Uma pua, uns amigos, uma vida!




Uma pua, uns amigos, uma vida!

Nos idos de 1986, um ladrão ficou famoso em Poções-BA. Ali eu residia quando comecei a trabalhar no BB. Morava na rua Vitória da Conquista.
O ladrão chamava-se da Pua.
A notícia do ladrão da pua, altamente periculoso e ousado espalhou o pânico por toda a região. Ninguém mais dormia em paz. O meliante pueiro era assunto de todas as rodas, das etílicas às religiosas.
Aquela cidadezinha, ávida por assunto, tinha todas as manhãs farto material para suas rodas de conversa, um prato cheio. Onde ele atacara novamente? O que levara? Quem seria ele? Quais as pistas policiais? Intervenção já!
O povo se ouriçava.
Diariamente, algum infortunado tinha sua casa arrombada, da maneira mais silenciosa e limpa possível. Aliás, limpa ficava a casa. O cara era engenhoso. Ele usava a pua, este instrumento que você vê na foto. Uma espécie de furadeira manual. Ele entrava pelos fundos das casas e fazia uns 40 furos na porta de trás. Os furos unidos iam desenhando/"costurando" uma espécie de retângulo de vazios, até que, quando completado o ladrão puxava o tampo para fora. Depois, adentrava com sua mão e sorrateiramente abria a fechadura da porta. Serviço limpo. O meliante era engenhoso. Naquela noite de 1986 o meu primeiro filho, o Tiago, chorava muito. Ele estava com 14 meses. Como era chorão meu Deus do Céu. Descobrimos depois que era fome. Sim, fome. Alguém nos dissera que não podia dá muito leite ao menino. E as rações eram cronometradas: 21:00, 03:00; 08:00 e assim por diante. E o pobre passava fome. Naquela madrugada, não fora diferente. Perto das 3 da manhã, tome choro. E levantei para ir preparar sua ração enquanto a mãe o acalentava com aquela música inebriante: a, a, a... a, a, a. Segui para a cozinha, cambaleando de sono, naquela casa mais comprida do que um dia de fome.
Abri a geladeira, enchi sua mamadeira e voltei para o quarto. Quando ele começou a sorvê-la, calou-se.
Fez o silêncio, ou quase. Da cozinha veio um som áspero. Um estalo forte e seco. Corri para cozinha ver o que era. Pensei que algo tinha caído no chão, algo que deixara solto na pia. Nunca imaginei que viria o que vi. Quando acendi a luz da cozinha vi a mão do ladrão da pua, do lado de dentro da porta. Num gesto de bravura-louca peguei uma peixeira e urrei que o mataria. "Vou te matar seu filho da puta". Ele puxou a mão e correu. Eu abri a porta e sai correndo atrás do seu vulto, naquele quintal enorme e cheio de árvores, esgueirando-se e pulando tudo que encontrava pela frente. No final do lote ele pulou o muro do vizinho e desapareceu envolto nas brumas de Avalon-Poções.
Liguei para a polícia relatando o ocorrido. Pronto!
A casa virou notícia. Sirenes, colegas do BB, todos vinham ver o paraíba que botou o ladrão da pua para correr.
Na mesma noite, colegas solidários ofereceram suas residências para dormimos. Disse-lhes que era besteira. E ficamos em casa mesmo. Uns arranjaram pregos e madeira e improvisaram um tampo na porta. Uma festa na rua Vitória da Conquista, madrugada a dentro. Recebi então do Alvina, colega caixa da ag. do BB em Poções (o Antonio Carlos), um presente. Era um revólver. Nunca tinha visto um tão bonito. Pequeno, um 22, que segundo ele: "Se o cara for gordo a bala não entra."
De tão fraco que era o revólver. Mas impunha medo. Aquele 22 foi melhor do que lexotan. Por muito tempo carreguei-lhe comigo. Sentia-me seguro com ele por perto. Nunca esquecerei o gesto do Alvina e de sua esposa, naquela madrugada fria, quase como a nos dizerem: "cuidaremos de vocês". Eu e minha esposa, e um bebê de 14 meses, todos assustados e sem nenhum parente em terras tão distantes.
Poções-BA dista 1.800 km de Campina Grande-PB.
Recebemos aquele revólver não como uma arma. Mas como um abraço, um apoio solidário. Saí até no jornal, de tão famoso que o caso ficou. Não me lembro se pelo grito, pelo susto, se foi pego, ou por que saiu do ramo, o ladrão da pua parou. Não agiu novamente.
Pelo impulso e instinto eu podia ter morrido, de furadas de pua, não recomendo a quem me lê reagir. Só grite.
Poções foi uma bênção em meu viver. Quase um almanaque emocional.
Um lunário perpetum.
Ali dei aulas de natação, na AABB, para complementar a renda. Formei umas duas turmas. Até aluno com dificuldade de locomoção ia para as aulas, como terapêutica, e as mães adoravam ver os filhote evoluindo. Ali aprendi a me virar sozinho. A cozinhar, a tecer uma rede de amigos. A ser gente. Poções foi uma escola de vida, de fé, de amor. Lembro quando um amigo do BB perdeu sua esposa, na assassina BR 116. Ele ficou transtornado, de luto por um bom tempo. O que o sustentava eram os filhos. Abatido, sem vida, um dia ele aceitou nosso convite para comer uns frutos do mar. Ali, o apresentei a uma amiga. De saída em saída, ele foram se gostando. Os dois até hoje estão juntos e fui o padrinho do seu casamento. Poções foram tantas histórias que daria um livro. Deus me abençou muito naqueles 15 meses de Poções.
Um jovenzito bancário de 22 anos e um mundo a descobrir. Com cinco meses de Poções, após a pua, minha ex-mulher voltou definitivamente para Paraíba, levando o Tiago. Ela deprimiu e foi se tratar. Pronto, fiquei sozinho.
Doeu, como doeu.
Aprendi um monte de coisas. Até cozinhar. Lembro que a primeira sopa-carne que eu fiz, errei na pitada dos temperos, e ficou horrível. Mas, uma senhora que morava em frente de casa me ensinou as artes da cozinha. O valor da pitada, uma pitada de sal, uma pitada de cominho...rsrs e várias pitadas de amor.
Como fui amado. Até por gente que mal conhecia, anjos em forma de gente.
Outros foram gente em forma de anjos: o Alcione, o Deraldo, o Pedro, o Alvina nenhum me deixava só. Parece até que tinha disputa para me pegarem para almoços de finais de semana, happy hours; Como este da foto com Alcione, Pedro e a sua futura esposa.
Eles sabiam o quanto eu sofria com a separação precoce da família.
Até hoje guardo no coração o quanto fui amado. Alcione foi meu supervisor do Setin, Setor Interno do BB. Ensinou-me muito de BB. Ensinou-me a fazer duas coisas ao mesmo tempo, a ser compromissado e leal, com ele aprendi a ser elétrico. Deraldo ensinou-me o valor da amizade, daquele amigo que fala pouco, e que está sempre presente. Com Deraldo dividi a pensão de Dona Alvina, logo que cheguei por uns 3 meses, até achar uma casa (com telefone) para alugar. Casa com telefone era luxo e eu precisava manter pais e sogros informados na minha aventura baiana.
Quantas ordens de pagamento recebi de meus pais para ajudar na minha sobrevivência. Tudo tão difícil e pobre, como todo início de carreira.
Deraldo foi meu psicólogo e companheiro fiel de boteco. Aguentou minhas lamúrias, bravamente.
Adorava perder umas partidas de xadrez para ele. Eu não jogava nada, e Deraldo é mestre em Xadrez. Em Poções participei do Movimento de Familiar Cristão (MFC), acho que era esse o nome. Aquilo me ajudou, conheci muita gente boa, do verdureiro ao padre.
Já o Alvina, o Antonio Carlos, era o líder que eu queria ser quando crescesse.
Todos o respeitavam. Ele juntava conhecimento com atitude. E sempre tinha uma proposta para que o trabalho fosse melhor executado. Baiano típico, risonho, tirava onda com todo mundo, nem minha mãe escapou no dia de minha posse. “Conheçi muito sua mãe”.
Contudo, tirante a graça da posse, ele ficou meu amigo e me defendia de tudo que era bola quadrada que vinha em minha direção. Basta dizer que na pensão que fiquei, ele era considerado filho (daí seu apelido de Alvina), e nem precisa dizer que meus pratos de refeição eram sempre maiores dos do Deraldo. rsrs Peixe é peixe.
O ladrão da pua juntou uma cidade para nos proteger. Como era legal aquele sentimento, raro nos dias atuais. Um sentimento de acolher, de integrar, de ambientar e se fazer família social, para os que se achegavam num lugar qualquer. Esta foto é o final da rua Vitória da Conquista, rua que morei, já bem perto da BR 116. Aquela casa amarela era um bar que servia frutos do mar. Foi ali que apresentei ao Pedro Nelson a sua futura Esposa. A igreja que eu frequentava, chama-se do Divino Espírito Santo. Ali, com Pe Valdir, fiz muita pastoral social. Pe. Valdir era simpatizante do que viria a ser o PT. E muito me influenciou na visão de esquerda que tenho.
Todo mundo deveria ter direito aos amigos que tive e que nas horas difíceis me apoiaram.
Amigos como Eva e Messias, um casal que conheci no MFC e que possuía um pequeno estabelecimento de material de construção. Daria tudo para reencontrá-los e agradecer o que fizeram por mim. Aprendi a gostar de seresta com Messias e Eva. Indo jantar em Vitória da Conquista (60km); comer massa e ouvir uma boa seresta. Que casal amigo. Em 86, eles não deixaram que eu passasse o natal sozinho. Buzinaram na porta até eu abrir. Era manhã de 25/12. Chorara com saudades na noite anterior. Seria meu primeiro natal sem família. O pessoal do BB tinha feito de tudo para eu não ficar só. Mas eu inventara umas mentiras, disse-lhes que viajaria. Queria ficar só mesmo. Encher a cara. Na manhã de 25, um carro buzina insistentemente. Fico puto e abro a porta.
Era o Messias e Eva. Eles me forçam a ir com eles, passar o Natal com a mãe do Messias, em Jaguaquara. Ela nos esperava para a janta, com uma FATADA (nem queira saber o que é). Chegamos lá e a vovozinha octogenária toda feliz nos recebe, Agradeci ao bom Deus aquela noite. Ela nos leva para ver o prato. Da cozinha vem um cheiro de urina fétido. Messias ria aos borbotões. Eva tapa o nariz. E me diz: a vovó esqueceu de lavar os rins do boi em 4 águas. A mãe do Messias nos chama até à cozinha. Ela abre a panela. Eu e o Messias sorvemos aquele gás. Olhamos para ela, que com expressão tão doce esperava nossa aprovação, e dizemos quase em coro: "está muito cheirosa esta fatada!". Saímos rindo em direção ao primeiro bar da esquina. Só embriagados comeríamos aquilo. E comemos. Eva livrou-se, era vegetariana. Cada dia de 1987 foi especial. Era mais um dia de resistir. Minha esposa não voltou. O sogro, que Deus o tenha, falou-me que ela estava muito deprimida e fazendo tratamento psiquiátrico e que iria conseguir me "tirar dali". Não sabia ele o quanto eu gostava. Após 8 meses morando só, ele conseguiu minha "relocalização" para Remígio, uns 30 Km de Campina Grande. Fiquei alegre e triste. Alegre por me juntar aos meus. Triste por deixar aquele pedaço de esperança e de paz que foi Poções. Deixar tantos amigos-irmãos. Deixar tanta vida, tanta cultura, tanta pujança, tantos finais de semana ouvindo Xangai e Elomar, nas Barrancas do Rio Gavião. A despedida foi na AABB, com direito até a vitelo na churras. Quanto choro... quanto choro... nunca tive coragem de voltar em Poções. Nem para ser padrinho. Sou padrinho sem ter ido ao casório, pelo menos não me lembro. Hoje entendo o porquê de alguns nordestinos não voltarem mais à sua terra quando migram. É a dor da saudade do que foram ali. Em Poções-BA, aprendi a jogar o baba (futebol), a jogar o bogue (pôquer de dado), aprendi o valor de uma festa do Divino, o valor de um grupo de amigos. Aprendi que a fé se expressa em amor e o amor é a fé maior, um amor de um Scoboca 22 (o apelido do revólver); o amor de um jogo de xadrez; de uma macarronada domingueira, de uma fatada mal-cheirosa, de uma pensão chamada Alvina. De um grupo de pessoas que aprenderam que fé e vida são parte da mesma essência, amigos do MFC: da foto histórica com Eva, Messias, Pedro, Deraldo, só faltando o Alvina, no quintal lá de casa. O mesmo que corri atrás do homem da pua.

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