Nas palmas das mãos!

Hoje me peguei contando minhas cicatrizes. Tenho três bem visíveis. Uma na bochecha direita, fruto de uma lança de madeira que um amigo jogou e a transpassou. Outra no braço do mesmo lado, quando carregava uma peça de vidro temperado e ela se quebrou, lançando sobre mim estilhaços. E outra na palma do pé esquerdo, quando pisei numa lata de sardinha e abriu um talho no pé. São visíveis. Essas não doem mais. Tenho cicatrizes interiores, em noites frias e escuras saem dos seus túmulos e me assustam. São cicatrizes de despedidas, de vocações adiadas, de amores e desamores, de saudades engolidas, de vidas amadurecidas às pressas. De pessoas queridas que se foram e eu não as disse um simples "até logo". De pessoas queridas que não se foram, mas eu me fui, e não sei o porquê. Na palma das minhas mãos tenho desenhado, com sulcos inscritos na pele, uma vela e um mastro. E estão em ambas as mãos. Estas, são cicatrizes vindas da minha alma. São um bilhete de Deus. Uma mensagem, um traço genético, que consigo traz a história de um povo. De todas cicatrizes que tenho, exteriores, interiores e as da palma da mão, que nessa noite me flagro a mirar, não me sai da cabeça o mastro e vela nelas inscritos. Como se eles dissessem para mim: "Ei você não se basta só.". Você depende do outro para lhe juntar e te dar sentido. Como a vela olhando para o mastro e dizendo: vem para perto de mim, para que nossas vidas sejam plenas. Penso, nessa noite fria, que muitos que passaram por nossa vida, nem cicatrizes externas nem internas provocaram. Eles possibilitaram que em nosso viver o mastro encontrasse a vela e nos fizesse avançar. Eles, carpinteiros do ser que são, juntaram peças de nossa vida, sem sentido sozinhas, e as fizeram avançar. Que legal. As palmas de minha mão me dizem que preciso de você. Que não me basto só. Que não sou independente. Que dependo de você para me fazer crescer. Me fazer melhor, me aperfeiçoar na arte de navegar na nave mãe Terra. Velas e mastros que se fundem na arte de amar e do diálogo. Nessa noite agradeço a tantos que juntaram minhas velas ao mastro, nos encontros que tivemos, e que me fizeram, quando cansado e descrente, velejar mais um pouco em busca de portos-seguros. Fizeram-me atracar em amanhãs mais seguros e fecundos. Gratidão é o que me inunda o ser nessa noite, mesmo pelas cicatrizes que vez por outra ainda doem, pois ensinaram-me o valor de recomeçar. Gratidão pelas costureiras e carpinteiros que juntaram mastro e velas em meu viver, fazendo-me navegar e avançar, mesmo em mares bravios. Eu te agradeço! Eu preciso de ti. Frases místicas de uma pessoa que olhou para as palmas da mão, numa noite fria, e descobriu que os sulcos nela impressos são os traços do coletivo que por mim passou e deixou inscrito nelas a sua história e esperança. Finalizo com o que uma amiga me disse e muito me tocou: "Alçar velas e navegar pra dentro de si mesmo é para os fortes... mas será sempre uma viajem de valor incalculável!"  Finalizo esse texto com quem me guia, o soprar do Espírito Santo. Pois, de nada adiantaria a fusão da vela com o mastro, se Ele não soprasse para que eu saísse de zonas de calmaria e estagnação e descobrisse novas possibilidades em meu viver. E é isso que te desejo ao final dessa leitura. Somos todos ecos do que deveríamos ser. Estaremos sempre em falta e navegando em arranjos vetoriais do ser. Todos, no desafio de crescer, temos vetores internos: com direção, módulo e sentido. Velas, mastro, mares e vento. Esses vetores, mesmo em ondas de inflexões, ainda assim apontam para o novo, para a liberdade e o amor.
Um infinito de possibilidades estão a tua volta, as apanhe sempre que puder! Elas poderão não se repetir nos ecos do infinito, do destino possível que reescreves, com teu agir no aqui e agora. 

6 comentários:

  1. Ow...muito bom meu jovem.
    Um abraço e continue a nós prestigiar com seus textos.

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  2. Meu irmão quando criança pisou num copo de requeijão. Um corte horrível. Ele diz que quando olha pra cicatriz ainda consegue se lembrar da dor - e isso já faz quase 25 anos. Interessante que a ferida está fechada, de certa forma restaurada, mas as lembranças parecem fazer questão de reabri-la. Ainda bem. Ainda bem porque não é apenas da dor que ele se lembra. Ele lembra que naquela pequena ilha com cinco famílias todos se mobilizaram para fazer com que aquele sangue parasse de escorrer. Uns ligando pra terra pedindo que enviassem um barco que o socorresse até o continente, outros juntando as gazes, esparadrapos e remédios, suas irmãs e outros amiguinhos que não o deixavam sozinho. As velas e os mastros. Sim, algumas cicatrizes possuem significados bem profundos.
    Fernanda Vilarim

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    1. Fernanda, obrigado pelo carinho do comentário. Todos nós temos pessoas que fundem nossas velas ao mastro e nos fazem melhores e maiores. Ajudam-nos a lidar com nossas dores do existir.

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  3. Ricardinho, muito me honrou o aparte em sua maravilhosa crônica. Parabéns por seus escritos! E obrigada por generosamente partilhá-los, nos instigando assim a sair da zona de conforto... e nos conduzindo a um exame do mesmo quadro de sempre por um novo prisma... da mais pura sensibilidade e inteligência. Grande abraço...
    Suamy Alencar

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  4. Querida Suamy, você me tocou com suas belas reflexões. Obrigado.

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