Não se acostume com o que te faz infeliz!

Sexta acabei indo almoçar na feira dos importados, para devolver uma gentileza que um amigo fizera e resolver uma pendência dele por lá. Ele trocou seu celular por outro mais moderno, porém da mesma marca. Qual não foi sua surpresa ao perceber que a versão modernosa tinha um encaixe do chip menor do que a anterior. Ou seja, tinham uma incompatibilidade geracional. Coisa comum em humanos, porém em máquinas de gerações tão recentes, não deveria acontecer.
Ou ele perderia todos os dados, ou teria que passá-los via programas especiais para isto, ou manualmente. Alguém lhe disse que na feira dos importados o pessoal tinha um jeito de resolver, uma espécie de adaptador. Ofereci-me para ir lá, e retribuir a gentileza que ele fizera comigo numa outra pendência que eu tinha e ele mediara. Chegando lá, expliquei ao moço que o celular novo tinha "um buraco do chip" menor e que não cabia o chip velho. Ele olhou para o celular, para o chip, abriu a tampa. Sem pestanejar, disse, aqui eu resolvo. Não deu tempo nem perguntar o preço. Ele sacou de um estilete, um prosaico estilete, e foi raspando as extremidades do chip antigo. Tirando aparas, com uma destreza que pensei, "se ele errar o corte vai dá em merda"... De primeira, inseriu o chip na máquina modernosa e pimba, ela o reconheceu e acordou para a vida. Pelos serviços ia "cobrar" R$ 5,00. Mas, como comprei uma capa ele fez "de grátis". Almocei com aquilo remoendo em meu ser. Como precisamos de um estilete daquele em nossa vida pessoal e profissional.
Como tem coisa que acontece conosco e que não nos cabe mais. Que nos desloca. Nos estranha. Que para continuar "operando" da mesma forma, já que não queremos largar o chip velho, precisamos ao menos desapegar um pouco dele, e nos permitir aparar arestas interiores, para nos adaptar a novas realidades. Fiquei pensando como tem coisa em nossa vida que para mudá-las não é difícil. Só precisa do estilete, de quem o manuseie com sabedoria e habilidade e de nossa própria vontade de nos renovar sem perder os valores fundamentais (o chip). Deixando de lado tudo aquilo que está nos impedindo de atualizar nosso "sistema operacional", tornando-o mais eficiente. Gostei muito de vários insights do estilete do chip de celular. Mudar não é nada fácil. Sempre haverá cortes na alma, no nosso mais profundo. Fácil é trocar. Trocar de esposa, de filhos, de chefe, de equipe, de empresa, de curso superior, de lazer, de cinema. Trocar é fácil. Simplesmente deixamos de lado a roupa velha e pegamos a nova. Mas, quando a troca trás consigo nossa história, aí o bicho pega. Não é mais uma simples questão de escolha, do verde para o amarelo, do carro de marca tal, para tal. De ir pra praia ou para ou mercado. Estas são escolhas do tipo, pega o celular novo com seu chip pronto. Não dói tanto. Agora, fazer escolhas, adaptações, sem nos perder pelo caminho. Preservando nossa essência interior e mundo de valores, sem nos corromper ao chamado do novo pelo novo, aí sim, aí dói. Creio que amadurecer como ser humano é permanentemente raspar nossas arestas em busca de um sentido, de um encaixe melhor, num mundo cada vez mais opressivo. O cuidado na raspagem é para que ela não atinja nossos sistemas vitais de suporte à vida. Nossa psiquê, nossa auto-estima. Nessa hora precisamos de autoconhecimento para ponderar se vale o preço a raspagem, ou se não será muito grande o risco de atingir nosso ser de forma irreparável. Vale a máxima que escuto de um amigo um amigo, "pra toda escolha uma renúncia...". Ou seja, será que vale a pena raspar mais uma vez as arestas e recomeçar? Será que não é hora de romper com o modelo antigo, mesmo que seja um choque, um baque, uma perda profunda?
A resposta a esta questão não é simples e é pessoal. Mudar não é simples. Mudar comportamentos, atitudes pior ainda. Mudar relacionamentos, papéis vividos nestes relacionamentos, aí nem me fale. Sabe aquela coisa que carregamos conosco, pode ser uma mágoa, um perdão não dado, ou pedido, aquela postura excessivamente crítica, negativa ou desconfiada. Será que ela não está sobrando em nosso viver? Será que não é isso que está nos fazendo infelizes, deslocados conosco mesmo? Forasteiros de nosso lugar no mundo. Como se a atualização de nosso ser interior, a permanente atualização do "sistema operacional da mãe vida", reclamasse de nós um outro jeito de ser, sem nos perder nesta mudança, apenas aparando nossas arestas interiores para melhor conviver com a situação, aprender com ela, e mudar.
Nessas horas, como faz bem um amigo, um amor, um Deus, até um choque que levamos na vida! Tudo isso pode funcionar como o estilete. Nos fazer tomar coragem e usá-lo para raspar nosso orgulho, vaidade, acomodação, na luta pela nossa felicidade.
Nosso piloto automático que ligamos: não sabemos quando e, por conforto e facilidade, deixamos o mesmo nos guiar, pode estar nos levando a lugar nenhum. Mudar é bom. Não mudar por mudar, mas mudar para contribuir com em tornar este mundo um melhor lugar para se viver: nem que seja na sua família, ou equipe de trabalho. Como bem disse Camões: "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o Mundo é composto de mudança". Mudar, sem perder nossa essência, mudar para melhor, faz bem a humanidade. Mas, não é nada fácil.
Passamos muito tempo acreditando que "as coisas são como são, e são o que são. ". E, não queremos pagar o preço do vir-a-ser. Mudar é arriscoso. Poderemos perder o status, posição social, salário, consideração e até as migalhas afetivas que recebemos e que nos dão uma falsa sensação de alimentação existencial. "As coisas são o que são". Outro dia ouvi um grande amigo dizer: "amar é decisão". Não à tôa, um Deus feito carne nos disse que precisamos amar o outro como a nós mesmos. Raspar nosso chip existencial é prova de amor para conosco. Habilita a conexão. Dá vida ao celular novo, como o acontecido quando o rapaz inseriu o chip velho no celular novo. Optar por o chip novo, e desapegar-se do velho, também pode ser uma opção, uma escolha. Tem coisa que não funciona mais. Tal qual "botar remendo novo em pano velho". Quem decide se é hora de raspar, ou trocar de chip, somos nós. Em qualquer decisão, um fato estará presente, estaremos sendo protagonistas de nosso viver, autores e atores, exercitando a autonomia do ser e crescendo, mesmo que indo para trás. Neste domingo ensolarado, lembro as arestas de meu coração que precisam ser raspadas. Coisas que fui aprendendo ao longo da vida e que não fazem mais sentido. Estão desajustadas. Que precisam de minha ação para novamente encaixarem-se no meu viver. Precisam de uma raspagem. "Não se acostume com o não o faz feliz"...

2 comentários:

  1. Muito lindo Ricardim! É de arrepiar o coração. Grande lição. Abraço, Rodrigo Lopes.

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