Perdas Necessárias (Autor Ricardo de Faria Barros)


Cheguei em casa animado, acabara de comprar uma TV, daquelas que pegam de um tudo, e agora era tirá-la da caixa e curtir boas músicas, que cato no youtube.
Fiquei impressionado como essas TVs de agora são leves. Tirei a bichinha da caixa, e percebi que precisaria montar os pés.
Confesso-lhes que montar não é meu forte, nem tampouco compreender manuais de montagem. Ainda bem que filhos vem sem eles.
Mas, a ocasião pedia. E a ocasião faz o Homem.
Olhei para aquelas peças, com olhar de cachorro pidão, como que quisesse que elas falassem comigo, facilitando o trabalho.
Mas, eram mudas tal qual alguns expectadores de rede social.
Após rodá-las de todo jeito, consegui inseri-las no buraco, mas vi que não ornou. Ficou sobrando pra fora.
A peça era maior do que o buraco. E, como elas se encaixariam se não tinham o mesmo tamanho?
Fiquei que nem aquela música, "perdido em mil pensamentos." E me senti muito ignorante.
Aí notei que o problema era alinhar os furos da peça, com os da TV, para que o parafuso fizesse a mágica do encontro entre eles, e os conectassem juntado-os numa só peça, como casais que se amam.
Os furos da peça, quando eu botava na base, ficavam 0,5cm distantes dos furos da TV.
Como aparafusar algo assim?
Li o manual trocentas vezes, e ali tudo parecia tão fácil, tal qual esses programas de culinária da TV, tipo o Rodrigo Hilbert .
Confesso-lhe que bateu uma vontade de abrir outros furos, para que o encaixe entre eles e o parafuso fosse perfeito. Mas, abrir com que? Com faca. Esquentando uma chave de fenda?
Entrei na WEB, à procura de alguém com o mesmo problema, e nada. Todo mundo soube botar os pés da TV.
Me senti estranho, deslocado, diante do impasse. Acho que esse DNA bem masculino, que adora caixas de ferramentas e montar, ou desmontar, de um tudo, não veio na minha programação original.
Fui na cozinha, fiz um cappuccino, liguei o rádio para relaxar.
E pensei, vou ter que voltar na loja, colocar tudo outra vez na caixa, e será que eles vão trocar?
Ou apelar para os filhos mais velhos, que coisa!
Voltei para a bancada, na qual a TV jazia deitada, olhando para mim com olhos lânguidos e desejosos, e eu nada. Impotente diante dela.
Pensei comigo, vou botar algo embaixo da base, tipo um apoio, e essa gambiarra funcionará. Mas, e quando Priscila ver? Priscila é minha personal estilista, minha filhota de 30 anos.
Relaxei, lembrei que poderia comprar aquele troços que afixam na parede. Coisa para o Rodrigo resolver. Rodrigo, meu filho de 28 anos, é o que tem o melhor DNA de consertador, furador de parede, leitor de manual e montador. Pode ser!
Percebi que o que impossibilitava o ajuste era uma pequena saliência, na ponta do treco. De uns 0,5 cm.Olhei no encaixe da TV, e não vi nenhum buraco no qual aquilo penetrasse. Então, tomado de súbita coragem, peguei um alicate e quebrei aquela saliência.
Muito ansioso, inseri o pé no buraco da base da TV e vi que os furos se alinharam. Aparafusei a ambos, que agora eram um. Repeti o procedimento com o outro pé. Ergui a TV, nos abraçamos e ao som de Paz do Meu Amor, dançamos juntinhos.

Quantas coisas em nossa vida existem, para as quais apelar para os manuais de qualquer tipo de ajuda: auto, baixo, coletivo, ou amigos-ajuda, não adiantará muita coisa.
Não está no manual o que ocorre conosco. E, mesmo que outros tenham vivido algo parecido, ainda assim o nosso problema, os nossos furos existenciais que não se encaixam, serão só nosso.
É como aquela canção que diz: "Se ela me deixou, a dor é minha só, não é de mais ninguém!"

Chamo a esses problemas de problemas disruptivos. Disrupção é um termo que chega com força, oriundo da evolução da tecnologia. Um salto disruptivo é quando se cria algo que muda o padrão, a forma de uso, a ordem e a natureza das coisas, oriundo de processos de inovação.
Por exemplo, o Uber, Airbnb, Netfix, Spotfy e o WhatsApp são saltos disruptivos no uso que fazíamos do Taxi, Hotel, TV, Música e Celular.

Em nossas vidas passaremos por situações que vão exigir coragem e ousadia.
A coragem de quebrar em nós mesmos aquilo que está dificultando o nosso encaixe, com o que queremos que afinal aconteça.
E doerá. Aliás, crescer dói. Mas, sem se permitir à quebra desse pino, que agora em teu viver aparenta que está sobrando, como realizar o encaixe perfeito com outras conexões de sentido?
Descobrir o que está impedindo a realização do sentido de tua vida, e sobre isto operar, retirando-o do caminho, é decisão disruptiva.
Depois dela, nada será como antes, pelo menos no que diz respeito ao tema ou desafio de teu viver que não está se encaixando, por pedir algum tipo de atitude tua, que sem ela as coisas ficaram como são, não haverá conexão possível.
E a vida passará, sem realizar-se plenamente. E tua TV interior poderá até funcionar, ao ficar encostada em algo, mas sempre ao olhar para ela saberá que os pés estão em falso. Que há algo que não se realizou plenamente, por falta de ação sobre a vida, por falta de respostas, no lugar de justificativas.

São escolhas necessárias para dar prosseguimento ao nosso processo evolutivo, em nossa busca pelo sentido de nossas vidas. Busca para a qual não existe manual. Precisa experimentar e ousar ser feliz, mesmo que dando eventuais cabeçadas.

E, não se engane, para cada escolha haverá sempre um monte de renúncias.

Assim como renunciei à pequena protuberância da peça, aquele pino, que após retirada do mecanismo, só servirá mesmo para o lixo.

Ou, como fiz com a meu, guardando-o numa caixinha. Para que sempre eu me lembre dele, quando algumas situações em minha vida pedirem coragem e o discernimento de trapezistas, e exigirem desapego emocional e atitude comportamental corajosa para as mudanças, mesmo com perdas - para lá de necessárias, e algumas urgentes.


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