Efeitos da marcas dos outros em nós.


O sábado era frio em Brasília-DF, uns 12 graus, um frio desses é algo incomum por estas bandas.

Na cozinha da casa do Ricardo e Cristiane, deliciávamos-nos com um cafezinho recém passado, acompanhando por biscoito de queijo, além de uma prosa revigorante.

Uma bênção poder frequentar a cozinha de amigos.

Entre um pão de queijo e outro, o Ricardo me convida para conhecer seu Atelier, de arte em concreto, localizado no terreno aos fundos de sua casa.

Fui logo vendo a limpeza da oficina: cimentos, ferro, prensa, tinas para cura, formas, tintas e pinceis, troncos de árvores, tudo numa ordem e limpeza impecáveis.

Mais à frente algumas peças prontas, aguardando a entrega e outras curando em água.

Engulo em seco quando as vejo. Sempre admirei peças de madeira velhas, tipo dormentes, portais, roletes de tronco, madeira de demolição.

Creio que elas carregam uma história, quase falam.

Com o boom de sua utilização, encontrar madeiras de demolições a preço acessível tem se tornado uma luta inglória. Tem até gente que dá um jeito para envelhecer umas madeiras e enganar os clientes.

As peças em concreto que o Ricardo produz são imitações fieis das que sempre procurei comprar. Até as marcas de pregos retorcidos nelas estão presentes.

Falhas nas madeiras, sulcos que o tempo esculpiu, vales, grutas, fendas e montanhas na madeira existente, nada escapa à arte.

Fiquei embevecido e encomendei 5 dormentes. Sempre quis ter dormentes em casa, e esse que comprei agora é mais sustentável.

E a um preço 200% inferior ao tradicional, hoje vendido em lojas de decoração.

Muitas árvores velhas estão sendo abatidas para que delas se extraiam lascas dos troncos que deem tábuas decorativas, uma pena.

Queria um milhão de “atelieres” do Ricardo, de arte em concreto, para que essas irmãs-árvores centenárias pudessem viver em paz.

Ele consegue reproduzir tudo, até uma tábua de tronco do cerrado, cheio de gomos que mais parecem uma cortiça, está à venda.

Ele me diz que é um garimpeiro de troncos velhos, procurando-os como tesouros pelas marcenarias, restos de demolição, derrubadas, ou até nas casas de amigos.

Ao encontrá-los, os imita numa arte que embevece os olhos.

Primeiro, ele prepara a peça de concreto, sempre com hastes de ferro em seu interior para reforçarem a estrutura. Depois, com o concreto moldado, e ainda macio na forma, ele molda o tronco escolhido na mesma, usando a força de uma prensa hidráulica.

Em seguida, começa a arte, propriamente dita, que é a reprodução fidedigna das cores – no produto recém moldado, utilizando-se como modelo as tábuas escolhidas para tal finalidade, retirando da prensa as tábuas que serviram de modelo.

Após sua limpeza, elas “posam” de modelo para que sobre peças ainda monocromáticas, sem graça e formosura, vá depositando uma variedade enorme de tons sobre tons, tornando-as, agora, coloridas que ficaram bem parecidas com aquelas peças que em si fizeram morada por um tempo, nem que seja no útero de uma prensa hidráulica.

As cores são os sorrisos da vida.

Aquele velho tronco, aquela velha tábua, agora toda formosa se embeleza e numa altivez impressionante posa para que nas mãos do artista um quadro dela própria seja pintado no frio e distante cimento duro.

No final, de tão perfeito que fica, só se descobre o que é madeira, e o que é concreto, se tocarmos nas peças.

Cada deck com elas feitas, cada revestimento, cada piso, semeia um pouco de esperança na preservação e sustentabilidade de nossas madeiras de lei: Castanheira-do-Pará, Copaíba, Cerejeira, Pau Brasil, Ipê- amarelo, Carnaúba, Angelim-Pedra, Cedro, Andiroba, Aroeira, Jequitibá, etc...

Ricardo sorridente diz que guarda os moldes, ao final de cada prensagem. Eles são tesouros. Um molde bom transmite para umas 1000 peças adiante suas marcas, suas cores, ou seja sua forma.

Podem ser diferentes, o modelo e a pintura final, contudo entre si guardam semelhanças profundas, tal qual a modelo secreta da Monalisa de Michelangelo.

Com certeza tinha um sorriso discreto e que sorria com o ser.

Notando que eu estava embevecido, ele convida-me para seguir terreno abaixo, mostrando as aplicações de sua arte no jardim, pomar e horta.

Fiquei profundamente tocado naquele dia. Voltei pra casa pensando em quantas pessoas deixaram suas marcas em mim.

Meus pais, irmãos, amigos, afetos, filhos, mulheres amadas, namoradas, ficadas, os amigos da Ong GAV, do EJC, do ECC, dos grupos jovens e das pastorais da Paróquia do Rosário, do Banorte, das Damas, do BB.

Outros amigos, mais recentes, continuam a esculpir a obra de Deus em meu ser. Esculpem em mim seus talentos tais como os amigos Metodistas, os da UniBB, os da Ditec, os meus alunos e professores da Unip, Católica e Ibmec, os do Facebook e tantos outros que tive a felicidade de conviver nos cursos e palestras que ministrei.

Carregamos as marcas de tantas pessoas com as quais convivemos ou tenhamos cruzado pela vida afora.

Também podemos deixar marcas nos outros.

Marcas podem ser boas, nos elevarem, esculpirem em nós novas criaturas.

Por isso é fundamental, pela vida afora, encontrar bons troncos para conviver. Árvores boas, mansas, sábias que com certeza, pelo exemplo, lhe tornará uma pessoa melhor ao conviver com elas.

E, caso tenha convivido com gente má, infeliz, pessimista e medíocre – cuidado para não ter ficado com os seus sulcos, suas marcas, impressas em teu ser, mesmo que seja em teu inconsciente.

Um famoso estudioso da aprendizagem, Piaget, descobriu que uma das formas mais utilizadas pelo nosso cérebro para aprender é a imitação.

Esse é o perigo de se conviver com troncos podres, eles podem moldar em nós suas piores características.

Outro perigo são os sepulcros caiados. Pessoas que por fora aparentam uma coisa e que na verdade, em sua essência, são outra. Ardilosos, manipuladores, enganadores de toda natureza, fingem a mais correta atitude: perigo, tudo fachada.

Na metáfora com o atelier de arte em concreto, são os troncos falsos. Que por fora são belos, íntegros, fortes... mas em seu interior habita famílias de cupins. A madeira então, aquele belo exemplar cujas característica irão ser imitadas, não aguenta a pressão e rompe-se ao menor esforço da prensa hidráulica. Sua estrutura desmorona, cede ao teste da força.

Outras madeiras hipócritas são aquelas que madeireiros sem escrúpulo a envelhecem na marra, enterrando-as em terreno úmido por um ano. Após o que, as mesmas ficam com aparência de velhos dormentes, tábuas e portais antigos. Muito valiosos. Pura enganação. Na verdade, esse processo mentiroso de envelhecimento afeta a estrutura interior da madeira apodrecendo-a internamente. Então, ao ser prensada ela rompe-se facilmente.

Meu amigo Ricardo, contou-me que esse é o maior problema: distinguir troncos-modelo verdadeiros dos falsos, e aí só no dia a dia mesmo. Lembra aquelas pessoas que no mundo lá fora são uns cordeirinhos, uns anjos de retidão. Contudo, entre quatro paredes revelam-se lobos predadores de toda autoestima existente, de toda boniteza da alma que encontre.

São feras sanguinárias da família e de quem lhe rodeia mais de perto.

Fariseus que pregam uma coisa e fazem outra.

Fiquei matutando como isso é parecido conosco. Quantos tidos como exemplos, como baraúnas sagradas, quando se encontram sob pressão, seja da ambição, do dinheiro, do poder, da fama, revelam quem de fato são: troncos carcomidos, almas corroídas, espíritos de porco.

Como distinguir então? Procure os frutos de líder-exemplo. Frutos são gestos concretos de compaixão, de solidariedade, de amor, de perdão, de ética, de honestidade, de justiça, de gentileza, de misericórdia, de educação e de respeito aos seres humanos.

Simulacros de exemplos, sepulcros caiados, não frutificam...

Essa recomendação é muito útil em tempos de eleição também.

A boa notícia é que a fé, o autoconhecimento, a educação e a consciência crítica funcionam como o atelier do Ricardo. Produzem mudanças, transformações significativas usando a força da poesia, da arte, do amor. Conseguem até revitalizar madeiras podres por dentro ou cheias de cupins na alma.

A educação, aliada ao autoconhecimento e amor, criam condições para que a autonomia do ser, seu eterno vir a ser, aconteça e transforme realidades, tidas antes como imitáveis..., perdidas.

Essa tríade mágica: amor, educação e autoconhecimento, pode transformar a pior forma impregnada em nossos ser, em algo belo, e pelo de sentido da vida.

Ela transforma velhos seres, em novas criaturas. Agem como o atelier do Ricardo.

A força da tríade processa para melhor os preconceitos, traumas e mágoas; além de lavar os corações encanecidos pela dor, culpa e luto.

Tornando novas, as velhas criaturas moldadas ao longo da vida e do viver pelos troncos feios e podres com os quais conviveram.

Prepare sua estrutura do ser para deixar-se novamente moldar, leve-se á prensa hidráulica da mudança, procure exemplos que em si carreguem o que realmente importa: a paz, a gratidão, a ética, a justiça, a bondade...

Leve-se ao “Atelier de Concreto do Ricardo”, procure um bom modelo para aprender com ele novas maneiras de agir e ser.

Caso ainda assim esteja difícil mudar, quem sabe não é a hora de ajoelhar e pedir ao bom Deus que interceda.

O Espírito Santo tem a força de milhares de prensas hidráulicas alterando seres já petrificados, formados, e endurecidos pela força do concreto e ferro da realidade do viver.

Peças já moldadas e secas, paras as quais o Atelier do Ricardo não conseguiria mais nelas imprimir novas peças. E que só restaria destruí-las para aproveitar a ferragem interior.

Mesmos essas peças, já prontas, Deus não as destrói. Ele converte água em vinho no coração delas, transmutando-as numa vontade de sentido em novas criaturas.

Mesmo que a madeira de lei de seu ser interior esteja cheio de sulcos, marcas, cicatrizes de pessoas ruins, sempre é tempo.

Desaprenda velhas lições e comportamentos e permita-se a um outro ser possível.

Os bons exemplos, a educação, o amor e a fé libertadora podem transformar pessoas e a própria humanidade.

Criando espaço fecundos em autonomia, valores, consciência crítica e agir político-cidadão, que nos libertarão de condicionamentos emocionais, ou os sócios históricos, que já não fazem mais sentido e nos empobrecem como coletividade.

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Quem quiser visitar a obra do Ricardo é só acessar: 

Arte em Concreto


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