Pensamentos Perfumados



Sigo para o trabalho ouvindo Adios Nonino, um belo tango de Piazzolla.

A música me faz lembrar do que Paulo falou em sua Carta aos Filipenses, capítulo 4, versículo 8:

"Finalmente, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se alguma virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe o vosso pensamento."

Os belos acordes me fazem louvar a vida.
Durante o trajeto, fragmentos de pensamentos - evocados do último final de semana, pipocam em meu ser.
Das cenas que rememoro, um olhar não me sai da cabeça.
Um olhar de um jovem aprendiz de engraxate. Que vendeu seu celular, comprou uma caixa de engraxar sapatos, botou o terno de ir ao culto, e foi para a labuta. De sapato em sapato, tentava conseguir ajudar sua mãe a pagar o aluguel.
Embora de sandália, paguei uma engraxada para um dos garçons, o que ele escolhesse, e perguntei-lhe sobre como andavam as coisas.
Aí contou-me sua história, dizendo-me de sua aventura no novo emprego, estando há quatro dias nas ruas de Goiânia-GO, mas que pelo feriado da Semana Santa a cidade está deserta. A maré não está para sapato, e sim para tênis.
Aí ele recebe o dinheirinho da engraxada, para de conversar e senta-se sobre a caixa.
Quanto a mim, volto-me para os meus, embora continue a olhá-lo de soslaio. Ele passa bons minutos com a expressão da foto.  Aquele olhar me marcou. Um olhar de quem se sente perdido diante de um futuro incerto. Um olhar de espanto, espanto de sim mesmo diante da dura realidade.
Chego ao hotel e lembro-me que deveria ter pago uma rodada de graxa para todos os garçons, não me faria muita falta e alegraria a noite daquele jovem rapaz. Mas, já era tarde para a redenção de minha culpa.  Todos que possuem algo mais, têm sobre si uma hipoteca social. Precisam retribuir.
Outro pensamento invade-me: de cenas idílicas. O pequeno JG varrendo a calçada da praça, com um resto de pendão de Buriti, e mais à frente uma jovenzinha chorando de soluçar, sozinha no banco de praça, da Praça Tamandaré.
Acho que andaram varrendo o seu coração de menina-moça, seria algo do reino do amor?
Como dói as dores de amor, como varrem nosso coração para longe!
Tomo coragem e sigo com o JG até ela. Ponho a mão em sua cabeça, a abençoou.
E digo-lhe que Aquele que ressuscitou cuidará dela, desejo-lhe a Sua paz e sigo. Ela agradece com olhos de lágrimas caudalosas.
Bateu fome e sigo com o JG até a “praça de alimentação” da Feira da Lua, que fica na Rua 5. Escolhemos uma barraca na qual possamos nos abrigar de um pequeno chuvisco. Fiquei próximo da loja da HP, na Barraca Ki-Delícias Tortas e Panquecas.
Logo estabeleço uma prosa com seu proprietário, o Sr. Lucimar Rodrigues.
Ali, em pé do balcão, tomo uma cervejinha e o JG se diverte contando os transeuntes que vestem vermelho. Juntos, esperamos Cristina, minha esposa, que alegremente bate perna nas barracas de roupas e bijus -  sem marido chato pedindo para ir embora. 
Eis que ao meu lado, uma senhora comenta com suas filhas que vai reservar o dinheiro da passagem de ônibus. E, com o que sobrará vai pagar um lanche para sua família.  Sobrou R$ 10,00. Ela pergunta o preço da torta, o Lucimar diz que é R$ 12,00. Ela pede um desconto, pois só tem R$ 10,00.
Ele vende. Grande Lucimar!
Saio do balcão e volto a sentar-me onde estava. Agora bateu fome. Delicio-me com um empadão. O JG se atraca com um pastel.
Olho para o lado e vejo a cena. Aquela mãe está dividindo uma única torta,  com ela e suas duas filhas. Cada uma com uma colher de sopa vai raspando o petisco. Elas estão esfomeadas, e a porção é pequena para três pessoas.

Lembro de meus tempos de pindaíba. Saia com a ex-mulher e os três filhos para passear pela cidade. Não tinha dinheiro para restaurantes.

Dava uma dez voltas pelo centro e parava num barzinho chamado Bananal.

Pedia um quintin de cachaça, um refri de 2 litros, um tira-gosto de picado (espécie de sarapatel).

Aí pedia cinco pratos e farinha. Fazia um pirão com o caldo e dividia o "aglomerado" com os filhos e a mulher. Uma porção para cada.  Rodrigo não comia a dele. Dividia com os irmãos e me dizia que gostava mesmo era de roer os ossos. Alguns osso que acompanhavam o prato, do pé de porco.

Era "almoço" pra cinco. Saíamos com fome, empanturrados de farinha, mas era o que podíamos pagar, e éramos muito felizes.  Mesmo com pouco.

Voltando à barraca, chamo Lucimar e digo-lhe que ele ofereça mais uma de grátis. Que bote na minha conta, mas que não diga que fui eu. Que ele diga que foi “oferta da casa”. Ele segue o roteiro e a família vibra de felicidade.
Eles não estão tomando nada. Fico remoendo se deveria pagar um refri.
Fico em dúvida.  Temo ela perceber a trama e sentir-se constrangida. Desisto do refri.
Na saída, noto que ela pega uma garrafa vazia de Coca-Cola, numa das mesas, daquelas de 600ml, e pede que a um empregado do Lucimar que a encha com água. Daquelas garrafas de vidro que guardamos na geladeira.  Depois, segue feliz dando água às filhas.
E, eu fico remoendo culpa, a do refri não doado.  
Sr.Lucimar aproxima-se e elogia o gesto. Aí me conta que todo dia um catador de latinhas, aparece na sua barraca, perto do fechamento da feira, pelas 22hrs. É seu cliente especial.
Deixa eu te explicar.
Há  uns meses atrás, aquele catador de latinhas, começou a abrir lixos de seu estabelecimento procurando resto de comida.
Ao ver aquilo, Lucimar disse-lhe que doravante sempre haveria um empadão novinho, sem ser do lixo,  para aquele homem.
Durante uns sábados ele comeu o empadão. Semanas depois, não aceitou mais.
Sr. Lucimar perguntou-lhe o porquê. Ele falou que não era justo, e que estava se sentindo culpado, por se alimentar enquanto seus dois filhos catavam latas noutros trechos da feira, e ficarem com fome. Assim, ele não queria mais comer sozinho. Preferia juntar restos e levar para eles. Sr. Lucimar fez então um gesto que poucos fazem, disse-lhe que dali em diante o catador de latinhas e seus filhos sempre teriam direito a um empadão, e um refri, após o fechamento da feira, na sua barraca.
E, desde então ele os considera seus clientes mais especiais.
Contou-me sua história, do quanto ralou na cidade grande, vindo ainda criança do interior e sem posses. Do quanto lutou para criar seus filhos e educá-los.

Falou de sua esposa, a Joana, a que ficava perto do caixa da barraca.
Falou dela com com tanto amor, e de seus 37 anos de casado, que seus olhos brilhavam.
Em cada cena do casamento que relatava, dela emanava um jorro de admiração e gratidão pela sua esposa.
Pelo apoio que dela sempre recebeu, e pela sua incansável luta numa atividade pesada que é a de feirante:  desde o preparar muito cedo os quitutes, comercializá-los, e, depois recolher tudo.
E, no dia seguinte já partir para outra feira. Sempre ele e ela.
Falou que sabe o que é ser pobre e que sempre ajuda e procura uma forma de retribuir.
Tanta gente congrega em igrejas, de todos os credos, e não tem o espírito amoroso e solidário do Lucimar, tantas!
Falou-me que têm uns jovens que pegam as mercadorias ainda na validade, que sobraram de uma feira que foi fraca, e levam-nas para doarem para necessitados.
Falou-me com tanto amor de sua família, de seus netos e netas, das filhas e filhos.
Precisar compartilhar com vocês. Se cada um de nós retribuir um pouco, se doar um pouco, abrir mão da individualidade, do egoísmo, dos armários abarrotados de roupas e sapatos que um dia “poderei usar quando a moda voltar”.
Precisamos de mais Lucimares mundo afora.  Precisamos retribuir.
Tanta gente poderia ser ajudada.  Podemos fazer isso em todos os locais. Com nossa profissão, com nossa cidadania, com nossa doação de tempo, de amor, de respeito, de um pouco de dignidade para o outro.
E o que fica de valor para quem doa se doa, é infinitamente maior do que o de uma engraxada de sapato, um afago na cabeça, um empadão goiano.
A música vai chegando ao final. Um perfume invade o carro.  De onde virá.
Estarei sonhando olfativamente falando?
Lembro-me da canção: fica sempre, um pouco de perfume, nas mãos de quem oferece rosas.
Ah, ele vem de meus pensamentos. Pensamentos bacanas são perfumados.  Lucimar e Joana são perfumados. Perfume interior, e dos bons. Melhor que francês. 
Sobre isso Paulo não escreveu. Mas, que são, são!

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