teto. No chão jazia a corrente e suas pimentas.
Tudo indicara que os “proprietários” saíram às pressas.
Fiquei com o coração apertado.
Voltando ao Trabalho cruzei com o Etaval, o do jipão.
Perguntei o que era aquele jipe pera ele. Ele, surpreso com a pergunta, respirou e falou “o meu prazer”!
Então, acho que no fundo, aquelas pimentas debruçadas sobre a cerquinha de correntes amarela e preta, os chaveiros da Ângela, os nome encravado no jipão do Eteval, no fundo, falam do prazer de existir.
Mandam uma mensagem para todos dizendo, aqui vive uma pessoa!
Uma pessoa com sentimentos, com necessidades, inclusive do belo.
Agradeci, ter conhecido aquela moita, aquela casa com uma mesinha na “varanda”. Aquela família que mesmo diante de todas as mazelas sociais a que está exposta, reivindica para si também, estabelecer-se como presença no mundo, com identidade, e decorar sua existência com a boniteza das coisas.
Pensei o quanto isto é verdadeiro. O quanto o belo e a luz nos atraem, muito mais que o feio e as trevas. O quanto a canção da Isabella Taviani é verdadeira:
“Prometo sempre ser o seu abrigo
Na dor, o sofrimento é dividido
Lhe juro ser fiel ao nosso encontro
Na alegria,a felicidade vem em dobro
Eu comprei uma casinha tão modesta
Eu sei, você não liga pra essas coisas
Te darei toda a riqueza de uma vida
O meu amor”
Na dor o sofrimento é dividido, e é mesmo. A dor ensina-nos a cuidar do que restou, a sobreviver, nem que seja comprando um vaso de flores artificiais e botando na cabeceira da cama, só para que ao acordar saibamos que é possível outro existir.
Agora entendo o porquê de minha vô, adorar se maquiar, botar um batom bonito ao ir lá pra casa num almoço despretensioso domingueiro.
Ou o porquê de conservar sua casa sempre bem limpinha, varrida, e com vasinhos de flores. Mais do que um gosto pessoal, era autoestima. Era o que restara de uma vida pobre, na qual perdera todas as posses, já no final da vida, para custear os gastos de saúde de vovô João.
Bendita Vovó Maria, agora te entendo um pouco mais. Morávamos em casa quase que geminadas, casas de conjunto popular no bairro do Cruzeiro. Bem distante do centro da cidade Campina Grande-PB.
Quando ia pra casa da vovó Maria, ao lado, sentia a paz. Tudo ali era bonito. No quintal tinha uma trepadeira, que agora chamo de bougainville, da qual tirava flores e sai botando arranjos em todos os lugares, decorando sua casa. Mamãe dizia que a Vovó era a mais vaidosa das mulheres que conhecera.
Ahh vovó, como queria que fosse viva para te dizer que agora entendi teus porquês.
Até entendo agora, de onde viera tamanha força a ser a única, de duas grandes famílias matriarcais, a me apoiar na decisão de minha separação. Era pela busca do belo.
Daria tudo para voltar ao teu quintal e comer uma galinha caipira, ou sorrir com tuas risadas ao contar-lhe que mataria os gatos que comiam os pintinhos de teu rústico galinheiro.
Ahhh vovó, como teus vestidos floridos, sempre alegres, e teu batom vermelho, unhas pintadas, cabelos feitos, agora faz sentido.
Naquela decoração da moita, entendi. Ao embelezar teu existir ele se tornava mais palatável.
Mas do que na decoração da casa, era a decoração de tua alma.
A casa da vovó era casa de encontros. Todos ali acorriam em busca de uma palavra amiga, um cafezinho de final e tarde, ou até uma palavra de ânimo, de força, de alegria. Sempre havia uma “mistura” no fogão, pronta a socorrer eu, meu pai, sobrinhos e tios ávidos por um tira-gosto caseiro e fortuito.
Tua casa tão pequena, tão simples, era local de ajuntamentos, um jardim cheios de bem-te-vis para as pessoas que a ti se chegavam.
Que saudades vovó!!!
Penso hoje em decorar meu interior. Levar-me para passear. Botar um cercadinho amarelo e preto, de uma correte de duvidoso gosto, e pendurar umas pimentas vermelhas em meu ser.
Penso em garantir um pouco de belo no meu interior. Em preservar um espaço-altar no qual possa me abastecer. A exemplo do “altarzinho” do Ceará. Ele, célebre lavador de carros e maratonista, me disse que fez na sua casa um “altarzinho”, no qual dispõe suas medalhas, diplomas, fotos e credenciais de corrida. De fronte a ele, prepara-se para os treinos, “zera a fatura do dia-a-dia pesado”, medita e busca energias para perseguir seus sonhos.
Precisamos deste altarzinho interior do Ceará, das flores de bougainville da vovó, do cercadinho com suas pimentas penduradas dos moradores-de-moita, dos chaveiros da Ângela da inscrição “Eteval”, naquele jipão.
Precisamos encantar e personaliza nossa existência. Deixar nossas marcas.
Ter nosso cantinho de paz, nos recônditos de nosso coração, um aprisco, para onde possamos ir nas horas dos aperreios, dificuldades.
Precisamos cuidar de nosso ser interior, levá-lo para uma academia... Queimar as celulites da alma.
Precisamos de estética, do belo, da luz...
Como aquela mãe retirante, numa rodoviária da Paraíba, que após estender o papelão no chão, onde pernoitaria, tira um pente de um saco plástico e penteia os cabelos dos filhos.
Este brado de vida que irrompe do mais profundo do ser, que leva aquela mãe a lembrar-se de pentear os cabelos dos filhos, mesmo diante de toda a miséria da situação onde inserida, é o que torna místico e mágico nosso devir. Este pentear, antes de dormir, foi o que restara de autoestima, de dignidade, num grito interior de quem não quer desistir de viver, de lutar.
Nosso existir precisa das correntes amarelas e pretas que ilustram este texto. Precisam de proteção. Contra os vampiros emocionais, contra os que chegam de mansinho e vão tomando conta de nosso existir, de uma forma tóxica. Gerando a pior dos vícios, o da dependência afetiva, estéril e doentio.
As cercas nos protegem sem nos isolar, são simulacros de proteção, muito mais psicológicas do que propriamente muros.
Mas, resolvem em grande maneira.
Temos que guardar um pouco de privacidade, de intimidade, para nós mesmos. Preservar as entradas de nosso coração, e vigiá-las, para que outros não façam como os jardineiros da limpeza pública, destruindo tudo que nos sustenta.
Algumas relações quem mantemos são assim: kamikazes. Sabemos que vamos nos estrepar. Que vamos perder. E mesmo assim metemos as caras, enfiamos o pé na jaca.
É preciso refazer nossos limites, nossos cercadinhos interiores, nossos valores e essência.
Assim como as cerquinhas de correntes amarelas e pretas, precisamos – em nosso vir-a-ser das pimentas vermelhas nelas penduradas.
Precisamos de fogo, de energia, de aventura, de instinto, de fantasia, de um pouco de loucura.
Precisamos de prazer, mesmo que de pequenos prazeres.
Precisamos de ânima. Pode ser ouvir uma música, ver um filme, sair com amigos, receber em casa, cuidar de alguém, precisamos de emoções. De um circo, parque, noitada, show, vez por outra.
A emoção, representada nas pimentas, assim como a lógica da razão nos cercadinhos, constitui-nos como pessoa.
Como aprendi com aquela família-moita!
Que na sua sabedoria enfeitou seu porvir. Preciso investir mais nisso, decorando meu interior com as flores de outro mundo possível!
Assim como o cercadinho, preciso muito de algumas pimentas vermelhas, daquelas que dão gosto e realçam o sabor de pratos suculentos.
Suculento, que seja o nosso viver!

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