Sacramentais


Somos sacramentais, emprestamos às coisas significados e estas deixam de ser simples coisas. Ficam impregnadas de subjetividades. O relógio que nosso pai usava, após ter falecido, virou um sacramental, evoca sua presença. Um cadernos com tarefas infantis, cuidadosamente guardado, deixa de ser papel, vira sentimento.

As fotos impressas, por mais amarelas, desfocadas, e desgastadas pelo tempo, são sacramentais sem comparação. Evocam as memórias e resgatam de sentimentos, são parte de nossa história.

Cada um de nós, ou membros de nossa família, tem um pequeno tesouro guardado em casa. Mais precioso do que joias, dólares ou outros bens materiais.

Aquela foto desgastada de nosso pai, de nossa mãe virou um bem insubstituível.

Se for roubada choraremos muito sua perda.

É um tesouro afetivo sem preço, o baú de fotografias que vamos tirando ao longo de nossa vida. Ali está nossa essência, nossos propósitos pelos quais valeu e vale a pena viver.



Hoje tomei coragem e abri meu baú. Vi-me pequeno nas férias no sertão da Paraíba, vi meu corpo ainda esbelto, quase magro, esta chocou-me, fez-me tomar consicência de quanto cresceu minha barriga. Vi fotos de torneio de natação - imaginem que já fui até campeão. Vi fotos dos filhos desdentados, risonhos, tão dóceis e amigos.

Foram momentos mágicos que resgatam a vontade de viver.
Brotou um sentimento de que havia tanto por ainda fazer. Tantas fotos a serem tiradas, momentos mágicos a serem vividos. Tanto beijos e abraços a serem dados.

Quantas oportunidades vivi que por timidez, ou por não ter uma máquina à mão, não conclamei o grupo para uma fotinha. Sabe aquele chato das festas que fica implorando, uma foto, uma foto. Pois é, deveria ter sido mais chato. Perdi tantas memórias e agora lembrar não fácil. Ou, os entes queridos já se foram.


Revirando o baú vi fotos de passeios, de confraternizações, de cursos, de encantamentos, uma chamou-me atenção, uma árvore sem folhas e com uns cachos de flores brancas. Por que estava ali, impressa.

Ainda tinha o hábito de imprimir fotos, copisa que deixei de fazer tem uns cinco anos. Perdi este hábito de imprimir as fotos, o que considero um erro.

Algumas delas, em papel, podem emoldurar nosso viver, eternizando-o. Lembrei-me então que me tinha chamado atenção o fato dela ter perdido todas as folhas, era outono, e que só restava em seu ápice, na pontinha dos galhos mais altos, uns brotos de flores brancas. Pronto, ali estava a razão daquela foto. Flores da paz.
Desafiando todo quadro caótico em que se encontrava, aquela árvore bradava com as forças que lhes restaram, após um outono rigoroso, P A Z! E, paz era tudo que não tinha há uns cinco anos atrás, eu estava numa peleja árdua uma luta danada pela sobrevivência em todos os aspectos.

Seriam aquelas flores as parteiras da primavera, testemunha dos brotos mais juvenis que dali a pouco estampariam vida.

Então vi que cada fotografia, desde aquelas mais amareladas, mais puídas com o tempo, em postais preto e branco, até as mais sofisticadas e lindamente emolduradas nos dão as âncoras de um novo viver, elas são nossos referenciais.




São projetivas. Não as tiramos à tôa. Elas falam. Por isso nunca vi foto impressa de ninguém posando ao lado de um caixão de defunto. É como se cada um de nós pudesse, numa galeria, fazer a exposição de nossa vida, selecionando os melhores momentos para serem expostos. Tive a felicidade de ver fotos destes momentos, de uns 300 colegas que demos posse na Diretoria. Impressiona como, mudando os personagens, os enredos são muito parecidos, coisas realmente que importam em nosso existir: nascimento de filhos, filhos pequenos, amores, confraternizações familiares, primeiro ninho comprado, casamentos, formaturas, equipe de trabalho e passeios. Acho que das 900 fotos que vi, se pudesse colocá-las nestas gavetas, sobrariam de fora muito poucas. Como somos parecidos na nossa jornada do existir!
Então, compreendi porque nas casinhas mais humildes sempre tinha um retrato da família num quadro na parede. Era como que para dizer temos um nome, somos alguém, olha o que já fomos, vejam nossos sorrisos, nossas roupas bonitas, nosso corpo embelezado e encantado para a alegria do encontro.
Como nem sempre temos uma máquina fotográfica por perto, que tal eternizar conscientemente os bons momentos que vamos vivendo? Guarde-os num lugar onde acidentes não possam acontecer e destruí-los, como aquela vez que formatei erroneamente o disco da máquina fotográfica e perdi tudo. Guarde seus belos momentos nas retinas de seu coração, fotografe-os com toda força e vigor com sua câmera interior. Ali, eles serão para ti sustento e fortaleza nas hora mais difíceis

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário é uma honra.

Crônicas Anteriores