De meu espaço de observação privilegiado, numa mesa de feira livre da
pastelaria La Deysy, em São Sebastião-DF, o encantado aconteceu nesse
domingo.
Não é todo domingo que ele aparece. Nesse, ele reinou solto e parou o tempo para o assombro desfilar.
Eu estava comendo um pastel com caldo, dividindo a mesa com meu filho, o JG.
Eis que miro o olhar para o lado e vejo a cena encantada.
Um pai compra uma coxinha e um suco para sua filha, e pede uma das cadeiras de minha mesa.
Senta a filha nela e acocora-se, à sua frente, ajudando-lhe a alimentar-se e conversando com ela.
Ele não comprou nada pra si. Investiu R$ 5,00 reais num suco e coxinha para ela.
A cena durou uma bela eternidade. Como eternos ficam em nossos
corações os bons momentos. Ela, a pequena, virou princesa pelo toque do
amor.
Enchi os olhos ao ver ele ajudando-a a colocar o ketchup, e
depois abrir o suco de caixinha, e conversarem baixinho, trocarem
confidências.
Tenho investido pouco tempo verdadeiro no JG. Quando
estou com ele não me desligo do mundo. A cena que vi tocou-me
profundamente, preciso dar mais atenção e amor ao JG.
A energia do amor era tão intensa que tive vontade de reconhecer aquele pai. De pagar-lhe um caldo de cana.
Ali, no barulho de uma feira livre, na simplicidade de seus frequentadores, o amor pedia passagem.
Um amor sem luxo, sem ostentação ou vaidades. Sem piruetas
tecnológicas, sem artifícios materiais, sem grandes investimentos.
Apenas o amor do encontro. A menininha sorria de júbilo, em sentir-se
única.
Aquilo lá era um amor de entrega, de cuidado, de atenção.
De investimento na mais valiosa das preciosidades: o tempo para com o outro.
Aquela jovenzinha sabia que ali à sua frente o seu papai era só dela.
Não havia entre eles o celular, o “Uotizapi”, ou a ansiedade de sair
para outras compras, ou afazeres pendentes.
Acocorado, seu pai acolhia toda presença dela em seu coração.
Que cena linda! O bem é maior. Só não tem espaço na mídia. Não vende. Não apela.
Quantas crianças gostariam de estarem no lugar daquele menininha?
Muitas com brinquedos sofisticados e até tablets, mas sem pais que dediquem tempo a elas.
Tempo gratuito, simples, sem grandes preparações ou planejamentos.
Tempo de presença e encontro, no teatro de uma feira que naquela hora silenciou para ambos.
Nestes tempos de lama e tiros, temos que ter cuidado para não
generalizar afirmações de que o mal vencerá. De que a sociedade está
ficando pior.
Digo-lhes, não está não.
Na noites dos tiros em
Paris, pessoas ofereceram suas casas para acolher outra pessoas que
andavam atônitas ao leu, desorientadas. Taxistas liberaram a cobrança
das tarifas e ajudaram a muitos que não tinham como voltar, pelo
fechamento das estações de metrô. Amigos puxavam feridos pelas pernas,
mesmo dentro de uma “zona de guerra”, na qual as balas ainda zuniam. Um
pai carrega suas filhas, correndo do terror.
No outro dia, filas e
mais filas de doadores de sangue. Corta a cena: “Prefeitura de Mariana
pede que não enviem mais doações em bens materiais, só em dinheiro, os
depósitos estão lotados e já são suficientes”. O povo atendeu. Assim
como os jipeiros de 4x4 que saíram de todos os lugares vindo em socorro
de desabrigados, acessando locais que carros normais não adentram.
A solidariedade existe e pessoas boas idem, e em todos os povos.
Quem não dá bom exemplo é o Estado: sempre lento, corrompido e burocrático. Infelizmente.
Que um trator sequer não acionou para levantar barreiras de contenção à
lama que sangrava pelo vale do Rio Doce, condenando-o a mais triste e
mortal UTIs, a da mãe natureza.
Que ainda não indenizou nenhum pescador, ativando o seguro pesca.
Que não pune quem levou água com querosene para a população sedenta.
Um Estado de governantes que não sujaram os pés, em qualquer nível e
esfera política, indo sofrer com a população, limitando-se a darem
desculpas esfarrapadas para o acontecido, além de desencontradas. E tome
blá blá blás para seus currais eleitorais. Que ficam brigando em
ringues de partidos, esquecendo de unirem-se em causas de Estado.
Quanto aos sofredores? Não estão a sós. A população civil deu a
resposta: igrejas, times de futebol, empresas, clubes e associações
todos fazendo sua parte.
O povo é solidário. Em qualquer lugar do mundo.
Volto para o domingo de feira.
E, ainda anestesiado, olhando a beleza do amor de pai, e sua interação
com sua filha, escuto o Sr. Antônio da banquinha em frente me chamar.
Somos amigos.
Seu Ricardo, o sr. pode olhar minha banca enquanto
vou ao banheiro? A farinha custa R$ 5,00, a abóbora R$ 3,00 o queijo R$
12,00, o leite R$ 5,00, e assim por diante.
A alegria inundou-me.
Acabara de assumir um novo papel: auxiliar de feirante. Ninguém deixa
uma banquinha com quem não ama. Senti-me o mais amado dos clientes.
Estava falado, naquele domingo o amor estava no ar.
Quem disse que no mundo há lugar apenas para a desconfiança?
Por dez minutos assumi a barraca. Quase vendi uma galinha caipira, mas
esqueci o preço. Contudo, fiquei proseando com a cliente para que desse
tempo do Antônio voltar.
Ele volta, e o deixo com a cliente, não sem antes dizer que ela merece um desconto: “pois esperou”.
Aí, sento-me para terminar meu caldo.
Depois vou nele e pergunto:
- Vendeu a galinha?
Ele me diz que não.
- Oxente, e a mulher ficou só no moído foi? (moído = lero-lero, conversa mole)
Sorrindo me diz que receber bem “o moído” também faz parte da venda. E que, um dia, ela voltará e comprará.
Mais um ensinamento num domingo tão fecundo - e num dia de tanto luto, por lamas e balas – ambas fruto da sandice humana.
Que esse amor de pai que investiu o mais rico dos bens para presentear
sua filha: o de si mesmo, irradie-se no meu coração e no de todos que me
leem e para sempre.
Amém!
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