Têm uns quinze dias que acordei num sábado, bem cedinho, e fui buscar na parada de ônibus um jardineiro aqui par casa. No trajeto até nossa casa ele foi contando que aprendeu o ofício de jardineiro olhando. Por curiosidade. De tanto olhar outros profissionais ele foi descobrindo o jeito certo de cuidar, de adubar, semear, tocar e de podar. Chamava-se Claudionor. Chegando ao pomar fui logo lhe entregando o carrinho de aparar grama e encomendando as tratativas que precisava. Aparar a cerca de fícus, ali na frente, abrir as covas das fruteiras, e passa o motor na grama esmeralda, para ela ficar bem tosada.
Ele olhou-me com certo respeito, aquele de quem é contratado pela primeira vez para uma obra qualquer. Um tanto relutante disse-me que não daria certo passar a máquina e aparar a grama. Não naquele dia.
Falou que a grama estava empestada de tiririca (um tipo de mato invasor) e que esta só sai manualmente, tiririca-a-tiririca, com uma machadinha. Que era serviço para um dia.
Mas que depois a grama iria vicejar novamente, visto que a tiririca estava sufocando suas raízes e a condenando à desnutrição e morte.
Fiquei pasmo. Puxei logo conversa e disse-lhe que já aparava aquele jardim tinha uns três anos e nunca houvera me dito tal coisa. Ele falou que os jardineiros não gostam de fazer este serviço. Que é um serviço que não rende, que não se vê resultado de pronto, e que é cansativo pela posição de sobrecarga na coluna.
Ele até ensina aos novatos, mas estes desdenham de sua cara. Dizem-lhe que o dinheiro não vê tiririca. Que quando corta fica tudo igual e os clientes não percebem.
Falou-me que não suportaria voltar pra casa sabendo que deixou vivas as tiriricas, entre as gramas, e que a tosa faria era piorar a situação. A grama esmeralda sente a tosa e fica mais fraca, enquanto isso a tiririca ganha espaço. Fica ainda mais forte já que são invasoras tuberculares e adoram uma poda.
Falei para ele fazer o que tinha que ser feito. E ele arrematou dizendo que seu prazer era poder voltar outro dia e ver que agora sim a grama renascera.
Passei dias pensando naquele gesto de doação do Sr. Claudionor. Naquele propósito de seu trabalho. Ele me lembrou duma palavra indígena que diz TXAI.
TXAI significa na língua dos índios Kaxinawá do Acre, "mais que amigo, mais que irmão, a metade de mim que habita em você, a metade de você que habita em mim. Quatro letras. E quando alguém te chama de TXAI, essa pessoa está pronta pra dar a vida dela no lugar da sua, se for o caso.".
Ele estava depositando, no seu simples serviço de jardineiro, a sua txai no meu lar. Ao término do dia o resultado do trabalho fora uns quatro sacos de lixo de tiriricas. Realmente a grama continuou alta, mas agora estava feliz. Não estava sendo sufocada por uma espécie invasora.
Fiquei pensando no valor de servir. Na liderança servidora. Ele me serviu o que tinha de melhor no seu trabalho.
Passou uma semana e voltei a acordar cedo num sábado. Fui “convocado” para registrar uma ação social da igreja que frequento com a minha esposa, a Metodista. Era a campanha do Agasalho, na feira do produtor do Jardim Botânico. Entre uma foto e outra fui tomar um café na banquinha de uma feirante. Ela conversava com a vizinha de banca sobre sua pressão alta e não pude deixar de sentir certa empatia. Quando me vi estava trocando receitas e falando de minhas desventuras cardíacas. Papo vai, papo vem, ela me conta o remédio que toma: Diovan com HCT. Falei que tomava o mesmo, mas que vivo me esquecendo. E que naquele sábado mais uma vez esquecera. Ela perguntou se eu queria uma drágea de seu remédio, já que estava ali na sua bolsa e era de mesma dosagem. Fiquei estupefato com este gesto de doação gratuito. Desconversei dizendo que minha esposa iria trazê-lo, ao que ela insistia, para que eu tomasse logo, “pressão alta não é coisa prá se brincar”.
Senti-me cuidado, tal qual as gramas esmeralda de meu jardim. E quando nos sentimos cuidado, nos sentimos amados.
Fiquei tão feliz com aquele gesto de doação generosa e desinteressada que recebera de quem nem conhecia, e que me fez sentir especial para aquela mulher.
Eu não estava com a camisa do grupo e seu gesto não era em retribuição à ajuda que os voluntários daquela ação social davam aos feirantes e clientes carregando suas mercadorias pesadas, sem pedir nada em troca. Só pelo prazer de servir. Vivi cenas lindas acompanhando este grupo. Pessoas estupefatas não entendiam como ninguém estava pedindo dinheiro, ou tentando convertê-las. E estavam apenas carregando suas feiras ou mercadorias de um lado para o outro. Servindo-lhes. Muitos foram em suas casas e trouxeram agasalhos para a campanha, só pelo prazer de participar. Solidariedade contagia.
Um testemunho que me marcou foi a de duas crianças que foram liberadas pelos seus pais para brincarem no pula-pula que a organização do evento providenciou, já que os voluntários ofereceram-se para descarregar a Kombi de seus pais, cheia de mantimentos, em troca da liberação das crianças para as brincadeiras.
Fiquei pensando o quanto a doação, a doação de tempo, do toque, da escuta, do cuidar podem fazer a diferença na vida da gente.
Quem doa algo a alguém, de forma gratuita, sem querer nada em troca, hoje é um subversivo.
Um aprendiz de revolucionário, numa sociedade cada vez mais salve-se quem puder.
Estas pessoas brindaram meu viver.
Elas desafiam a ordem reinante e ao narcisismo coletivo dos tempos atuais. São arautos de novos tempos.
Estava tão acostumado com a bestialização do viver que estas pessoas me deram um chega pra lá.
Fizeram-me soprar brasas de um Ricardo que já fui.
Existem perdidas por aí, tal qual as nações isoladas de indígenas, pessoas boas.
Pessoas do bem.
Gente que ainda pensa no coletivo, mesmo que seja um coletivo binário - de um eu, para um tu.
Mesmo que não façam grandes revoluções, que não transformem estruturas políticas geradoras, em última análise, de uma sociedade perversa, elas apontam caminhos. São sinais.
Pensei o quanto de tiriricas temos por aí. Que vão nos sufocando, matando o que temos de melhor. Que aparentemente em nosso ser se mostra bacana, viçoso, verdejante, mas que um jardineiro cuidadoso perceberá que não é, que estamos morrendo.
Tiriricas dos ódios de todos os matizes.
Tiriricas das injustiças de todas as formas.
Tiriricas das prisões, físicas ou emocionais.
Tiriricas afetivas, laborais, que nos sufocam nos roubam energia, nos limitam.
Ah como seria bom um Sr. Claudionor nas nossas vidas. Que com a sua machadinha afiada penetrava naquele gramado, e em certeiros golpes arrancava as invasoras.
Como seria bom, que vez por outra, umas pessoas desconhecidas cruzassem nossos caminhos... E num gesto de generosidade, de doação genuína, nos dessem algo. Um abraço, um bom dia, um aperto de mão. Uma ajuda fraterna para alguma carência que tenhamos naquele momento.
Como nossa “pressão existencial” ficaria melhor controlada com estes gestos-remédios.
Como seria bom se vez por outra alguém se oferecesse para carregar nossos fardos, descarregar nossa Kombi, liberando-nos para brincar, para descansar.
Os tempos andam tão mesquinhos, carentes de encontros fraternos que todos estes gestos de solidariedade descompromissada, de gratuidade de servir, soam distantes e raros.
Utópicos.
Mas vale reaprender a pedagogia da dádiva. Vale voltar a pensar o coletivo.
Vale tentar, só por hoje, um gesto de doação gratuita qualquer. Uma visita num hospital. Uma carona. Um tempinho para ouvir com interesse o drama pessoal de um amigo.
Vale tentar servir, só por hoje, um dia de cada vez.
Vale juntar-se às tribos isoladas do SER, e ter uma práxis libertadora, transformadora e semeadora de valores tão banais e esquecidos como: doação, gratidão, bondade, gentileza, mansidão e compaixão. Por isso gosto de militantes de qualquer estirpe, de qualquer causa, eles acreditam em novos ideiais e lutam por eles.
Despeço-me com uma txai pra você, a bela canção de mesmo nome do Milton Nascimento.
Txai
Milton Nascimento
Txai é fortaleza que não cai.
Mesmo se um dia a gente sai,
fica no peito essa dor.
Txai, este pedaço em meu ser.
Tua presença vai bater
e vamos ser um só.
Lá onde tudo é e apareceu
como a beleza que o sol te deu
é tarde longe também sou eu.
Txai, a tua seta viajou,
chamou o tempo e parou
dentro de todos nós.
Já vai ia levando o meu amor
para molhar teus olhos
e fazer tudo bem,
te desejar como o vento,
porque a tarde cai.
Txai é quando sou o teu igual,
dou o que tenho de melhor
e guardo teu sinal.
Lá onde a saudade vem contar
tantas lembranças numa só,
todas metadesm, todos inteiros,
todos se chamam txai.
Txai, tudo se chama nuvem,
tudo se chama rio,
tudo que vai nascer.
Txai, onde achei coragem
de ser metade todo teu,
outra metade eu
porque a tarde cai
e dona lua vai chegar
com sua noite longa,
ser para sempre txai.
Somos frutos de nossas vivências.
ResponderExcluirÀs vezes me questiono, quando foi que deixamos de acreditar?
Quando começamos a não se importar com o que ocorre em volta.
.
Quando a empatia passou a ser sentimentalismo barato,
Quando a voz alheia do péssimismo ganhou espaço em nossas mentes.
.
Os sonhos de transformar o mundo em um lugar melhor para se viver foi morrendo aos poucos.
.
São estes gestos-remédios que nos fazem melhorar aos poucos, desta doença que ainda não tem cura.
Belo comentário.
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