Cartas ao JG – Divida pipocas


Você passou o sábado em polvorosa, quase elétrico. À noite haveria a festa do Halloween do condomínio, e você foi convidado pela mãe do Gustavo para curtir a festa da casa deles.
Fui às pressas comprar com sua mãe uns tecidos, para fazermos sua capa do Drácula.
Tua mãe assumiu o posto de design de moda de monstrinhos e fez uma produção bacana, com direito a maquiagem tenebrosa.
Perto das 19hrs você zarpou pra casa do vizinho, levando sua abóbora para recolher guloseimas.
Não sabíamos bem das regras e a enviamos completamente cheia. Dias depois você nos alertaria: “era para ir enchendo nas casas”.
Fomos ver um filminho e vez por outra saíamos à varanda para ouvir a algazarra que faziam. Tinha umas quarenta crianças na festa.
Perto das 21hrs, você sobe as escadas frenético, vem pedir autorização para participar do desfile de fadas, bruxos, fantasmas e assemelhados, com direito até a um homem-aranha no meio, que sairão pelas casas do Condomínio coletando doces, com ameaças: “doces ou peraltices.”
Não poderia perder aquilo e fui contigo, levando a câmera fotográfica.
A cena era dantesca e belíssima. Um monte de pirralhos e seus pais, todos a caráter, mais parecendo uma procissão de seres de outros mundos.
Você gargalhava e estava radiante. Em alguns momentos ia para o início da fila, outros para o meio, sempre seguido pelos seus fiéis amigos: o Gustavo e o Rafael.
Eu procurava me posicionar sempre à frente do cortejo para pegar as melhores cenas.
Umas 6 casas do Condomínio se voluntariaram para receber o cortejo, com mesas fartas de doces, e decoradas ao estilo teias de aranha.
Gostei do que esses lares proporcionaram a vocês, ano que vem quem sabe.
Então, passei a ficar preocupado e já na segunda casa.
Notei que havia um grupo de umas 12 “crionças” que por serem um pouco mais velhas disparavam à frente dos menores, e de seus desajeitados pais-zumbis.
Essas oncinhas raspavam os doces que haviam nas mesas, colocandos-os até em caixas de papelão que levavam. Quando vocês chegavam não tinha mais nada.
Só o desgosto na face de fadinhas angelicais e bruxinhos inocentes.
Para aquelas crianças espetas, não bastavam as prosaicas cabeças de abóboras para encher. Não eram suficientes para a gana deles. Imagino-os chegando em casa, após o cortejo. Peitos estufados, eufóricos e se sentido heróis por terem sido os “vencedores” da corrida às guloseimas.
E, em alguns casos, se não todos, até sendo reforçados pelos pais.
Na terceira casa, o fenômeno voltou a acontecer, e umas mães reclamaram. Não adiantou muita coisa. A ganancia contaminou a horda, e muitos passaram a imitar o gesto egoísta.
Para desespero de seus pais. Que, contudo, não se posicionavam.
Eis que lhe vejo saindo da multidão, com expressão cansada. A da primeira foto, acima.
Não deve ter sido fácil resgatar, da mesa de doces, aquele saco de balas e as pipocas, competindo com as onças-crianças.
Eis que chega os teus amigos: Gustavo e Rafael. Não há mais nada na mesa para eles.
Peço-lhe que divida sua pipoca com eles.
Você faz um gesto insatisfação, logo diluído com minha expressão de desaprovação.
E digo-lhe: “Divida com os amigos. Está difícil chegar às mesas de doces por causa dos grandes e você corre muito. O Gustavo está cuidando do Rafael. ”
Você divide as pipocas.
Não deveria ser assim. Não deveria ser campeonato de quem corre mais, ou de quem é mais forte e menos educado.
Nas próximas casas, acabei por perdê-lo de vista.
Eis que de longe te vejo, perto do Gustavo e Rafael.
Não acredito na cena. Passo as mãos nos olhos.
Você vem correndo em direção a eles e divide seus tesouros, recém-amealhados, com cada um deles. E fica muito feliz. Não me viu. Foi um gesto espontâneo.
Fiquei emocionado. Você aprendeu e praticou a lição do desapego, do compartilhar e da empatia.
Há salvação para a humanidade.
E, passa pelos pais. Pela educação de base.
Podemos ensinar novos hábitos, mais éticos, inclusivos, justos e solidários?
Sim, nós podemos!
A carta para ti é a de um reconhecimento por ter aprendido a doar.
Que você continue assim, meu querido JG. Há vagas para pessoas boas, mansas e gentis.
Mesmo que tudo ao lado lhe desafie a ser o oposto.
Assim sendo, pela vida afora, quando eu já estiver na melhor das vidas e não estiver perto para te ensinar; conte com teus irmãos e com você mesmo para continuar a desaprender hábitos ruins e infelizes, internalizados pela convivência com a escória da sociedade.
Cuidado com o efeito manada, ou a burrice das hordas.
Permita-se aprender novos valores, comportamentos e posturas diante da vida.
Mesmo que esteja só! Garanto-lhe que tua vida terá mais satisfação e paz ao perseguir valores de fraternidade, ética e comunhão.
Sabe filho meu, tem muita gente querendo ser feliz carregando as mãos cheias de saquinho de pipoca, sem dividir nada com ninguém.
Bobinhos.
Muita gente querendo ser feliz cultivando um estilo de vida ganancioso, falso, agressivo, extremamente competitivo e pouco solidário. Além de enchendo a cabeça com tudo que não presta sobre o outro, si mesmo e a vida.
Ficam com vidas vazias: de família, de amigos, de valores, de experiências, de ativos prazerosos não-monetários, de prazeres simples e pores de sol.

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