Fruto e Flor


Manhã de sábado aproximo-me do terraço de laje e vejo ali, vermelhinha, uma seriguela toda oferecida. Dá pra colhê-la sentado nas cadeiras de pneu. Essa seriguela tem história. Assim como essas cadeiras, já narrada noutra crônica que está no blog: Bode com Farinha: Um conto de Natal. Vejam em:
http://bodecomfarinha.blogspot.com.br/…/um-conto-de-natal.h…
Para você que me ler é só uma frutinha vermelha. Para mim, ela é uma sobrevivente. Filha de uma árvore que seria decepada, quando da obra que fiz recentemente. Foi condenada por tirar o lugar da futura churrasqueira, no piso inferior do terreno de minha casa.
Mas, armado de alucinada indisciplina conjugal, o que pode ser um perigo e fortemente não recomendo, contrariei minha esposa e só fiz uma poda radical de uns 2/3 dela.
Minha esposa engoliu a poda, não sem antes soltar umas farpas. "A área da churrasqueira não ficará boa..."
Ficará, ah! se ficará.
Então a arvorezinha, agora toda diet, esgueirou-se inteira para cima do terraço. Como quem toda oferecida por tê-la deixado viver. Como aquele cãozinho que vem pro colo do dono, em reconhecimento aos cuidados que recebe.
Não sei se foi charme, gratidão, capricho da natureza, mas o galho viajou uns 3 metros, contrariando qualquer lógica do lugar onde está, para produzir essa cena.
E, agora, ele compõe justamente a área criada por minha esposa no terraço superior, formando com o poste de luz uma cena bucólica. Então, como quem se prepara para um banquete, colhi e degustei a primeira seriguela da uma árvore quase condenada à morte.
Saindo para caminhar, vejo que na minha calçada a Paineira Rosa dá sua primeira flor.
Fico emudecido e emocionado. Ando com um olhar mais atento a tudo e a emoção flui melhor do que há 20 anos.
Essa paineira foi duas vezes condenada. Na primeira, pelos moradores que foram escolher na sede do condomínio as árvores de suas calçadas. Ninguém queria pegá-la. Ela "jazia" encostada num tronco de uma mangueira. Os jardineiros me disseram que os espinhos nos troncos desestimulavam os moradores.
As paineiras sofrem muito preconceito, sobre essa árvore de minha calada escrevi a crônica Eu-Bem-Te-Vi, presente no blog Bode Com Farinha em:
http://bodecomfarinha.blogspot.com.br/…/04/eu-bem-te-vi.html
A segunda condenação deu-se ano passado, dois anos após plantada. É que foram fazer as calçadas do condomínio e o pessoal da obra encrencou com sua posição na antes calçada de grama. Disseram-me que ela teria que ser sacrificada, pois não daria para passar um cadeirante pela calçada, com ela bem no meio. Argumento justo e ético, sobre o qual não tinha o que falar.
Mas, propus que ela fosse transplantada e ficasse mais próximo de meu muro. Assumindo os riscos de derrubá-lo, quando adulta. Se acontecer, no futuro, então afastarei o muro para dentro de meu lote.
Os funcionários do condomínio disseram-me que ela morreria com o transplante. Mas, acreditei que não e autorizei assim mesmo. Afinal, morta ela já estava mesmo, para dá lugar aos bloquetes de cimento da calçada nova, aqueles que substituiriam a grama.
Percebe, amigo e amiga, o porquê de minha emoção ao ver sua primeira florada?
Não sabemos do impacto de nossas ações nas vidas das pessoas, com as quais cruzamos, pelo bom, belo e virtuoso.
Só sabemos que algumas dessas ações, lá onde dobra a esquina do infinito, podem gerar frutos e flores.
Nesse domingo esse é o convite. Que possamos alterar o destino de pessoas, com as quais interagimos, para melhor e naquilo que estiver ao nosso alcance. Pensemos nelas como essas árvores, condenadas que estavam, e que talvez seja nosso gesto, um único gesto, quem as redima e devolva-lhe a dignidade e esperança.
Tem sido mais fácil cortar as pessoas de nosso existir, devolver a elas aquilo que de ruim estamos recebendo.
Tem sido mais fácil não acreditar nelas, não ver flores no futuro de suas existências, não ver frutos em todo seu potencial escondido.
Digo-lhes, não turvemos nossos olhos sobre o potencial humano.
Podemos mudar realidades, podemos revolucionar situações dadas como imutáveis. Podemos fazer nossa parte, para tirar a lama do rio, ou doar o sangue para graves vítimas de atentados.
Sempre podemos.
Ei amigo e amiga, então não é hora de jogar o tapete e desistir daquele que com ti convive.
Ele pode estar passando por uma fase difícil. Tendo um facão emocional açoitando-o todos os dias.
Ou pessoas querendo tirá-las de suas vidas e fazê-los sentirem-se piores ainda.
Ajude. Abrace. Ame. Perdoe. Acredite. Invista um bocadinho de você mesmo para reanimá-lo à vida. Não deixe que os outros o machuquem ainda mais. Defenda-o. Todos os dias cruzo com pessoas que fazem isso: silenciosamente, solidariamente, só pelo simples fato de quererem tornar esse mundo um lugar melhor do que acharam. Ou, devolver o que receberam da vida, em gestos espontâneos de gratidão e generosidade gratuitas.
Querida Seriguela e Paineira Rosa, obrigado pelo gesto de gratidão, em forma de fruto e flor. Sempre soube que vocês ainda dariam uma resposta à vida, emudecendo quem te perseguia, e até fazendo que eles agora te protejam e admirem. Vocês venceram. Viva!!!!
Para mim, sempre que repousar à sombra de seus galhos lembrarei de vocês como aquelas que desafiaram a morte, e que ousaram reaprender a viver: mesmo severamente podadas, rejeitadas ou transplantadas para outra terra. Vocês são metáforas dos sobreviventes, de todas as nações e tragédias, grandes ou pequenas.

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