A Arte de Fazer Compotas Emocionais.



No início da tarde, consigo finalmente dar vazão a minha caixa de e-mails, e não há reuniões agendadas. Trata-se de uma cena rara. Alívio e paz invadem minha alma.

Um silêncio respeitoso habita o setor. Meus amigos percebem que estou guardando alguns objetos numa caixa. Fazendo malas corporativas. 

Agora a mesa está limpa, gavetas arrumadas, fatos inéditos em meu viver.

Com o olhar, recolho fragmentos de mim mesmo expostos em cada canto de minha “baia”. Preparo-me diferentemente para o fechamento desse ciclo. Para viver mais um rito de passagem.
Que no mais tardar, em natalina data, ou no raiar dos Reis, deverá acontecer. 

Acredito que todos temos momentos marcantes de fechamentos de ciclos. 
De despedidas, para sair e roçar noutros campos. 

Daquelas que colhemos um monte de coisas boas, lembranças mil e dela partimos com muitas sementes de esperança, mesmo que regadas por doces lágrimas.

Daquelas de quem parte em busca de outros objetivos, motivados por sua própria busca. 

Na cantina, as copeiras dizem que farão o abaixo-assinado do “Fique”. Que carinho simples e tocante. Vivo intensamente cenas de minha despedida vindoura.

Ah se eu tivesse aprendido a vivê-las antes.

Considero que há dois tipos de fechamentos de ciclos. Os ruins e os bons. Os ruins são aqueles que deles queremos nos livrar sem deixar marcas, nem levar nada dali. 
Engolimos em seco e fechamos a porta. Algumas, contudo, ainda ficam querendo reabrir, e nos fazer sofrer, mesmo anos depois de lacradas.
São porões fétidos. Dessas despedidas, quero distancia e nada de festejos. 
Não falo delas. Falos das despedidas boas.

Como aquelas de quem se despede da casa dos pais quando casa. Ou da cidade natal, quando migra.
Ou até daquele primeiro carro que comprou, juntando até o pó de cifrão, e o usou por dez anos, até finalmente ter uma graninha extra e poder trocá-lo. Do primeiro emprego. Da turma da faculdade. Do grupo da igreja.

Daquelas de quando voltamos de um lugar bacana que conhecemos, quando deixamos amigos do bem, com cenas bem vividas e experiências que galvanizaram nossa existência.

Mês passado um amigo confidenciou-me que se aposentadoria. Disse-me que não viria na segunda e pronto.
Disse-lhe que aquilo era insano. Que aquela falta de fechamento não faria bem à sua saúde mental.
E dei-lhe uma dica, que ele seguiu à risca. Anuncie um mês antes, e vá arrumando as gavetas, despedindo-se de todos que te tornaram quem tu és. 

Não saia corrido de onde é feliz. Não temas a saudade boa. Não temas chorar de emoção, ou agoniar o coração. 

Essa é a hora do fechamento de um ciclo, e deve ser com chave de ouro. 
Hora encantada.

Ah! Se tivesse aprendido isso uns trinta anos antes.
Teria me despedido melhor da Comunidade de São Sebastião, em Campina Grande-PB, na qual fui seminarista.
Minha despedida dali foi como quem está fugindo do pai da noiva. Numa noite de Celebração da Palavra, anunciei que não seria mais seminarista, e rompi uma relação amorosa, e espiritualmente fecunda, abruptamente.
Não me dei o direito de abraçar calorosamente e lentamente aquele povo simples. De visitá-los e despedir-me como um homem de verdade deve fazer. Fui covarde. Fugi do turbilhão de emoções e fechei aquela porta para mais nunca abri-la.

Nunca temos certeza plena de nada, creio que essa pressa de fechar alguns ciclos de vida é para que não nos confrontemos com nossas dúvidas, à espreita numa curva qualquer.

Mas, é justamente o confronto que nos dará a plenitude de ter gozado a vida até a última gota, na sua completude e belezura, mesmo na complexidade e caoticidade de decisões não matemáticas. Que nunca caberão num excel. 

Eu não era bom em despedidas, e acabava botando os pés pelas mãos. 

Ah! Se pudesse voltar as cenas de minhas históricas rupturas. Teria feito bolo para meus amigos da Dipes, como fui feliz com eles e nos projetos que tocamos. 

Mas, eu era apressado. Ansioso e agoniado do juízo. Se eu pudesse voltar o tempo. Viveria cada despedida como quem toma vinho bom.
Aquele maremoto de sentimentos me invadia e num transe contraditório me nocauteava.

E eu negava a dor. Fugia dela. Era o medo de perder o apego, era o medo de perder os vínculos. De processar o sentimento que ficava soprando no ouvido: será, ou “aqui é meu lugar”. E dali partir em busca de outros horizontes, desconhecidos.

Paradoxalmente, o medo de enfrentar as perdas emocionais me levava a maior delas, a de não fechar ritos de passagem.
Ou, a de não se permitir vivê-los, degustá-los lentamente - como quem quer guardá-los em conservas emocionais - nas compotas do coração.

Assim foi também quando vim pra Brasília, em 1999, deixando a ONG Grupo de Apoio à Vida, e que fui um dos fundadores, sem uma despedida de respeito. Deixando apressado os filhos, pais, história de vida e amigos em Campina Grande-PB. Ainda hoje sinto falta de ter parado um pouco e feito os ritos finais de uma página que fechava. Parti dali enlouquecido, sem ter certeza alguma, apenas a de pobres e mortais amantes, daqueles que ousam ouvir os sinais do coração e por eles se deixa guiar. 

Faria tudo novamente, só que com umas dez despedidas. Mesmo doloridas. Fazendo a coisa certa. Como cabra de responsa e coragem.

É amigos, costumava sair às pressas, como quem se escondia de si mesmo, como quem se envergonhava das decisões, cuja certeza delas nenhum mago da Terra garantirá, ao adentrarmos e alterarmos o carrossel do destino. 

Só provando de nossa essência, de sonhos em forma de "agora é comigo" é que saberemos. Num tempo ao longe, um tempo de brevidades...

Nossa existência precisa de ritos, de cerimônias, de pequenas vivências de páginas viradas.
Somos eternos demais para sair batendo a porta dos lugares em que deixamos sementes e raízes.
Então, caro amigo e amiga, não temas sofrer a mudança de si mesmo para o desconhecido.

Permita-se vivê-la intensamente. Lágrimas boas não adoecem. São fecundas de presenças, mesmo que na ausência, como a saudade.

Quando estiver perto de mudar, abrace bastante, faça fotos, guarde aromas, sabores, cores e texturas. 
Traga bolos e comemore.

Um dia isso ainda fará parte de sua história. Aí saberá, ao abrir as comportas emocionais, que cozinhou com as boas despedidas que viveu, o sabor delas em teu viver.
Degustarás cada momento, evocando-os com satisfação. Afinal, doces que estão, anos depois, são essas compotas emocionais quem garantirá a fecundidade do solo da esperança, nas manhãs vindouras.

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