Amor em três atos


O primeiro ato do amor chegou até meu coração quando percebi a camaradagem que existe no casal, que mora vizinho ao meu lar. Deixa eu contar-lhe melhor como descobri isso.
Numa das minhas caminhadas pós-expediente, deparo-me com pequeníssimos cajus avermelhados, antes muito comuns às áreas de Cerrado.
Hoje são muito raros. Elas não se prestam à atividade econômica, pelo seu diminuto tamanho, e são vítimas fáceis dos tratores que aplainam tudo para pavimentar terrenos e edificações.
São quase bichinhos de estimação da natureza, mimosos e suculentos, chamados de cajuzinhos do Cerrado
Então, decidi que voltaria ali amanhã, com a máquina fotográfica e uma escada para colhê-los.
No outro dia, os colhi do alto da barreira. Não sem antes documentá-los para posteridade.
Chegando em casa, guardei os suculentos pedúnculos na geladeira, para um tira-gosto da melhor qualidade, num sábado prazeroso e vindouro.
Quanto às castanhas, as deitei sobre terra macia, em dez vasos especialmente preparados, para que neles germinassem.
Tempos depois, ao chegar do trabalho, fiquei muito feliz ao ver que nove sementes vingaram, e delas cresciam frágeis e inseguras hastes de um verde que teima a morte.
Era a vida que se propagava.
Enquanto mirava as tenras e pudicas folhinhas, despindo-se de suas castanhas, escutei meus vizinhos conversando.
Miro o olhar e vejo que eles estão plantando uma árvore qualquer.
Admiro-os. Estão plantando juntos, e sob um sol desafiador. A vizinha não se intimida com a enxada e cavouca a terra. Seu esposo vem com um saco pesado de terra vegetal e deposita sobre o buraco, recém-aberto.
Já observo esses vizinhos há algum tempo. Primeiro, chamou-me minha tenção o fato de aos sábados eles lavarem o carro juntos.
Depois, observei que também caminham juntos. E, de quebra, passam bons momentos na pequena piscina que fizeram, conversando e relaxando.
Para completar, outro dia indo ao trabalho fraguei que o carro à minha frente era o deles, e vi que também vão juntos ao trabalho.
Devaneios à parte, tomei coragem e fui visita-los, levando quatro de minhas mudas de cajuzinho para presenteá-los.
Se alguém merecia recebê-las seria aquele amoroso casal.
Descobri que estão casados há oito anos.
Não era então fogo de palha de início de relacionamento. Era coisa duradoura.
O que mais tenho visto por aí, inclusive por aqui, são sintomas de solidão a dois, ou em família.
Cada um no seu tablet, mundo, TV, celular ou envolvidos em mil afazeres domésticos, tocados no modo solo.
Cada um no seu infinito particular.
Esse casal não.
Eles descobriram um jeito de criar encontros entre si, de cultivar proximidades: seja plantando, seja lavando, seja relaxando ou dirigindo.
Encontraram uma das chaves de relações duradouras e significativas: o companheirismo.
Para ser companheiro é preciso abrir agendas comuns.
Tem que aprender e querer tecer partes do tecido da sua vida, com o outro.
Sempre que volto do trabalho, e passo em frente àquela casa, sinto-me impelido a pegar uma enxada e chamar minha mulher para cavoucar a terra.
Sem querer, eles me ajudaram a perceber que minha vida a dois precisa de intimidade e cumplicidade.
De mais nós, fazendo coisas juntos.
Do que coisas juntas, fazendo nós.
No segundo ato do amor entra em cena a admiração pelo amado, pelo querido ou gostado. Evoco uma cena recente. Eu estava tirando foto do JG (João Gabriel), no presépio de uma praça central em Londrina, quando uma senhora cadeirante me abordou. Ela pedia ajuda para registrar a foto dela, com o seu filho, à frente do presépio.
Disse-me que seu filho tinha um pouco de “leseira mental” e que não sabia usar a câmera do tablet que ganhara de natal.
Fiquei solidário e fucei tudo, no aparelho, até achar a função correta e documentá-los para eternidade.
Fiquei estupefato coma cena. Ela cadeirante, ele com sequelas de uma paralisia cerebral que sofrera ao nascer, mas ambos encontrando-se num enquadramento de foto e sorridentes com a perpetuação de seus momentos a dois.
A expressão dela para ele era de pura admiração. A dele para ela, idem.
O tempo parou para aquele encontro de mãe e filho. Toda orgulhosa ela não se cansava em voltar as fotos e ver como ficaram.
Ofereci-me para fazer outras fotos, de mais cenários natalinos existentes na praça e a festa foi completa.
O segundo cântico de amor é a admiração. Quem admira o outro, deixa ele crescer em seu coração. Tem relacionamentos que se perderam no caminho por falta de admiração ao que o outro tem de bom. Desaprenderam a perceberem-se nas bonitezas da vida e só filtram, e selecionam, o que o outro tem de ruim, de não atendimento às suas expectativas.
Relações toxicas e doentias que se destroem mutuamente de tanta agressividade e “desadmiração”. Quem leu a biografia de Stephen Hawking, um dos maiores físicos da humanidade, viu o quanto de admiração sua esposa tinha por ele, e ele por ela.
Admirar-se é se interessar pelas coisas da vida do outro. É encantar-se e assombrar-se com a vida dele. Admirar vem do Latim ADMIRATIO, que veio do verbo ADMIRARI, “espantar-se”, formado por AD-, “a”, mais MIRARE, “espantar-se com, admirar”, de MIRUS, “maravilhoso”. O segundo canto do amor falar de abrir o coração para que o outro, na sua porção MIRUS nele habite.
Se o primeiro ato, ou chave, do amor é a Cumplicidade, e o segundo a Admiração, qual então seria o terceiro?
As mesmas pesquisas sobre as bases de relacionamentos significativos, que extrapolam os de casados, podendo ser também entre amigos e familiares, indica a generosidade como sendo o terceiro ato, ou chave - quase como um elemento constituinte.
Generosidade é um dos valores mais difícil de se definir. Afinal, em suas práticas se misturam com: bondade, doação, gentileza, cuidado, solidariedade, empatia, colaboração e compaixão.
Então, a generosidade é um valor-mãe - daquele que nele cabe um monte de outros valores, como os acima, mas todos com o mesmo enfoque: o de tornar a vida do outro um pouco melhor, mesmo que seja só investindo tempo em escutá-lo.
Quem pratica a generosidade quer o bem do outro. Despoja-se de si mesmo, abrindo-se ao encontro misericordioso com o próximo. Quer vê-lo feliz e bem. Desapega-se de si mesmo e se doa em mimos valiosos para o outro. Nem sempre materiais, aliás, quase nunca.
Sabe aquela noite gélida na qual você acordou para cobri-la adequadamente?
Sabe aquele seu cachorro velhinho que você ainda leva para tomar sol e o alimenta pacientemente?
Sabe aquele filho que te liga para ir buscá-lo na casa de um amigo, no meio do jogo de futebol e seu time preferido, e você vai?
Tudo isso são gestos generosos.
Hoje estava preparando um relatório e eis que adentra minha sala a Dona Estela, ela me dá um copinho com umas bolachas e me diz: “Trouxe para o Senhor, são bolachas de goma, de sua região”.
Quanta honra e que gesto generoso de Dona Estela. Quem recebe um gesto generoso fica rindo a tôa, e sabendo o porquê.
Sente-se percebido no meio da multidão. Sente-se valorizado e individualizado em suas necessidades.
Enfim, sente-se amado.
Precisamos voltar aos bancos de escola, da mãe-vida, para reaprendermos a ser mais cúmplices de nossos amigos e amados; ter para com eles mais eventos de admiração e menos de reclamações, e abrir janelas de oportunidades para a generosidade, sem querer nada em troca, só por se sentir melhor em fazer o outro feliz.
Seu Fritz vai passando pela calçada de minha casa. Apresso-me para cumprimentá-lo. Trocamos confidências cúmplices, daquelas que só fazemos quando nos percebemos irmãos de ideais. Seu Fritz admirou a obra que fiz no jardim de casa, duplicando a capacidade da fossa séptica. Por fim, me diz que tem umas mudas de banana d´água e pergunta-me se as quero. Digo-lhe que sim. Ali aconteceu, naquela calçada os três atos do amor.
Continuamos trocamos confidências urbanas e nos encantando com as formações de chuva que se espelhavam no horizonte. Então, lembro-me que ainda tenho 5 mudas do cajuzinho, e vou buscar duas delas para lhe presentear.
Os três atos constituintes, ou chaves, para a manutenção do amor precisam ser distribuídos e vividos, muito mais do que guardados e racionalizados.
Desse agir revolucionário, no cotidiano de uma sociedade excludente, individualista e excessivamente consumista, na qual tudo vira mercadoria, brotarão a paz e o bem-estar.
Um agir que nos desafia a não nos deixar apodrecer, na mesmice e mediocridade dos tempos presentes. Desafia-nos a germinar novas possibilidades do ser, na semeadura de cada encontro.

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