É preciso subverter a ordem reinante


Esta seca inclemente machuca nosso povo, nos faz a todos irmãos e solidários.

O Nordeste do Brasil, em anos cruéis de seca, naqueles em que faltam dias de tempo bonito no céu (céu nublado, anunciando chuva ), gera apreensão comunitária.
Nestes anos, juntamo-nos como povo mais ainda para evitar que migremos. Nem sempre conseguimos.
Cada ônibus que sai para SP – ou para os grandes centros país fora, e agora mais modernamente falando, cada avião, gera um luto social, uma dor coletiva. Brota nestes momentos um sentido de irmandade, de solidariedade.
Quando não podemos mais ficar, quando se fecham todas as portas, as despedidas são lancinantes.
Brotam dos lábios os “até logo”, as promessas de voltar no próximo ano. Aqui e acolá ouvem-se estertores de soluços. Mas não somos um povo de choro.
Celebrar o São João, sem o milho em flor - no terreiro pronto pra ser colhido, e consumido em pratos mil; sem o feijão maduro; sem a macaxeira companheira eterna, cozida ou em farinha, amiga de todos os alimentos, torna nossos corações prece e súplica.
Sem a abóbora, a melancia, a fava, a galinha gorda, o bode feliz e berrante, tudo fica tão sofrido!
Quando chove em março, abril... o sertão vira fartura em maio, junho, julho.

Então, quando vemos milho verde nas feiras livres nordestinas, e aos montes. Quando vemos em cada esquina da feira uma senhora debulhando as vargens do feijão verde, pensamos todos: conseguimos mais um ano.
Sabemos que a pequena safra dará um pouco mais de sustento para continuar na terra.
A alegria emana das feiras livres, chácaras e quintais.
Todos celebram as bênçãos das colheitas e doam aos vizinhos suas sobras não comercializadas.

Falta algo no mês de junho quando a seca é inclemente. Falta celebração.
Em algumas cidades até as festa juninas são canceladas, tamanho luto.
Água temos. Falta uma concertação sócio-político-econômica para articular ações estruturantes para seja melhor aproveitada.

Faltam políticas de Estado e não de Governos. Descontinuadas a cada mandato quadri-anual, em qualquer nível de governo.

Não queremos eternizar bolsa-auxílio alguma. Elas são paliativos.
São importantes em anos como esse. Mas viciam.
Dão uma falsa sensação que a situação foi resolvida.
Ledo engano.

Queremos nós mesmos produzir o pão nosso de cada dia.
É mais cômodo manter a indústria dos carros-pipas que amealham dinheiro público e alimenta os currais eleitorais, do que investir soluções inovadoras que possibilitem a convivência com a seca, em projetos de desenvolvimento regional sustentável - com geração de emprego e renda.

Porém, seguimos resistindo. Não deixamos morrer a esperança.
Aliás somos um povinho besta que tem na esperança sua marca de viver.
Nunca aceitamos discursos que nos fazem de vítimas, nunca aceitamos pena, nunca aceitamos esmolas. Preferíamos saquear as feiras livres, a nos ver objetos de esmola e sujeitos de pena.

Sempre acreditamos que era possível permanecer na terra, mesmo sendo tão árida e sofrida. Quando todos os políticos nos enganaram, com suas falácias, quando todos diziam que não tinha jeito, olhávamos para o milho em flor e acreditávamos.

Aprendemos a plantar na "poeira", apenas confiando na mãe natureza.
Sob um céu de sol inclemente, o sertanejo movido por um instinto ancestral sabe que é chegada a hora de arriscar deitar as sementes na terra, antecipando sua maturação e aguardando que nos próximos 15 dias chova.
Se der certo, logo logo terá feijão na panela. E estes cozidos de feijão, do feijão plantado no pó, cozidos com o que sobrou na dispensa, o sal e o pouco de água barrenta de poços exaustos, são deliciosos.

Chama-se plantar na poeira, na areia seca.

De tanto sofrimento que todo ano esperamos, e que nem sempre acontece, quando Deus chora lá de clima e manda chuva, passamos a viver cada dia como dádiva.
Colhemos cada safra, tão escassa, como a única. Aprendemos a dividir: a farinha, a caça, o feijão, o milho. Nossos olhos enchiam-se de esperança quando víamos a "barra" (formação de nuvens longe, no pé do horizonte) se formando, anunciando uma chuva tão desejada, e olhávamos o milho plantado no quintal, milho doce, que seria comido em comunhão.

Quando todos nos olhavam e diziam: Morte! Nós nos olhávamos e dizíamos: VIDA!
Quando não conseguíamos mais resistir, e juntávamos nossa mudança numa trouxa de roupas e uma mala puída, fazíamos o caminho de São Paulo sem olhar pra trás, doía muito. Era um trajeto silencioso, de lamentações e murmúrios, tal qual os negros nos porões dos navios.

Como a árvore que racha a pedra dura, aprendemos a resistir. É que caberia a nós, unicamente a nós, encontrar as saídas para essa resistência.
A seca levou nossos pais, nossos avós. Antes de eles partirem, no entanto, ensinaram-nos os caminhos. Ensinaram-nos a cavar cacimbas, a tirar água da raiz do umbuzeiro, a comer animais silvestres e até a comer coisas impensáveis para os "puros da cidade". Ensinaram-nos a usar o chapéu e o gibão de couro, a salgar a carne e a guardar os cereais para a próxima seca. Caminhos de resistência.

Éramos felizes?

Claro! À noite, os vizinhos se juntavam, nós nos reuníamos em volta das fogueiras para contar os casos: a vaca que pariu, a bezerra que se perdeu, o sol que estava implacante.
Se faltava feijão numa casa e havia na do vizinho, havia o comaptilahr. Um dia seria feito ao contrário, com a farinha, ou um corte de bode. Aprendemos então a partilhar; partilhar o pouco que tínhamos. Aprendemos o mistério do doar.
Ninguém olhou para nós: políticos, autoridades, donos do poder...
Porém, nós olhamos para nós mesmos, nos amamos e criamos uma rede de solidariedade. Resistiríamos, sobreviríamos.

Cada nordestino sabe o que representa a beleza da luta da planta contra a rocha. Nesta seca inclemente, nestes dias que o pó vira ar.

Lembrem-se amigos distantes, neste texto de um filho teu que migrou, que és filho de quem já passou por isso.
Enxugue tuas lágrimas e continue na luta.
Não se entregue e abra caminhos. Outros te seguirão e caminharão pela estrada que abristes.
Resista mais um dia em ir para SP.
Olhem para esta árvore e creia na força de suas raízes. Subverta a ordem reinante.
Impliquem, denunciem, façam passeatas, abaixo-assinados, tirem os governantes de seu doce e refrigerado gabinete.
Sejam tal qual esta árvore, que subverte a ordem natural das rochas em solos tão pedregosos e atiram suas raízes no profundo leito, à procura de água. Sejam como esta árvore que, mesmo não conseguindo quebrar totalmente a aspereza e dureza do solo, abrem por seu interior fendas e rachaduras.
Sejam portadores da esperança e intransigentes defensores da justiça!

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