Cartas ao JG - Não mate a criança em você.




Como uma bala tu passa correndo, semi-nu, fingindo que atira com o controle remoto: "pá, pá, pei, pum..."
Esconde-se atrás da cadeira, para assustar tua mãe, que sobe arrastando-se pelas escadas, trazendo as tranqueiras da cozinha, entre elas tua mamadeira
Contemplo-o, preparando o bote, e conto-lhe as costelas e assusto-me com a altura, agora tu quase fica na altura da televisão.
Meu filho tá crescendo muito rápido, penso.
Agora curto com sabor da despedida de pequenos rituais que fazemos. Passarão, e em breve. O tempo anda mais rápido após os 50..

Lembro daquela porta se abrindo, madrugada adentro, e tu vindo aninhar-se em nosso quarto. Chego a esperar aquela entrada abrupta, pelas 3 da manhã.
Como quarto filho que tive, aprendi a proibir e limitar, somente o que proibido e limitado já está pela ética.
Aprendi, finalmente, a deixar-lhe livre. Cultivando valores do céu aberto, melhores do que os das gaiolas.
Parei de querer dá satisfação a todo mundo, em tua educação, ou a ficar ansioso esperando um próximo número da Pais e Filhos para ver se eu tava fazendo direitinho.
Não me encuco mais com recomendações de piedosos pediatras, comadres, curiosos, palpiteiros, familiares e colunistas da mídia de educação infantil.
Sigo o caminho do natural, do amor. E, sei que as coisas vão se ajustando na carroça.
Então, tu ainda toma uma mamadeirinha antes de dormir, e não vejo problema.
Adoro vê-lo buscando o sono, ao degustá-la.
Não tenho o menor receio, ou pressa em tirar as coisas de que tu gostas.
Elas cairão naturalmente, como os teus dentes, sempre que vamos fazer poses para fotos.
Ou, as tirarei, quando achar que já deram e está na hora, como fiz com tua chupeta aos dois anos.
Um de nossos pequenos rituais é o teu jantar. Preparar teu prato, cortar bem miudinho a carne, e te dar na boca, colherada por colherada, me acalma.
Tu mãe já te ameaçou. "Aos seis vai ter que jantar sozinho, afinal já almoça no colégio.".
Tu sorri, sei que sabes comer sozinho, só quer receber aquele trato de carinho - de comidinha na boca.
Fico aliviado, cada colherada que desce boca abaixo, pois sei que és difícil pra comer.
Aliás, aprendi a dar teu jantar vendo o amor de tua mãe, que entre o desespero de sua inapetência, e a esperança de um dia você virar um esfomeado à sua frente, investe na segunda. Nunca a vi cansada em lutar contra tua falta de fome, colher à colher. Quase como quem toma remédio.
Tu sempre teve dificuldade em alimentar-se. Se depender de você, vai virar vento.
Uma luta desde pequeno, ao nascer com menos de 1,5kg e só ter alta da UTI Neo-Natal com 2 kgs, após longos 35 dias aguerrida coragem de querer viver, afinal tu nasceu bem antes do prazo.
Outro pequeno ritual, é quando você me chama pra limpar seu bumbum. Sempre digo: Eca JG, e você sorri.
Sem falar que muitas vezes me entrega pra sua mãe dizendo que fiz às pressas e só passei uma vez.
Outro ritual e tentar que converse comigo. Tu é do tipo que ri a tôa, mas só conversa quando tento puxar assunto.
Aí, tu fica com as mãos apoiadas no queixo, esparramado no sofá, vendo TV e me respondendo laconicamente sobre teu dia, na maioria das vezes, dizendo que não se lembra de nada.
E, eu fico forçando. Forçando você a me dizer as coisas bacanas do seu dia.
"JG, o que foi bom no teu dia?"
Treino você a prestar atenção ao belo, bom e virtuoso que lhe ocorre.
Engraçado como você me mostra coisas assim durante nosso trajeto.
Outro dia você me chamou para fotografar um arco-íris.
"Que bonito papai, dá uma foto".
Quando largará a mamadeira da noite? E deixará de dormir conosco? E de comer "ajudado"?
Daqui a pouco. Nem estou aí para isso, como não fiquei de você até os 3 anos usar fraldas e não saber ir sozinho no banheiro.
Agora aprendeu. Crianças têm curvas de aprendizagens diferenciadas, e a pior coisa é compará-las.
Por exemplo, você não gosta de doces e refrigerante. Mas gosta de beterraba, tomate, cenoura e pepino.
Mas se gostasse, só cuidaria da quantidade. Deixei de ser pai fresco.
Não quero matar, antes do tempo, a criança que habita em ti. Deixarei ela crescer forte e ficar contigo até o dia que por si só calará a voz.
Frutos das mutias formas da vida que te enformarão, informarão, formarão.
Verás um dia que a melhor coisa para aguentar os trancos da vida e ir aninhar-se no peito de uma criança, chamada JG, que ainda mora nos recônditos de teu coração.
Busque-a e ela se fará presente. Eu ainda guardo a minha, aliás ela vem ficando mais faceira e vívida. Até no trabalho tem se manifestado, quando solto gostosas gargalhadas de peraltices ou coisas que acontecem.
Digitando, você chega e se aninha, sobe em cima de minhas costas, como gosta de fazer isso!
Finge que vai pular por sobre minha cabeça e notebook.
Eu fico sorrindo em alma.
Aí vai buscar teus bonecos de pano, que também vivem despedidas: o cachorrinho Toby; e o menininho chamado de Amiguinho.
Coloca eles na minha barriga e diz que eles ficarão comigo essa noite.
Sinto a preciosidade de tua oferta. Quase um desprendimento e fiquei honrado de você dividi-los comigo. Emociono-me com a gentileza.
Agora, com teus bonecos de pano em minha barriga, escuto você tomar banho e conversar com tua mãe. A conversa gira em torno da prova que fez hoje.
Você está feliz.
Preciso chegar mais ao teu coração e ouvi-lo falante, como tua mãe consegue.
Mas, mães são mães. Elas têm a chave dos nossos corações.
Estou buscando meu espaço, sem te sufocar ou encher de paparicos que só te farão mal.
Como é doce ouvi-lo contar tuas aventuras. Você é um menino maluquinho, sempre arteiro procurando algo pra fazer.
Ontem ficou sem TV, pois resolver decorar teu escritório com lápis hidrocor, tua mãe ficou uma fera.
Um outro pequeno ritual são os pastéis que compro para quando te pego na escola.
Você já chega perguntando: tem pastel?
Ou diz: "Me dá o celular para eu brincar".
Ao que lhe respondo que está sem bateria. E você emenda um: "de novo".
Volto aos pasteis e te entrego, inventando um monte de países para dizer a procedência deles.
E, você embarca na brincadeira.
"Este pastel da China está melhor do que o dos Estados Unidos da América, de ontem".
É um de meus jeitos de brincar contigo. Acho que brinco pouco.
E, sempre que almoço procuro guardar dois pasteis. Geralmente tem em self-services.
Um dia tudo isso cessará. Viverei contigo outras emoções.
Mas, essas das primeiras conquistas coisas tão simples como se limpar sozinho com lenço umedecido vão passar.
Como quem lendo meus pensamentos tu chega do banho todo cheiroso e pijamado. Agora terá mais 10 minutos, antes que tua mãe irrompa do quarto e soe a sineta para ir dormir.o chamado ao sono cotidiano.
E, você mais uma vez protestará.
Curtindo os 10 minutos finais, você pega seu amiguinho de pano e o fita. Olho pelo rabo dos olhos, e vejo você como quem despedindo-se dele também.
Tentando reconhecer nele os três anos nos quais ficaram tão amigos. Ele, você e o Toby, e o caozinho de pelúcia.
Onde andarão meus amiguinhos e os Tobys que me estruturaram como pessoa, desde minha infância?
Onde andará meu baú de recordações com cheiros, gostos, cores das coisas que vivi tempos atrás.
Fui perdendo. Cartas, momentos ímpares que vivi, bilhetes, pequenas lembranças e apegos que muito me falaram um dia.
Vou guardar teus bonecos de pano, tenha certeza.
Aliás, guardo tua primeira mamadeira de 5 cc, e um monte de peques coisas que quando as vejo te sinto com cheiro de bebê.
Chove mansamente. Estrelas valentes lutam contra nuvens perdidas das correntes de ventos.
Sinto a paz vindo de teu quarto.
Elevo meu coração ao apartamento de meus três outros filhos. Todos casados e morando em Brasília.
Será que dormem bem?
O que aconteceu com eles hoje de bom, belo e virtuoso?
Como estão se virando para crescerem no mercado de trabalho?
Terão chegado bem em casa, após a tempestade que caiu?
Ainda estão mantendo a chama do amor acesa?
Calo meu coração com tantas perguntas. Sinto a presença deles e sei que estão bem, se não estivessem procurariam o pai, como tantas vezes fazem e juntos atravessamos os vales de lágrimas.
Você me tira dos devaneios, solta um pum e corre. Sorrindo diz:: "Mas papai!!!"
Eu, fico dando replay na cena, várias vezes, como que a guardá-la nas retinas do coração. Deliciando-me contigo
Sei que perdi muitas coisas, passado atrás. Instantes mágicos, cenas estonteantes com meus filhos Tiago (29), Priscila (27) e Rodrigo (25) .
Não posso voltar o tempo, mas posso destilar a culpa refazendo minhas trajetórias e revisitando meu papel de pai agora com eles adultos e pouco dependentes.
Sem frescuras, ou cobranças bobas.
Apenas curtindo vê-los ainda em crescimento, não mais competindo em altura com a TV, e sim lutando a cada dia para conquistar seus espaços na vida a dois.
Cada um em um CEP para chamar de seu. Vivendo outros medos, desejos, sofreres e alegrias. Mas, sem perderem-se de seus pais.
Tudo passará: brinquedos de pano, peraltices de infância, pequenos rituais.
Só o que ficará é o amor doado gratuitamente, sem esperar receber nada em troca. Doado como quem não saberia fazer outra coisa.
Doado por pais e mães que descobriram na vocação de servir aos filhos, de amá-lo, um de seus sentidos da vida.
JG, quero que leia essa carta ao gerar uma criança. Aprende com teu pai a educar para a liberdade, autonomia e treine o meu neto para perceber e estar atento as coisas boas de sua vida.
Não deixe ele ficar procurando razões para ser infeliz. Se procurar acha,.
Talvez eu não veja esse dia portanto, digo-lhe para deixar teu filho livre, na melhor prisão e limite que existe, a do amor.

Em tempo: também te deixo brincar de polícia e ladrão, pegando tudo que ver pela frente como arma de brinquedo: controle remoto, pedra, pau e cabo de vassouras. Não. Você não ficará uma criança violenta com esta fantasia. É só o brincar. E, rompi com o politicamente correto. Atiro o pau no gato. e conto estórias de bruxas más. E, amanhã vou fazer uma arma de galho de seriguela e correr atrás de tu. Ahh se vou!

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