Quase Mortes Reparadoras




Gilberto (41) é um lavador de carros, residente em Alagoinhas-BA.
Sem filhos, ou esposa, vive uma vida simples e mora sozinho.
Passa meses sem visitar sua mãe, e irmãos, que moram na mesma cidade.
Numa manhã de segunda, indo pra labuta, Gilberto esbarra num amigo. Este, entre assustado e atônito diz:
“Mas tu num tá morto homem?”
Um Gilberto assustado liga para um amigo para saber o que está acontecendo.

Este, ao atendê-lo, diz que não gosta de trote com coisa séria e desliga.
Encasquetado, ele dirige-se à casa de sua mãe.
Chegando lá, muitos saem correndo, outros desmaiam, outros gritam apavorados, outros o abraçam chorando.
O defunto que jazia, envolto num mar de flores brancas de cravo, não era ele.
Seus irmãos o reconheceram erroneamente no IML.
Desfeita a confusão, Gilberto ficou famoso, deu entrevistas, vestiu camisa de empresa para “merchant”, e ganhou na cidade a alcunha de morto-vivo.
Sua mãe disse:
“Eu fiquei muito alegre. Por que qual é a mãe que tem um filho que dizem que está morto e depois aparece vivo que não se alegra?”
Fiquei imaginando o quanto seria de bom, para o zeramento de faturas com a vida, uma mortezinha de araque vez por outra.
Saberíamos quem iria chorar por nós, quem se escalaria para segurar nosso caixão no caminho até o chão que chama.

Quem diria coisas bonitas sobre nós, outras nem tanto.
Quem ficaria resmungando lá fora, naquele lugar no velório no qual as pessoas se divertem observando quem chega, quase uma festa, só faltando cerveja e tira-gosto.

Observaria atento os papa-defuntos, as dívidas sendo perdoadas, os amigos remoendo as últimas cenas comigo.
“Lembro que ele postou algo sobre um dia difícil, devia está tendo uma premonição...”

Gilberto foi um felizardo, até entrevista na BBC de Londres deu, mas não foi felizardo por isso.
Foi felizardo porque, uma vez que não está morto, pessoas que o velaram pelo domingo e manha da segunda, amigos e família, poderão fazer ainda em vida as coisas que disseram, entre soluços, que fariam caso ele estivesse vivo.

Imagino que seus quatro irmãos casados irão chamá-lo com mais frequência para visita-los.
Até para comer aquela lasanha com frango no almoço domingueiro.
Os amigos farão a cota para ajeitar o seu barraco, botarão até um 3 x 1 na estante.
Os clientes do Gilberto passarão a tratá-lo com mais dignidade, visto que alguns deles souberam na missa do domingo do ocorrido e tiveram dificuldades de lembrarem-se do rosto dele.
Outros que velavam o seu corpo e comentavam que sempre os viam na praça com trajes molambentos, levariam roupa de bacana para ele vestir.
O pastor ou padre que encomendava o defunto, iria pessoalmente convidar o Gilberto para integrar a sua comunidade, aquela da praça na qual lavava carros, para a qual o ele nunca fora convidado, embora trabalhasse na área há muitos anos.
As tias e cunhadas compungidas iriam convida-lo para aniversários, para batizados.
O morto-vivo Gilberto, apelido que ficou sendo conhecido, faz-nos pensar sobre a finitude da vida, e sobre o quanto é bom não deixar perdões, ou eu-te-amos para os dias seguintes.
Poderá ser tarde.
Vamos juntando coisas que nos afastam de quem amamos, uma mágoa aqui, outra acolá. Vamos enchendo nosso coração com todo tipo de cobrança, de ódio, de indiferença.
Acho que precisamos de pequenas mortes, nossas e dos outros, para que possamos renascer relacionamentos, retomar vínculos e até refazer a confiança perdida no vale encantado do conviver.
Olhe para quem está a tua volta.
Grave o rosto delas.
Preocupe-se com elas, procure saber mais de suas vidas, compartilhar sentimentos.
Pode ser aquele copeiro que te serve o cafezinho, ou a recepcionista.
Interesse-se pelo mundo do outro com o qual convive.
Supere ressentimentos, mágoas encanecidas.
Se aprender como fazer isto totalmente, sem deixar uma pontinha sequer, manda um email pra mim me ensinando.
Contudo, uma pontinha de mágoa não faz uma guerra. É até sinal de auto-estima.
Diminua o passo, e contemple a beleza de uma pessoa humana que interage contigo.
Aproveite para dizer, a algumas delas, o quanto são especiais em teu viver.

Imagine agora quem serão os seis que te levarão para deitar a sete palmos do chão.
Que tal ligar para eles, ou mandar um sinal de fumaça, dizendo que os ama?
Não faça como Gilberto, ou seus familiares queridos, que se acostumaram a vê-lo apenas uma vez por ano, morando todos na mesma pequena cidade.
Tenho sido relapso neste item.
Acumulo dívidas com um montão de amigos e familiares que não troco um afago, há tempos.
Sou uma ameba-sapiens mesmo.
Mexeu comigo esta pseudo-morte do Gilberto, que fez libertar corações, fez fluir novamente o fluxo do amor.
O sucedido com o morto-vivo de Alagoinhas, lembrou-me a primeira cena do filme Ikiru (Viver) dirigido por Akira Kurosawa. Nesta cena, após saber que tem poucos meses dde vida, um gestor se aposenta e vai pra casa. Um belo dia, um de seus funcionários, com compaixão, bate a sua porta e o convida para sair. A cena dele balançando-se no parque municipal pela primeira vez é espetacular.

Inspirado nas quase-mortes das relações a dois cotidianas, amanhã vou mais uma vez resgatar a relação – a mulher ficou bicuda comigo porque esqueci de ligar para ela nos dias em que esteve fora.
E, quem sabe, a chamo para balançarmos num parque qualquer.
Este negócio de esperar pra ver quem se dobra primeiro, num teatro de culpas e ressentimentos, é um jogo que não estou curtindo mais.

Vai que eu morra!

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