Águas Encantadas

Das águas do Rio Corumbá saiam nevoas esfumaçadas dos restos de neblina de uma manhã vindoura que se descortinava.

Aos poucos, o coro dos pássaros acordava e anunciava um novo dia. Um cantando dali, outro daqui, alguns voando em revoadas sonoras, em formação em busca de seu café matinal de insetos orvalhados.

O rio cantava sua melodia da vida. Um som que acalma o mais turvo dos corações. Um som que nos remete ao som placentário, relaxante universal dos mamíferos.

De suas notas molhadas, saiam acordes harmoniosos com águas meninas tocando clarinetes de amanhecer.

Águas brincalhonas correndo por entre caminhos entre rochas, ou esvaindo-se em caudais e borbulhantes fluxos.

Libélulas teimavam em se equilibrar nos frágeis galhos de caniços, frágeis e delicados como suas asas.

Numa flor campeira espreguiçava-se uma bonita borboleta laranja. Ela também abria a boca, como quem afasta o sono e desperta para a labuta de polinizar esperanças.

Do alto de uma pedra, projetava-se sobre o infinito trepadeira benfazeja, com nunca por mim vista uma flor vermelha e preta.

A orquestra do rio acordava a vida, que teimava em dormir mais um pouco ouvindo-lhe encantada.

Deitado entre as pedras, sinto a massagem da água lavar todo o meu ser. Tudo é paz, tudo é Graça, tudo é encanto.
Brinco com as correntes e deixo-me molhar por inteiro. Não sinto frio. As águas me acobertam em sua candura e a mim se entregam amorosas.
Raios de sol subversivos conseguem atravessar a neblina e dão um toque encantado ao local. A luz que debuta no início da manhã enfeitiça o lugar com seu dom de parir.
Escuto flores conversando sobre a noite anterior, suas aventuras e fantasias.
Escuto uns sons de gente chegando ao local. Não estou mais só nessa catedral da natureza.

Chega ao local uma família. O casal olha para minha direção, como quem diz: também quero ir pra aí, mas aparentam temor. Os seus dois filhos dispersam-se a juntar pedrinhas na margem do rio, tirando-as por um momento de seus destinos de rolar para bandas de lá.
Tomados por súbita coragem, seus pais começam a saga para chegarem no centro do rio, para banharem-se nas correntes que passavam entre as pedras, tal qual eu fazia.
Um vai ajudando o outro a passar por cima de lajes de pedras, mais lisas que sabão.
De longe, oriento-lhes para melhores caminhos, menos arriscados de um tombo, alertando-lhes para escolher pisar nas pedras mais escuras e ásperas, evitando as muito claras e mais lisas.
Deixo-lhes na sua intimidade de casal e sigo rio acima, escolhendo um outro local de assombramento.
Contemplo um mergulhão num voo rasante em busca de uma piaba desprevenida.
Sinto a água do rio renovar esperanças, passando pelas minhas entranhas e purificando-me. Ergo uma prece de gratidão pela minha vida e tudo e todos que dela fazem parte.

Rejuvenescido, desço o rio para chegar ao local de onde saí e parti.
Ao erguer a vista contemplo uma cena idílica.
Vejo ao longe um casal, aquele mesmo de linhas atrás, sentado sobre uma pedra, no centro do rio, contemplando o horizonte.

Parei por um bom tempo para eternizar, nas retinas de meu coração, tamanha ternura que presenciava.
Parece que até o rio cantava mais bonito, diante da cena idílica de amor.
Acho que valeu a pena o esforço que tiveram, com seus corpos não mais de 30, para chegarem até o centro do rio, atravessando pedras ensaboadas, correntes mais serelepes e, até tendo que em alguns lugares andarem agachados ou arrastarem-se de bundas para não caírem.
Valeu o esforço. Agora, estavam juntos contemplando o verde da mata que acolhia o caudaloso rio, observando suas águas cantarolantes, e cultivando intimidades em momentos de um eu para um tu. Sem nada atrapalhando a conexão de almas, em cima daquela pedra, mirando o infinito do amor.

Parar tudo e experenciar esse tempo de Kairós – como fez aquele casal, exercitando entre si um tempo de recolhimento, de contemplação, de silêncio, paz, calma e de diálogo carinhoso, entre seres que se amam, é fundamental para o germinar de intimidades, de companheirismo.

Intimidade e companheirismo, face à face, mão à mão, bem raros nesses tempos de agitação, conexões tecnológicas coletivos-solitárias, pressa e agressividade comuns aos ditos tempos pós-modernos.

Voltei de onde saí rejuvenescido e renovado com a beleza das primeiras horas de uma manhã, num um dia qualquer que vivi. E as cenas vividas ficavam enganchadas em meus pensamentos, tecendo em minha alma novelos de emoções, inspirando-me a botá-los para fora e compartilhá-los com vocês.

Olho mais uma vez para o casal, antes de sair daquele reino encantado.

Vejo que agora eles estão mirando um ao outro, no mais belo poema do amor: o do olhar que abraça, admira e reconhece o outro como estruturante de sua identidade.

Tomado por uma licença poética, quanto à privacidade deles, não resisti e lhes cliquei.  Afinal, era beleza demais para não ser compartilhada. Precisava eternizar aqueles momentos que numa madrugada insone evocavam meus pensamentos, agora, após libertá-los, posso dormir.

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