Chicão não morreu!

Era um domingo ensolarado. Na pauta, atividades prazerosas do tipo: brincar com JG, soltar Balu, cuidar das plantas, armar a rede, lagartear ao sol e bebericar uma caipirinha. 
No som, botei pra tocar umas serestas das boas. 
Em dado momento, resolvi checar meus e-mails e Facebook. 
Aí vi esta mensagem do Vinicius acima. 
Não precisa dizer que todo o relax, paz e harmonia de um domingo foram embora. 
Chicão, amigo querido, exemplo de professor, humildade e sabedoria em pessoa. 
Não podia ser! Subi e desabafei com minha esposa. 
Até comentei que achava que tinha perdido o velório, o que me fazia sentir pior ainda. 
A partir daquele momento todo o meu corpo e ser entraram em processo de luto. 
Hormônios dispararam, emoções alteraram pressão, batimentos cardíacos e até o metabolismo basal da fome foi alterado. 
O luto abre caminho sobre a fisiologia e pede espaço para acontecer. 
Uma onda de tristeza invadiu meu ser. 
Nada mais se fazia belo: Balu, plantas, sol, JG, serestas... 
Tudo se tornara opaco frente à saudade do amigo que se fora. 
Fui procurar antigas recordações, para evocá-lo; 
Rememorei vivências das salas dos professores da Faculdade Projeção, na qual tínhamos agradáveis tertúlias. 
Escola na qual fui muito feliz como educador, junto com o finado. 
Busquei na biblioteca um livro dele, sobre gestão do conhecimento, que eu adquirira em 2010. 
Revi sua dedicatória e me emocionei. Sai para procurar fotos e tentar achar alguma que relembrasse o Chicão. Estivemos juntos em várias colações de grau como professores homenageados pelos alunos do Projeção. E havia entre nós certa cumplicidade de fazer o melhor pelo ato educativo, de dar o melhor da gente. 
É duro perder um amigo. 
Passei então a tentar um contato com amigos comuns, procurando maiores informações. 
O que se revelou infrutífero. Todos estavam fora ou não conectados. 
À noite, fui tomado de um susto. 
O colega esclareceu que fora um engano. Quem morreu foi a mãe do professor. 
Passei uns segundos em transe. 
Pensava: imagine se eu cruzo com o Chicão, na tarde deste domingo? 
Quem morreria seria eu, de medo de alma penada! 
Após o breve pensamento, dei um sonoro Ufa! 
E um eita porra interior! 
Chicão está vivo, viva! 
Agora vou visitá-lo na Faculdade Projeção. 
Vou dizer o quanto ele é importante para mim. 
Vou dá meus pêsames por sua mãe. 
E levarei meu livro para ele. 
Chicão e o que senti me fez lembrar uma recente decisão de categorizar o luto como mais uma das doenças mentais. 
Ou seja, meu luto poderia ser catalogado, segundo a nova classificação psiquiátrica, como doença mental. 
Daqui a pouco qualquer traço de infelicidade, tristeza, melancolia será patológico. Será doença. 
Um absurdo! 
Revirando as memórias relembro de situações que quiseram poupar os familiares do último contato com seus falecidos, sob o pretexto de protegê-los. 
Proteger do luto, como querem fazer os que entopem os enlutados de remédios para esquecerem-se de lembrar. 
Numa situação pude intervir, ele até hoje agradece ter visto o filho, mesmo que numa situação difícil. 
Na outra, pude ajudar um amigo a abrir o quarto do filho falecido, que familiares tinha trancado e escondido a chave dele, desde a morte do filho, seis meses atrás. 
Precisamos chorar as mil lágrimas de dor, de desespero, de saudade. 
Faz parte do pacote da vida e do viver. 
Nas duas situações e em outras tantas que vivi parece que nos incomoda a pessoa triste. 
E este incomodo faz-nos sair correndo para prescrever os mais diversos remédios para a pobre coitada, que só quer expressar sua tristeza e pronto. Deixem-na em paz. 
Outro dia um amigo confidenciou os dramas de lidar com um adolescente com autismo. 
Ele só queria desabafar o dia a dia de uma família com necessidades especiais. 
Pronto, choveram fórmulas, conselhos e propostas medicamentosas para que ele tivesse “saúde mental” para lidar com a “depressão” de ter um filho anormal. 
Meu Pai! 
Quanta crueldade. Este pai tem direito a ficar triste. Chateado, cansado, estressado com a lida difícil e diária que tem que suportar. 
Não está doente. 
Está sofrendo. E ponto. 
Na sociedade moderna o modismo dos remédios da felicidade vão disseminando uma falsa crença de que é possível resolver tudo, ou esquecer-se de tudo, com uma dosagem adequada de um produto químico qualquer. 
Santa ilusão. Interesses milionários de grandes laboratórios estão por trás, além de profissionais inescrupulosos. 
No meu estágio supervisionado cumpria a carga horária no hospital de Esperança-PB. Das 7 às 9 da manhã e nos sábados. Fiz isso por um ano. Era impressionante o quanto de pessoas me procuravam confundindo-me com psiquiatra, para renovar a receita e “pegar mais remédios”. 
Como não posso tirar medicação tinha um pacto com médicos sérios. Os que eu encaminhava com um bilhete para atendimento eles sabiam que podiam retirar a medicação. 
Lembro-me de uma senhora que tomava tarja preta há dois anos. Sua doença? O marido lhe abandonara para ir trabalhar em São Paulo e nunca lhe dera notícias, era uma das que chamamos de viúvas da seca. 
Ela tinha ou não tinha razão para chorar, sofrer, entristecer-se? 
Desde quando decepção é doença? 
Dói pra danado, mas doença não é! 
É um cálice que temos que beber. 
Esta tentativa moderna e medicamentosa de nos distanciarmos do objeto do sofrer, isolando-o numa redoma, para controlá-lo, vai cobrar um preço muito caro da sociedade. 
Vamos perder a capacidade de reagir à dor, por falta de treino, por falta de contato com ela e de aprendizado com as situações. 
Ou seja, no dia que faltar um diazepan por perto, uma cocaína, um álcool, e estivermos imersos num processo de sofrer, vamos explodir ao primeiro cara que buzinar o veículo na nossa traseira. 
Acontece que um sofrer mal vivido vai dificultar o processo de recuperação da própria dor interior. E ele pode voltar lá na frente, aí sim, sob forma de depressão ou outra patologia mental. 
A vida cobra cada lágrima engolida, cada tristeza violada, cada luto mal dormido, às vezes com comportamentos de distanciamento e embotamento de emoções. 
Conheci uma senhora que flagrou uma carta de uma amante, na mesa de trabalho do marido. Procurou-me e disse que tinha perdido o orgasmo, desde então. É que ela adiou o chute que queria dá na bunda dele, racionalizou a dor que sentia por causa dos filhos, fingiu-se de forte, e engoliu em seco para não causar má impressão..., aquilo somatizou por dentro e explodiu no seu prazer sexual, tornando-a anorgástica. 
Um absurdo. Temos direito ao luto. E, para alguns, duas semanas serão suficientes. Para outros, dependendo do impacto da morte do ente. 
Daqui a pouco um fora que um adolescente levar da namorada, uma crise de espinhas no rosto, uma não escalação para o time de futebol juvenil, será motivo de levar nossos adolescentes ao doutor em busca de remédios para eles. 

Remédio? Deixa sofrer. Eles passaram por isso. Nós passamos.

Não precisamos poupá-los de tudo como se a vida fosse sempre boa.
Tem coisas chatas e eles precisam aprender e treinar a passar por elas. 
Assim vão adquirindo maturidade e inteligência emocional. 
Fui procurado por uma aluna a Kássila. 
Ela, tão jovem recebeu um pre-diagnóstico de uma doença gravíssima. Estava angustiada, ansiosa, frente á espera dos exames conclusivos. Ela soube viver estes trinta dias de espera com uma fortaleza digna de inveja. Não buscou refúgio em drogas, álcool, etc. 
Aguentou o tranco emocional. Hoje recebeu o resultado e não tem a doença. 
Mas, o que ela aprendeu nestes trinta dias de sofrer a que se permitiu, sem se entupir de remédios, ficará para sempre na vida dela. Noutros episódios de sofrer vai encontrar forças para resistir, baseada nesta vivência, que ninguém poderá tirar de si. 
De tanto isolar-nos da dor vamos aos poucos criando uma resistência a lidar com perdas, frustrações, expectativas não realizadas, decepções, entre outras. 
Já viu como os enterros, baseados no modismo americano, estão ficando assépticos. Parece que chorar é brega. 
Daqui a pouco, tudo será delivery. Alguém virá buscar o corpo, e ponto. 
Pela internet, conectado a uma webcam acompanharemos o traslado até a terra mais macia. Tudo em nossa casa e de nosso laptop. 
Sem o cheiro da morte e da vida que nestes momentos se embrincam. Tudo limpo, chique e sem emoção. 
Assim como o antibiótico só deve ser prescrito nos casos de infecções que o recomendem, sob-risco de criarmos resistência aos medicamentos corremos o risco de criamos uma sociedade que de tanto anestesiar a dor, entupindo-se de ansiolíticos, antidepressivos, álcool e outras drogas lícitas e drogas ilícitas não saberá mais lidar com emoções; sem o apoio de muletas químicas. 
E o aprender a lidar com estas emoções, processá-las no curso normal da vida, faz parte do processo de amadurecimento e crescimento, para o qual nunca estaremos prontos. 
Voltemos ao Chicão e meu sofrer. 
Naquele domingo cresci emocionalmente. 
Exercitei a compaixão, a misericórdia, a solidariedade, a saudade, as lembranças de quem nos fez bem. 
Cresci. 
Pude fazer contato comigo mesmo, conectar-me a sentimentos nobres. E sentir-me parte de algo maior, a humanidade e suas dores. 
O que me irrita é que tudo vai virando doença e anormalidade. 
Se for criança levada está hiperativa e tome ritalina nela. Se estiver desconcentrado no colégio está com déficit de atenção e tome remédio; se amanhã está alegre e depois triste, é bipolar, benzoamídico nele; se tem tontura e aperto na garganta e está com síndrome do pânico, se passa umas noites sem dormir, tome Rivotril. Se anda desmotivado, acabrunhado, prozac nele. Se anda nervoso e pensativo, está deprimido, Olcadil nele. 
E vamos vivendo o “amedicamento” da alma, e a coisificação da vida, redimindo-a numa cápsula salvadora qualquer. 
Há capsulas á venda para tudo: para falta de perdão; para mágoa; para frustração;


para melancolia; para ansiedade, para o desamor... 
Até santinhos são pregados em locais de grande concentração oferecendo curas para tudo. Igrejas embarcam nessa moda e ninguém “anormal’ é deixado em paz. 
Todos querem salvá-lo. 
Seja com alimentação, esporte, lazer, reza droga ilícita, ou lícita, com receitas populares e mandigas. 
O mercado da alegria a qualquer preço está em alta. 
Leve um triste para a salvação! 
Em baixa estão os espaços de filosofia, de autoconhecimento, de contemplação, de silêncio, de reflexão, de se "pensativação." 
Aliás, refletir também virou doença: “sintomas de hiperreflexão”. 
Aqui, felicidade à venda! 
Sem falar nos livros, manuais e vídeos de autoajuda de quinta categoria. Aquela que diz “acorde diga bom dia e tudo será lindo”...: “O mundo conspirará a favor e você será feliz, acredite.” Aí o mundo esquece-se de conspirar e você fica duplamente chateado, agora consigo próprio, pois faltou força de vontade. 
Parece que tudo agora está resolvido com esta simples frase: “Pense positivo!”. 
E começamos a carregar um profundo sentimento de culpa: pois se as coisas não vão bem é que "não pensamos positivo, não captamos a energias, não entramos em sintonia, não atingimos o grau de meditação desejado". Alienação de massa. E você que está lendo este texto não pense que sou um apóstolo da infelicidade e da tristeza. Não é nada disto. 
Sou feliz, sou triste. Sou azedo, sou doce. E já tomei tarja preta para tratar depressão. 
E sou defensor de seu uso. Mas, só em caso de extrema necessidade e muito bem diagnosticado. 
E sei o que é depressão. Estive lá. E sei bem sua diferença com episódios de tristeza. 
Repudio esta forma de como estas fórmulas mágicas chegam e são consumidas, pois acho que ao longo do tempo elas vão provocando sequelas profundas, nas pessoas que as procuram, gerando uma sensação de que quando não deu certo é a pessoa que não as empregou direito. 
Portanto, pense duas vezes antes de se entupir de tarja preta. Nem tudo que te faz infeliz te faz mal... No arriscoso processo do viver, não há almoço grátis. Tem dias de frustração, perdas, decepção, de alegria, motivação, de desânimo, de tristeza, de saudades, de luto, de júbilo, de excitação, de felicidade e de paz. Tem dias de tudo. Cuidado com fórmulas que anestesiam teu sofrer como se ficar triste fosse doença. Doença é nunca sentir razões para ficar triste... É perder a autoconsciência e o autoconhecimento que nos revelam o que não está bom e nos dão o impulso interior necessário para mudar o que dá para mudar. E conviver com o que dá para conviver. 
Como psicólogo tive alguns atendimentos que liberei nas primeiras sessões. Não era depressão. Era sofrer. Era luto mal vivido. Choro reprimido. Perdão adiado. Saudade pressentida. Mágoa encardida. Culpa anoitecida. Sapo digerido. Para essas pessoas eu digo: volte e sofra. Se doer tome um "doflex" existencial ajudando alguém. Sempre tem alguém precisando de nós, e ao ajudá-lo ajudamos a nós mesmos a processar o sofrer. A tristeza é um momento de espírito: "ela passará, você passarinho". É quase que uma infecção emocional, tem seu tempo, sua evolução. Seu próprio ritmo de cura, e em cada pessoa difere. Quando não vivenciada, evitada, vamos criando resistências a ela, buscando no álcool, drogas, e outras fugas formas de não enfrentá-las. Só em casos extremos evolui para depressão. Se tem amigos, excelente, ajudam bastante. Principalmente se respeitarem teu momento. Se tem espiritualidade, excelente, ajudará a melhor se compreender e a resistir, divida seu peso interior com Jesus. 
Importante é se compreender, se aceitar. Evitar flagelar sua autoestima. Se vitimizar. 
Muitos estão como você só não tem coragem de expressar. Na verdade, você é que é forte em demostrar que sofre. 
Acredite... mas cedo ou mais tarde o sofrer vai dissipando. Não apresse o rio interior. A vida é terapêutica. 
Vez por outra se leve para passear. Visite presídios, hospitais, creches, asilos. 
Ajude quem precisa. Aos poucos você vai refazendo sua vida. Reescrevendo sua história. Só não embarque na onda do ser feliz é normal ser triste é doença. Doença é não entrar em contato com os próprios sentimentos e reagir a eles, deslocando-os e negando-lhes com apoio de um ópio qualquer.

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