Acácia Negra


Aproveitei o horário do almoço para ir cortar o pelo.
Fui na Barbearia do China, ali na 716 Norte em Brasília, pertinho de um dos prédios em que trabalho.
Preço bom e sempre vazia.
Dessa vez, contudo, meu cabeleireiro estava ocupado.
Sentei-me para aguardar a minha vez quando uma jovem perguntou-me se era cabelo.
Falei que sim. E ela foi chamar o "China".
Eita, nunca tinha cortado o cabelo com a criatura que dá nome ao salão.
O China era mais conversador do que o barbeiro que me atende há uns 5 anos.
Puxou logo assunto sobre a Mega-Sena acumulada. Disse-me que se tirasse a Sena iria reformar o salão.
Deu uma sonora risada, correndo risco com a navalha tão perto.
Mas China, você continuaria trabalhando?
Ele me disse que faria uma baita reforma no seu salão e passaria a atender os necessitados.
Agora meu sorriso murchou. Eita, sinto cheiro de crônica.
China, na verdade é o João Batista Florêncio Sampaio. Ele abriu seu próprio salão em 2000.
E me disse que "não se pode passar por essa vida sem ajudar".
Contou-me então que já se inscreveu no cadastro de voluntários do Hospital de Base, indo cortar cabelos de pessoas que estavam a muitos meses ali internadas: "Sem nem a família mais visitar".
Também, já cortou cabelos de idosos, em asilos; e de crianças, nos orfanatos.
Até na quadra onde mora já fez campanha de arrecadação de alimentos, usando como moeda o corte de cabelo. Conseguiu congregar uns outros "Chinas" da vida e num sábado, botou até carro de som pra animar o corte e anunciar a campanha.
"Paguei até o alvará de um dia para ficar legal".
O corte "custava" dois quilos de alimentos.
Disse-me com orgulho que arrecadou quase meia tonelada. Ele e os amigos que mobilizou para a empreitada.
Enquanto falava comigo uma mocinha se dirige a ele. Ela pede sua bênção, ele a beija na testa e a abençoa. Ela senta-se numa das mesinhas de manicures. Deve ser a filha dele. Quanto amor e respeito.
"Dinheiro sem trabalho apodrece", falou o China todo cerimonioso. Como quem me revela uma grande sacada que teve pela vida afora.
Essa frase que o China falou hoje é comprovada por inúmeras pesquisas de psicologia. As pessoas precisam sentirem-se engajadas a algo, vinculadas, atuando em suas vidas com senso de propósito e missão. Precisamos de motivos e quereres para viver, precisamos de desafios e objetivos.
Se você pegar uma pessoa e lhe der tudo que ela precisa, ao ponto dela não ter mais porque lutar, ou até tirar-lhe qualquer desafio ou motivo de superação, essa pessoa vai morrer - psicologicamente falando. Pode até se entupir de frivolidades, de prazeres, mas quando o efeito deles passar ela vai se sentir deslocada, novamente.
Quanta sabedoria do China. Um saber simples, sem rebuscamentos filosóficos, um saber prático.
Quanta amorosidade do China em dividir seu ofício com os mais necessitados. Ele não é rico. Seu salão tem duas cadeiras, apenas.
Mas, garanto-lhes, ele é mais rico do que muitos outros donos de salão modernosos.
China é para a humanidade como o que a Acácia Mearnsii (Ou Acácia Negra) é para as águas sujas de lama que matam o Rio Doce.
Deixa eu te explicar melhor.
A cidade de Governador Valadares (MG) teve seu abastecimento de água interrompido, pela poluição do Rio Doce com a lama da Samarco.
A Estação de Tratamento não conseguia tratar a turbidez da água. A água estava turva ao extremo, quase barrenta, como consequência direta do arraste dos dejetos de mineração. Imagine o drama de uma cidade de quase 300.000 habitantes perder sua fonte de água.
Aí, aparece uma solução 100% nacional, para tratar águas com alta turbidez. O tanino da casca da Acácia Negra tem um polímero orgânico catiônico que age como floculante natural. Calma, sei que falei quimiquês.

Deixa eu te explicar: esse polímero atua "colando" partículas em suspensão. Aí elas vão se juntando, se juntando, até ficarem pesadas - como grandes flocos de barro, e caírem para o fundo do tanque, no processo de decantação.
Aí pode-se tirar a água da superfície que está limpinha limpinha, sem nenhuma turbidez. Quase transparente.
E onde entra o China na história da água?
Cada vez que o China foi cortar o cabelo de pessoas necessitadas, doando seus serviço profissionais aos carentes, ele foi o Tanino da Acácia para a humanidade.
Ele deixou o ambiente melhor por onde passou, mais puro e feliz. Decantou injustiças, decantou egoísmos, decantou sentimentos de exclusão e marginalidade sociais.
Quantas das vezes já cruzaram conosco alguns Chinas que catalisaram em nós as mesmas reações, acontecidas no tratamento das águas turvas do Rio Doce, decantando nossa impureza e nos tornando melhores. Mais palatáveis para nós mesmos e os outros.
Às vezes uma represa de lama se rompe e invade o leito de nossa vida, turvando tudo e tirando o sabor, as cores e a esperança de viver.
Nessa horas, só vemos escuridão, não há caminhos, tudo fica turvo. Nossas emoções ficam num estado de turbidez, selecionando apenas os aspectos negativos e pessimistas do viver.
Chamo a isso de turbidez emocional.
Perdemos a autoestima, a autoconsideração e até, nos casos mais graves, a dignidade.
Aí, cruzam o nosso viver pessoas-china, pessoas-tanino-acácia-negra que nos resgatam. Que ajudam a separar o lixo de nossa vida e a processá-lo para que outras áreas possam vicejar.
Podemos ser o tanino da Acácia Negra para o outro. Já parou pra pensar nisso?
Quantas pessoas chegam até nós confusas, desanimadas, esmorecidas. Pessoas com alta turbidez emocional que só precisa de uma ajuda para que elas processem sua dor, luto e perdas de qualquer espécie.
Muitos olham para elas e dizem: estão mortas.
Outros, como os técnicos da SAAE (Serviço Autônomo de Água e Esgoto) de Valadares, veem vida, basta misturar nelas o tanino da acácia que dá pra aproveitar 90% ainda.
Toda vez que acolhermos uma pessoa com amor, solidariedade, empatia, mansidão, justiça e perdão, agimos no seu coração diminuindo a turbidez emocional dela.
E, o melhor, a nossa também.

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