Dois cajus e um quase tem. (Autor Ricardo de Faria Barros)

Ambulante Edvan
Naquela manhã, acordei com o firme propósito de usar o tempinho que tinha antes de pegar o vôo, João Pessoa - Brasília, para caminhar na calcadinha da praia.
Hospedei-me num hotel na paradisíaca praia de Cabo Branco e dali saí para caminhar na não menos paradisíaca praia de Tambaú. Com máquina a postos segui meu caminho, dando-me ao luxo de parar em cada cantinho tão bonito que mirava. Aí o ambulante passou por mim empurrando uma carrocinha de frutas: era seriguela, uvas, bananas, cajus e acerolas, que formavam uma textura picassiana no tabuleiro do carrinho.
Apressei o passo para não perder aquela foto. Quando estava mirando o foco, de forma discreta e atrás do vendedor, um dos guardadores de carro dele se aproxima e pede um caju.
Ele para, olha para o guardador de carro, pega dois cajus, e entrega para ele.
Eu emparelhei com ele e descobri o sr nome, Sr. Edvan. 
Reconheci o gesto de generosidade dele, e fitei para os cajus, vendo que não tinham muitos. 
Nesta época do ano eles ficam muito caros e são disputados por caipirinhas enamoradas.
Ele me contou que sempre tem alguns alimentos para os outros ambulantes, pois, "um ajuda o outro".
Uauu. Fiquei com o coração elevado com tanta inspiração que vinha da presença de Edvan no mundo.  Tem gente que deixa o mundo melhor quando passa. Edvan, e sua carrocinha de frutas é uma delas. E Edvan foi além do que lhe foi pedido. Ele sabia que um caju só não faz um verão, e deu-lhe dois. Quanta generosidade de ser!
Voltando para o Ambasador Flat, resolvi investir meus 40 minutos finais comendo um caranguejo na barraca do Corsário, em frente a ele. 
Sentei-me numa prosaica área sombreada por castanholas. Pedi cerveja uma estupidamente gelada, e dois caranguejos. 
O garçom olhou para mim com olhos mansos e cheios de ternura, e disse assim:
"Heim heim, quase tinha...".
Toda meu desgosto de não ter caranguejo, que amo, caiu por terra. Soltei uma gargalhada, perguntando-lhe o nome. Ele respondeu: Flávio.
Eu disse assim: "Flávio, nem quero mais o caranguejo, só me explica o porquê do "quase ter"."
Disse morrendo de rir, com dificuldade até de falar. Ele manteve a pose e solenemente declarou: 
- A Maria adoeceu hoje, e mandou sua filha para a cozinha, aí ela não pode fazer o que sempre faz, que é passar na Feira da Torre, e comprar os bichos de dez patas. Nem deu tempo de nós mesmos irmos comprar.  
Adorei a explicação, a empatia, o heim heim, e o "quase tem".
Sabe pessoal, o Flávio sem querer deu a melhor aula sobre considerar a experiência do cliente, no relacionamento negocial, que já tive na vida.
Eu nem cogitei ir para a barraca vizinha. Fui abraçado com uma explicação tão humana, tão empática, que até senti o sofrer dele ao ver que não ia poder me atender com o que eu desejava.
Edvan e Flávio tem em comum uma atitude que anda rareando, a empatia. Em recente visita ao Brasil ,o professor Tal Ben Sahar, do curso das Ciências da Felicidade de Harvard, revelou que recente pesquisa detectou que o nível de empatia dos Norte Americanos caiu 40% em vinte anos.
Este dado científico foi detectado na análise das respostas atreladas a esta afirmação:
“Eu às vezes tento entender meus amigos, melhor imaginando como as coisas são, pela perspectiva deles”.   40% dos respondentes assinalaram itens abaixo da linha de concordância. Há vinte anos atrás eram 20% quem assinalava abaixo da linha de concordância.
Em vinte anos a percepção das necessidade do outro caiu drasticamente. Os estudos de Harvard indicam como um dos fenômenos a criação de mundos essencialmente virtuais, sem mais se investir tempo em relacionamentos reais, presenciais, nos quais se exercita com mais força a empatia, pois se percebe melhor as necessidades do outros, ao caminhar com ele face a face.
Então, o que Edvan e Flávio fizeram deve ser ensinado nas famílias, escolas, igrejas e no mundo do trabalho, cultura e lazer, a perceber as necessidades dos outros, e tentar de alguma forma acolhê-las apreciativamente, nem que seja numa escuta, seguida de um "quase tem".
Mas, para que isso ocorra, é necessário estar presente ao mundo e sua beleza de viver. 
100% presente e dando de seu melhor, surpreendendo, surpreendo-se e mudando realidades com seu jeito diferente, de fazer as coisas iguais.
Edvan podia ter dado outra fruta, ou até nenhuma. Podia alegar que depois passaria, e daria se sobras. Podia alegar que tinha poucos cajus. Etecetera e tal. 
Para quem quer fazer todo do mesmo jeito, para quem quer ser só mais um, sempre haverá um monte de justificativas e explicações, todas plausíveis, para não alterar o carrossel do destino, mudando vidas, negócios e ambientes com sua presença no mundo. 
Flávio poderia ter oferecido outra coisa do cardápio, poderia ter simplesmente dito que naquele dia não tinha, ele não me devia explicações alguma. Mas, ele foi além.  Deixou de ser um garçom, passou a ser "O  Garçon!".  Só pelo respeito ao desejo frustrado de um cliente.  
Empatia, coisa que rareia nos tempos atuais de tantas brigas até por escolhas políticas. 
Por mais Flávios, mais Edvans no mundo!   Que nos inspiremos neste breve fragmento de suas histórias de vida.
Que possamos assinalar, na afirmação abaixo, um item que revele nossa concordância: 
"Eu sou alguém que tenta entender meus amigos, melhor imaginando como as coisas são, pela perspectiva deles."   (X)  Concordo 
Mas, para que isto seja verdade temos que exercitar a empatia nas pequenas coisas, aquelas mesmas que para nós pode ser besteira, mas que para o outro era tão importante que a acolhêssemos em nossa vida, tais como dois cajus e um "quase tem".

3 comentários:

  1. Muito bacana,Professor Ricardo! Sua sensibilidade e habilidade de fazer dialogar a ciência da felicidade com situações cotidianas é admirável.Obrigada.

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