Quais são tuas obras?





Uma reflexão sobre a centralidade do trabalho e
seus impactos noutras dimensões da vida e do viver.

Outro dia um amigo me abordou, no corredor do trabalho, perguntando-me se eu já tinha visto um casal de João de Barro que constrói sua casa na fachada da portaria central da Diretoria de Tecnologia.

A janela, por eles utilizada como alicerce para sua morada, situa-se próximo a um jardim externo, utilizado como um fumódromo. Este colega integra o grupo dos fumantes matinais.

Chama-se André. André é um fumante sensível, daqueles que ao pitar contemplam a paisagem. E, ao fazê-lo, não podem deixar de se sensibilizarem com o que veem.

Não fosse por ele talvez não tivesse visto aquela cena, visto que acesso o andar no qual trabalho pelo elevador do subsolo.

Que legal quando podemos curtir, comentar e compartilhar algo bacana com alguém; algo que pode ser útil ao outro. Que pode edificar. Criando uma comunhão de valores, tal qual uma corrente, uma corrente do bem.

No outro dia vim ao trabalho com máquina em punho.

Cheguei cedinho, abri uns e-mails, orientei meu pessoal na agenda do dia, abasteci-me de café... e fui ver o ninho daqueles pedreiros-avoantes.

Mal conseguia fotografar de tanta boniteza. Enquanto um amassava o barro o outro ou outra ia buscar mais, numa série de voos rasantes.

Não se incomodavam com meus cliques, ou outros que ali pitavam e assistiam à cena.

Faziam seu trabalho com senso de urgência.

Contemplei a paz daquele casal de pedreiros da natureza por uns minutos. Nos dias seguintes, sempre que podia voltava para vê-los em sua jornada.

Fiquei embevecido com a singela construção e com o trabalho em sincronia, sintonia e sinergia dos Joões de Barro, sim Joões mesmo, estanho, mas é.

Enquanto um ia buscar barro molinho, ainda úmido pelo orvalho da madrugada, o outro com a ponta do bico amassava a parede, erguendo-a “tijolo” a tijolo.

Havia uma arte no depositar do barro que estava no bico, na parede que o outro moldava. Não era uma coisa jogada no chão. Havia uma espera que o outro parasse, aí sim, quem esperava com a massa argilosa no bico, depositava em cima do muro e o outro retomava a prensagem.
Esta foto expressa este momento de espera.
Ele nunca jogava no chão o barro. Que sabedoria.
Não desperdiçava a massa que trazia com dificuldade entre os bicos.
Senti em ver muitos colegas entrando apressados no corredor da portaria central, correndo para baterem seus pontos, e perdendo a chance de contemplar esta façanha. Nem que fosse no intervalo do cafezinho das 10h00minhrs. Valia descer para observar o trabalho em equipe daquele casal.
Deu até vontade de afixar um cartaz: “Parem, olhem a sua esquerda, no alto da fachada, e contemplem um casal em lua de mel erguendo seu ninho, centímetro a centímetro”.
Durante uns dias, fui agraciado com tão singelo fenômeno da natureza.
Comecei a notar que outros colegas estavam indo vê-los também.
As manhãs tornaram-se mais belas, ficava curioso para ver o quanto tinham avançado na casinha.
Vez por outra cruzava com outro observador que passara também a frequentar o local e acompanhar a saga do casal de pássaros.
Alguns comentavam que os bichinhos eram tinhosos, só trabalhavam até 11h00min da manhã, e à tardinha.
Outros falavam da crueldade do macho quando descobre ser traído, fechando a casa coma fêmea dentro.
Pesquisando na internet descobri uma enormidade de estórias sobre isto, o que me deixou encasquetado.
Por que precisamos de um modelo passional de relacionamento animal, que justifique - não sem um risinho irônico, que o macho ao ser traído mate a fêmea?
Foram poucos os sites que investigaram a fundo esta estória.
Parece-me que a fúria besta de cornos é ativada num inconsciente coletivo nesta estória, servindo como uma metalinguagem de comportamentos que na racionalidade humana afirmamos que são errados.
Não vi ninguém defender a passarinha de poder optar por outras escolhas em seu viver.
Ou até questionar o que tinha feito o Machão de Barro para levá-la a arrastar as asas para outro.
Um debate tão ridículo como o que justifica matar por ciúmes, ou como dizem, por amor, um amor minúsculo.
Achei uma explicação que mostra de onde veio esta lenda urbana, o que não diminui as projeções inconscientes, revestidas de um humor-mórbido, de quem gostaria de fazer algo igual, caso lhe acontecesse isso, uma pena.
Pesquisando achei várias fontes que contrariam esta lenda, abaixo transcrevo uma delas de http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/joao-de-barro/ a seguir:

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Há uma crença popular, inclusive mencionada em literatura ornitológica, de que o joão-de-barro, Furnarius rufus, empareda dentro do ninho a fêmea que o tenha traído. Pessoas adultas, mesmo com relativa experiência de vida, afirmam isto com a maior convicção. Esta estória imputa ao joão-de-barro duas pechas. Primeiro, a de que suas esposas são capazes de trair. Segundo, a de que os maridos são capazes de cometer assassinatos passionais.

Na verdade tudo não passa de um mito. E este mito pode ter surgido de dois fatos. O primeiro é de que alguns ninhos abandonados do joão-de-barro são aproveitados por abelhas indígenas como a uruçú-mirim, para fazerem sua colméia. As abelhas fecham a entrada do ninho com uma cera, dando a impressão de ter sido fechado pela ave. Mas olhando-se mais atentamente nota-se o engano.

Outra possível explicação, a meu ver a verdadeira, é a seguinte. Hudson, em uma obra de 1920, cita um interessante episódio ocorrido em Buenos Aires. Uma das aves (não foi possível saber se o macho ou a fêmea, pelo fato de serem muito parecidos) foi acidentalmente pega em uma ratoeira que lhe quebrou ambos os pés. Após liberada com muita consternação por quem havia armado a ratoeira, voou para o ninho onde entrou e não foi mais vista, ali morrendo certamente. O outro membro do casal permaneceu por ali mais dois dias, chamando insistentemente pelo parceiro. Em seguida desapareceu retornando três dias após com um novo parceiro e imediatamente começaram a carregar barro para o ninho, fechando a sua entrada. Depois construíram outro ninho sobre o primeiro e ali procriaram. Hudson viu este fato como mais uma "qualidade" do joão-de-barro, por ter tido o cuidado de sepultar sua parceira. É possível que esta história, publicada originalmente em um periódico científico, tenha sido divulgada muitas vezes em revistas e jornais, como acontece hoje com diversos assuntos, tornando-se logo de domínio público.

Acontece que toda história contada e recontada repetidamente, vai incorporando um pouco do floreado ou mesmo da fantasia de cada um, acabando muitas vezes com seu real sentido totalmente desfigurado. Tudo indica que foi o que aconteceu neste caso. Uma música popular, chamada "João-de-barro", de Tonico e Tinoco, muito cantada por Sergio Reis também deve ter contribuído para popularizar essa estória:

O João de Barro, pra ser feliz como eu Certo dia resolveu,
arranjar uma companheira
No vai-e-vem, com o barro da biquinha
Ele fez sua casinha, lá no galho da paineira
Toda manhã, o pedreiro da floresta
Cantava fazendo festa, pra aquela quem tanto amava
Mas quando ele ia buscar o raminho
Pra construir seu ninho seu amor lhe enganava
Mas como sempre o mal feito é descoberto
João de Barro viu de perto sua esperança perdida
Cego de dor, trancou a porta da morada
Deixando lá a sua amada presa pro resto da vida
Que semelhança entre o nosso fadário
Só que eu fiz o contrario do que o João de Barro fez
Nosso senhor, me deu força nessa hora
A ingrata eu pus pra fora por onde anda eu não sei. "

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Desfeito o preconceito, espero, voltemos à beleza do feito deste casal e seus ensinamentos.
Um deles é o de saber a hora de parar.
Notamos a comunidade de observadores de Joões de Barro, que se reunia nas manhãs por breves momentos, que a após o meio-dia eles não trabalhavam.
Trabalham forte, firme, desde o nascer do sol.
Aproveitam o barro úmido do orvalho, mais fácil e ser retirado e no ninho, socado e moldado em forma de parede.
Lembravam os lavradores nordestinos que mal o sol desponta no horizonte, às 5 da manhã, E já estão com enxadas em punho abrindo o solo seco e pedregoso, como que aproveitando a condição do solo está mais úmido pelo orvalho para deitar as sementes.
Não seria a mesma estratégia?
Fiquei meditando sobre a estratégia destes pássaros de não trabalharem à tarde.
Dão um duro danado e depois param.
Devem contemplar o resultado de seu trabalho e dizerem, por hoje é só.
O assanhado João deve dizer a sua Maria: Vamos dá um rolé por aí, garota?
Devem sair em busca das térmicas que os elevarão às nuvens mais altas.
Devem procurar uns insetos para almoçarem.
Devem namorar à sombra de árvores floridas, perto de nascentes de rios ou lagos, que vez por outra são usadas para refrescarem-se e tomarem um gostoso banhozinho a dois.
Sábios Joões de Barro.
Todos nós deveríamos ter um local para ir após o trabalho.
Um local para voar e contemplar o infinito.
Um local para reestabelecer energias, para descansar a mente e paradoxalmente, poder criar mais ainda, aproveitando outras referências de mundo.
Por mais sentido que tenha um trabalho. Por mais prazeroso que seja – imagine o prazer deste casal de pássaros vendo passo-a-passo, como fruto de seu trabalho, erguerem-se as paredes do ninho que abrigará os frutos do seu amor. Há muita vida lá fora a ser vivida, para além da labuta diária de erguer paredes de ninho.
Por mais obcecado que esteja com uma obra, há outras obras que esperam você.
Outro dia um amigo me perguntou se o segredo de ser feliz não era justamente o de ser obcecado por um trabalho, por uma única obra.
Disse-lhe que não. Justamente uma coisa que os gênios têm em comum é o gosto eclético. Curiosos que são, estão sempre disponíveis a novos aprenderes. Seja a música, literatura, filosofia, pintura, espiritualidade, esportes e outros hobbies.
Sábios Joões de Barros, exemplos de trabalho em equipe e de cultivo de novos prazeres.
Fiquei pensando se não podemos, a exemplo da lenda urbana - como numa metáfora ao terminar de erguer a obra, fruto de nosso trabalho, ficamos dentro dela aprisionados.
Será que não corremos o risco de ficar aprisionados ao trabalho, ao ponto de perdemos outras razões pelas quais viver? Dentro deste ninho de barro que construímos?
Será que ao não mitigar este risco o momento da aposentadoria não trará consigo infelicidade e vazio?
Fiquei nesta noite feliz.
Feliz por perceber que amo meu trabalho.
Por me sentir erguendo uma obra, lentamente, mesmo apesar de dias mais ou menos difíceis.
Mesmo apesar de tanta montanha ou entulhos que temos de remover, e de fogos amigos que temos de nos desviar.
Mesmo assim, não saberia fazer algo diferente.
Assim como o casal de pássaros, dou duro e me envolvo com o barro que vou levando ou moldando. Atuando junto a outras pessoas que dão sentido a obra coletiva do trabalho, do qual sou integrante. Pessoas que aprenderam o valor dos 5S no ambiente de trabalho: simpatia; sinceridade, sinfonia, simbiose e sintonia.
Feliz também por me ver voando para nuvens do infinito, todas as tardes a partir das 17h30min, quando saio do trabalho e vou buscar JG na creche; depois sigo para lecionar, e mais tarde – exausto, mas feliz tenho o prazer de voltar pra casa.
Feliz por perceber que não me perdi nos meus 26 anos de trabalho diário, de meus arvoredos, mananciais, apriscos e lugares para onde voo sempre que não estou na labuta: lugares de fé; de hobbies, de amizade; de encantamento; de solidariedade; de cultivo de novas aventuras.
Nuvens te aguardam para além da obra que tu ergues.
Por mais importante que teu trabalho te seja, não deixe que ele sugue toda a tua essência.
Roube-lhe todo o tempo. Afaste-lhe de outras fontes de prazer e realização.
Tua família, novos estudos, tua vocação cidadão, etc.!
E, quando estiver construindo teu labor, aquele diário das muitas horas a ele dedicadas, lembre-se de fazê-lo com afinco, comprometimento e paixão.
Ela é a tua marca, tua expressão.
Ama teu trabalho.
Lembre-se que o “meio-dia” chegará tão rápido, quando se trabalha com sentido, que nem notará que passou.
Aí, é só limpar o bico, e sair voando em busca de infinitos em forma de pessoas, aventuras e novas possibilidades e papéis no teatro da vida e do viver.

3 comentários:

  1. Bela reflexão Ricardim... muito bonita e interessante, com a certeza que irei tirar bons ensinamentos...

    "Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina"
    Cora Coralina

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  2. Adorei!!!!Nada mais a dizer....

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