Sobre Circos, Navios e o Amanhã


    
Manhã de sexta reúno a equipe para discutirmos os rumos de alguns projetos. Entre um tema e outro, o assunto recaí na importância da equipe para o sucesso dos desafios que se apresentam. Valéria puxa o assunto e enfatiza como gostou da última experiência de posse coletiva no auditório, na qual todos se juntaram para vencer a enorme dificuldade de empossar mais de cem colegas em novas funções na Ditec. Impostar no sistema a posse requer muita atenção. Pois, caso tenha sido digitado um prefixo errado para a posse, dos mais de 18 que a Ditec possui, o cancelamento é trabalhaso. O processo operacional de gravar as posses é muito custoso. Outra coisa que torna o processo lento é que o funcionário precisa chegar para a posse com um conjunto de condições atendidas, caso contrário o sistema não roda a posse. Isso requer um bom planejamento e farta dose de comunicação prévia.
Valéria emocionou-se ao registrar aquele momento recente. Eu lembro. Lembro que compareci à abertura do evento, no qual o diretor fez uma saudação ao grupo. Quando terminou as falações era 15hrs. Saí do auditório com uma ponta de preocupação com o tempo. Precisávamos rodar a posse naquele dia, e só naquele dia, sob pena da promoção não impactar positivamente a folha de pagamento de agosto. Eis que às 16h30min as meninas entram radiantes no setor, trazendo as pastas dos promovidos em caixas de papelão. De longe olhei e penso: lascou alguma coisa. Mas que nada, elas conseguiram o impossível. Bateram o recorde mundial de posses. (risos)
Não acreditei e perguntei como fizeram o feito. Elas falaram: “planejamento com todos os envolvidos e trabalho em equipe na execução.”
Valéria continuou a falar durante a reunião. Seus olhos marejados evocavam o show do Cirque du Soleil que ela foi. Ali, ela notou que o melhor trapezista, contorcionista, dançarino malabarista, quando terminava seu número, sua apresentação, ia apoiar os outros no que precisava. Não ia para os camarins. Continuava a ajudar aos outros a também brilharem.

Às vezes ficavam ao lado do palco torcendo, só isso. Uns pegavam vassouras e varriam os papéis picados jogados ao leu no show anterior. Outros montavam o palco para o próximo número. Numa das cenas mais emocionantes que ela relatou. Um casal de trapezista faz um belo número, aí o imprevisto para o Cirque du Soleil acontece. A moça erra a passada e caí na rede de proteção. Silêncio total. O outro trapezista que fazia par com ela poderia esperar que ela subisse novamente as escadas e continuasse o show. Mas não, ele se projeta na corda e no meio do espaço vazio a solta, caindo na rede. Pega pela mão sua companheira de show e ambos descem sob aplausos e emoção incontida da plateia.
Valéria contava isso e agora quem chorava éramos nós. O maior trapezista do mundo, ao sair de cena, vira o melhor ser para o mundo, naquele momento de solidariedade e empatia.
Mas, quem pensa que trabalhar em equipe é fácil leia sobre o fenômeno da Enganação Social, descrito por 
STEPHEN P. ROBBINS, quando soma das contribuições individuais é menor, gerando uma entropia coletiva, uma espécie de sinergia negativa, se é que existe isso. Na enganação social a soma das individualidades, por exemplo, 1+1+1,  pode ser igual a 2, 1 ou em casos extremos 0. Ele atribui isso à percepção de parte do grupo que alguém está se escorando, chupando cana, fingindo que trabalha, e não acontece nada. Em grupos menos maduros, com menor nível de autonomia e consciência crítica, os demais que ralavam mais que o devido para cobrir a área do preguiçoso vão ficando chateados e no inconsciente coletivo reduzem seu ritmo também. Ele provou sua tese com um experimento de laboratório. Colocou pessoas para puxarem uma corda individualmente amarrada a um instrumento que media a força que estava sendo aplicada. Depois juntou as individualidades numa equipe e pediu que todos juntos puxassem a corda. Ele percebeu que em alguns grupos formados o resultado era menor que a soma das individualidades, e nunca as superava. Sendo sempre menor. Noutros grupos dava maior o resultado do que as contribuições individuais.
Então, cai por terra o lugar comum que diz que trabalhar em equipe é sempre mais produtivo. Depende, Robbins diz que isso só é possível com acompanhamento individual dos membros da equipe e celebração coletiva dos resultados. Assim o cara que se escora sente-se cobrado, o grupo sabe que estão de olho nele, e não involui.
A própria etimológica da palavra equipe: do antigo Francês Esquipe, “aparelhar um navio”, conduzindo-o com segurança ao cais. O “aparelhar” era um movimento delicado de puxá-lo para o local correto, na atracação no porto, com cordas grossas chamadas de camelo. Todos se envolviam e se um não puxasse, ou puxasse de forma atabalhoada, o prejuízo era coletivo e todos viam na hora o que estava dando errado, aliás, o resultado era palpável do sucesso ou fracasso. Então as Esquiper eram treinadas, motivadas, acompanhadas para fazerem seu trabalho com perfeição e evitarem prejuízos nos cais pela atracação indevida ou lenta.
Quem pensa que trabalhar em equipe é fácil...
Exige treino. Exige orientação. Exige aparar arestas. Exige um coaching que incentive a colaboração, cooperação e não o contrário como existem muitos por aí. Pseudo-motivadores que mobilizam as equipes jogando uns contra os outros.
Imagino as horas de treinamento que Cirque du Soleil investe na formação de suas equipes para o coletivo, para o sucesso grupal. Imagino que a exigência das competências da inteligência emocional e social permeie inclusive seus processos de atração e formação de talentos.
Trabalhar em grupo exige treino. Ralação, espaços de catarse, de avaliação da dinâmica grupal. Espaços de perdão, de recomeço.
O outro sempre poderá nos ferir, nos magoar, somos sensíveis. Somos subjetividades. Muito mais que racionalidades. Como nos sentimos passa por nossas experiências anteriores, história de vida e cultura, e até por distorções perceptivas e de comunicação. Somos assim, imperfeitos por natureza. E, o outro nem sempre tem acesso ao nosso sistema interior e pisa na bola. Se não houver espaços de feedback, de troca, de avaliação da caminhada essas coisas vão ficando mal resolvidas e o grupo empobrece. Todos para se protegerem de inimigos reais ou imaginários, entram na enganação social, no piloto automático. Entende?
Uma pena que vários gerentes chegam a esse posto achando que só os aspectos técnicos do cargo serão necessários para exercê-lo. Uma pena!
Quem pensa que trabalhar em equipe é fácil...
Exige inteligência emocional, humildade, respeito, ética, atitudes e valores como compaixão, empatia, diálogo tão raros nos tempos atuais nos quais tudo é descartável, ou se é reduzido ao valor monetário que produz.
Já integrei várias equipes: esportivas no Sesi quando nadava. Religiosas. Sindicais. Bancárias. Acadêmicas. Sociais na ONG Grupo de Apoio à Vida.
Em todas elas vivi cenas do Cirque de Soleill, ou dos navios franceses e suas ‘Esquiper”.
Cenas lindas nas quais todos eram tudo e tudo era todos.
Cenas das quais sinto uma saudade tremenda.
Também já integrei equipes com Enganação Social. Também reduzi meu ritmo ao ritmo do menos eficiente, numa espécie de protesto bobo e insano, fruto do nível de autonomia e consciência que tinha á época.
As lágrimas de Valéria ao relatar seus aprendizados com as posses e o Cirque du Soleil encheram meu coração de vida.
Chegará o tempo que a arte de trabalhar em grupo, num rico somatório de percepções e contribuições, fecundo à inovação, será muito, muito mesmo, mais difícil do que nos tempos atuais.
Nosso modelo de educação, de sociedade, está produzindo arrogantes, pequenos tiranos, pessoas com baixa tolerância às frustrações, do tipo cair na rede do trapézio.
Pessoas criadas por pais e mães que ensinam que para crescer tem que pisar, oprimir, machucar.
Pessoas criadas para sozinhas verem atendidos seus desejos, independentemente da coletividade.
É esse texto é démodé.
Como pai tentei incutir esses valores em meus filhos. Valor da simplicidade, da ajuda ao outro, da paz, da justiça, da cidadania.
Mas, tá ficando difícil. Outro dia fui numa cerimônia do colégio na qual algumas crianças premiadas, uns 20% do grupo. Os outros ficaram aplaudindo. Foi premiado o destaque em matemática, em português, em desenhos, no esporte... etc.
Não havia prêmio para o aluno amigo, o aluno solidário, o aluno bondoso, o aluno que dividiu seu lanche ou brinquedos. O aluno que não fez bulling, não agrediu seu professor ou colega.
Não havia esses prêmios. Os prêmios refletem o modelo de sociedade que estamos produzindo e criando nossos filhos.
Um modelo que incentiva o cara a cortar pelo acostamento e deixar uma fila quilométrica para trás, simplesmente porque ele acha que merece passar na frente de todo mundo e fazê-los de bobos. Ele merece, pra agora e já chegar a casa cedo. Os outros? Ahh os outros. Quem mesmo?
Então quando se somam essas individualidades em equipes, essas pessoas educadas pelas famílias, escolas e até igrejas para a prosperidade, para o sucesso, cada uma delas quer brilhar sozinha. Ninguém quer varrer o chão para o show do outro que vai começar.
Cada um, na sua fantasia de dominação, acha que o mundo gravita ao seu redor. E, numa ambição descabida, excluem qualquer possibilidade de consenso ou diálogo.
Da mesma forma que os Black Blocs vão às ruas para depredar o patrimônio, para agredirem, numa falsa pretensão de serem anarquistas. (Precisam ler mais sobre Anarquismo)
Existem as academias de formação dos “Black Blocs” emocionais.
São famílias e mais famílias; escolas e mais escolas; igrejas e mais igrejas “educando” para a intolerância, para a violência, mesmo que em palavras.
Os locais de trabalho também estão repletos de de Black Blocks corporativos. Gerentes, não gerentes, etc. Gente para o qual toda forma de diálogo, de aproximação, de busca de consensos possíveis, em áreas de divergência, é sinal de fraqueza.
E ninguém mais quer parecer frágil, humilde ou ceder. Está fora de moda.
Urge que pais e mães subvertam essa ordem reinante e instaure em seus lares novos tempos.
Urge que Igrejas, organizações e os movimentos sociais tragam à pauta, 
à agenda, à reflexão sobre a necessidade de outra educação, formação profissional e social. Que prime pela civilidade, solidariedade entre povos, humanização das relações e eduque para o respeito à diversidade.
Urge que nos processos seletivos para cargos gerenciais esses valores sejam preponderantes para nomeação de um gestor, pois só assim ele poderá educar e formar Equipe, e continuar a sua própria, nunca acabado, desenvolvimento.
Obrigado Valéria por suas lágrimas. Obrigado Senhor X que caiu na rede do trapézio para apoiar sua parceira.
Não deveríamos chorar ao falar de pessoas trabalhando juntas num único objetivo.
Deveria ser tão comum. Mas, no reinado do capital, no qual o templo maior é o Shopping, o Deus  é o Consumo, com sua deusa Marca, não estranho mais nada.
Estamos velozes e furiosos, querendo felicidade já e a qualquer preço.
A tribo do Ser anda em extinção. Mas, a semente dela é boa e forte.
Se cada um dessa tribo começar a questionar os valores atuais, começar a fazer sua parte para “deseducar” seu grupo de referência nas atitudes de morte, educando-os ou propondo reflexões sobre posturas e gestos de vida, quem sabe!
Há um enorme navio chamado Mãe-Terra, com sua tripulação chamada de humanidade que precisa urgentemente de várias “Esquiper” que ajudem a atracá-lo em segurança.
Somos poucos, mas somos fortes!
Venha para nossa esquiper... Há vagas para pessoas solidárias, éticas e justas na puxada do camelo do navio da Mãe-Terra para que ela atraque em segurança e seja sustentável para as gerações futuras. Sustentável em vários aspectos, inclusive no amor, afeto e paz!

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