Uma das cenas que vez ou outra voltam à minha mente, e olhe que meu cérebro é amnésico, é a de batidas de palmas na porta de meu lar, vindas da calçada, quando de minha infância e juventude, uns 35 anos atrás.
Eu escuto aquelas palmas até hoje.
Às palmas, sucedia-se um grito em forma de lamento:
"Ô de casa, uma esmolinha por amor de Deus”.
Nessa hora, mamãe ou Nininha, mandava o moleque que estava mais próximo ir buscar a lata do pedinte.
Àquela época chamávamos eles de "Esmolé".
Eu saia para calçada, e aqueles olhos que se negavam a me olhar entregavam-me uma lata: de doce, de manteiga, de queijo, e, em algumas vezes, até de tinta.
Os menos miseráveis tinha mais de um tipo de lata, nos quais iam separando os alimentos por tipo.
Mas, em muitas vezes, a lata ficava com tudo misturado dentro, mais parecendo um sopão.
Os menos miseráveis tinha mais de um tipo de lata, nos quais iam separando os alimentos por tipo.
Mas, em muitas vezes, a lata ficava com tudo misturado dentro, mais parecendo um sopão.
Algumas delas já cheirando forte.
Minha mãe, ou Nininha, pacientemente colocavam os restos das refeições ainda aproveitáveis – acomodando-as na lata, ou em sacos plásticos, para não se misturarem ao que ali já continha, caso já viessem com algo.
A lata era tampada, e eu corria para entregá-la novamente.
Alguns desse pedintes traziam seus filhos, de minha idade, e eu ao vê-los ficava mais triste ainda.
Alguns desse pedintes traziam seus filhos, de minha idade, e eu ao vê-los ficava mais triste ainda.
Isso era comum nas ruas do bairro da Prata, em Campina Grande-PB, nos idos nos anos 70.
Eles, com o resto de dignidade que ainda tinham, negavam-se a comer na calçada, num prato feito. O objetivo era levar para casa, certamente para alimentar mais alguns e guardar as sobras.
Que grandeza, na miséria!
Aquilo repetia-se todos os dias, e como numa romaria cadenciada, um passava, depois outro... depois.
E, e noite adentro, palmas novamente.
Mamãe ia juntando o que dava para doar e distribuía entre tantas latas.
Mas, o que mais me doía era quando da cozinha lá de casa, ouvia a resposta ao pedido de: “uma esmolinha por amor de Deus”.
E, e noite adentro, palmas novamente.
Mamãe ia juntando o que dava para doar e distribuía entre tantas latas.
Mas, o que mais me doía era quando da cozinha lá de casa, ouvia a resposta ao pedido de: “uma esmolinha por amor de Deus”.
- Perdoe, passe outra hora... não tem mais nada.
Em algumas vezes, ouvia após as palmas: "não é ninguém não, é um Esmolé."
Não era assim nominado por maldade, era uma simplicidade em descrever o invisível, o indescritível.
Nunca me conformei com a exclusão daqueles molambos em forma de gente.
Durante toda a minha juventude e “adultescência”, sonhei e lutei para que um dia eu não escutasse mais aquelas palmas.
Décadas depois, esses dias chegaram. Já não escuto, quando visito a casa de meus pais, o lamento: “Uma esmolinha por amor de Deus”.
Espero que esses tempos de trevas que nosso país viveu – de um verdadeiro Apartheid econômico e social - com a falsa promessa de esperar o bolo crescer para depois distribuir, não voltem jamais!
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