Muito dos valores de uma sociedade se refletem no seu comportamento
numa fila.
Recentemente, observei pelo menos três deles. Tomando um café, bem
próximo de um dos portões de embarque, pude contemplar de forma privilegiada
parte da miséria humana que se revela numa fila. Naquela sala de embarque havia quatro filas.
Os sem bagagem de mão, os com bagagem, os com assentos das filas de 1 a 5, e os
Preferenciais.
Observei os que entravam na menor das filas, aquela destinada a quem
tinha comprado bilhetes para o setor vip daquela empresa de aviação (as de 1 a
5).
São poltronas nas quais qual podemos apanhar algo que caiu à nossa frente,
ao nos curvar para tal. Nas outras não
dá, pois que nelas viramos sardinhas, e sardinhas não se curvam.
Muitos entravam naquela fila dando uma de espertos, já que não estavam
nas poltronas das fileiras de 1 a 5, e quando passavam pela conferente, olhavam
pra nós – os que estávamos na imensa fila dos sem-bagagens, com olhos vitória.
Um ou outro era barrado, pela outra conferente mais exigente, e voltava
vociferando coisas, e olhando para nós com raiva. Como se os que na fila certa
estavam, fossem seus inimigos, já que ele teria que ir lá para o fundo da fila.
O segundo comportamento, era o dos que insistiam em ficar com suas
bagagens, na fila dos Sem Bagagem, já que era a terceira menor. Eles davam uma
do famoso: “se colou, colou”, e ficavam ali, desconsiderando os avisos sonoros
de despacharem antecipadamente suas bagagens, ou para se colocarem nas filas
devidas.
Então, muitos acabavam passando pela triagem do embarque, mesmo estando
fora de conformidade. O que irritava aqueles que estavam certos e aguardavam
sua vez. E, assim como no exemplo anterior, eles saiam com um sorriso maroto no
rosto, daquele de quem se acha superior aos outro, e de quem quer levar
vantagem em tudo, independente dos meios que se utilize.
Mas, é o terceiro comportamento o que me causou muita estranheza. Os
acima me causaram revolta e preocupações éticas.
Ele ocorreu na fila preferencial. Ali têm pessoas enfrentando doenças
crônicas, pessoas com mobilidade reduzida, dificuldades visuais, gestantes,
pessoas com autismo, têm crianças de colo, e seus responsáveis, e têm aqueles
com mais de 80 anos.
Eis que chega bem próximo da ponta da fila Preferencial, um senhor de
cabelos bem branquinhos, aparentando ser da geração dos idosos saradões.
Aí faz uma avaliação do tamanho da fila Preferencial e segue decidido
para o início dela.
De porte altivo, todo empinado, durinho, bem vestido com roupa de roupa
de quem cultua o corpo, ele se esgueira na frente, empurrado uma mãe com uma
criança.
Aí o resto da fila protesta, e ele diz que é prioritário por lei, e que
tem 80 anos.
Os protestos continuam, já que não existe a fila dos prioritários dos
prioritários.
E, se acaso existisse, ela deveria ser dos doentes.
Todos vão se calando, ficando resignados, e o embarque começa.
E aquele ancião segue todo confiante pelo corredor adentro. Certo de
que fez cumprir seu “direito”, ao dar uma carteirada de RG. Imagino-lhe
chegando em casa e contando isto, todo orgulhoso, aos filhos e netos. Tadinho
dele. Pois que está totalmente errado.
E não sabe o contra-exemplo que estará dando ao seu clã.
Não!
Mas, não acho que ele ficou assim por ser idoso. Acho que ele é o mesmo
que um dia tentou entrar na fila dos Vips, ou que com mala de rodinha ficou na
fila dos sem bagagem, e sem querer despachá-la antes, por mais que a moça
anunciasse este benefício para agilizar o embarque.
Precisamos cuidar da nossa cuidar da salubridade social, comportamental
e emocional de nossa jornada por esta vida. Caso contrário, ficaremos
emocionalmente insustentáveis.
Pessoas que degradam o ambiente com a presença delas.
Outro dia li um artigo sobre os malefícios que um coração rabugento,
cheio de murmuração e mágoas encardidas causam vários problemas ao sistema
cardio-vascular.
E estes estados de humor na sua versão críticas são gatilhos pra o
Desamparo Apendido, e este para a depressão.
Pesquisadores identificaram que os riscos de adoecimento do sistema
cardio-vascular-respiratório são superiores ao tabagismo.
Será que também existe um risco para quem convive com esta pessoa de
forma intensa e permanente, tal qual o risco dos fumantes passivos?
Creio que sim.
Quero envelhecer tendo muito cuidado para não me tornar um chato, um
arrogante sabe-tudo, uma daquelas pessoas cheias de conselhos, na ponta da
língua, e que se acham no direito de se meterem na vida de todo mundo.
Quero não!
Quero manter a cabeça boa, sem usar os anos de vida como carteirada pra
ninguém. Nem pra furar a fila, nem pra bancar o sábio, desqualificando as
vivências dos mais jovens.
Quero ser um velho cheio do sabor da juventude.
De bem com a vida, sem ficar empunhando minha verdade pra ninguém.
Quero continuar a desenvolver uma visão poética da vida e do viver.
Mesmo que possam me ter como tolo.
Quero continuar a acreditar na força do amor, na bondade, na
solidariedade, nas coisas que nos elevam a alma, como aquelas que a cultura nos
traz.
Quero continuar acreditando em coisas simples como o valor do aconchego
da família, como a capacidade de sair de situações difíceis, como a
revolucionária crença de que o amanhã poderá ser melhor.
Não quero ser nem ácido, nem azedo. Quero ser gente boa, tal qual uma
compota de doces.
Uma pergunta que não quer calar é de que vale queimar todo que é gordura,
malhar muito todos os dias, ficar saradão, se não fizer isto também no cérebro.
Se não cuidar da qualidade das emoções, dos pensamentos e dos comportamentos
para consigo mesmo e para com os outros.
Que meus grisalhos cabelos não me afastem deste propósito, seja pelo
acúmulo de notícias não legais, que observamos na rotina dos dias, e que turvam
a lucidez de nosso ser.
Seja pela indiferença ao que se tem, e aonde já se chegou, fruto do
costume de viver, que amansa e dopa a visão sobre nós mesmos, sobre os outros e
acerca da realidade, contaminando-nos com o mais letal dos vírus, chamado de
IAV, a Indiferença ao Assombro de Viver.
Que reflexão linda! Adorei!
ResponderExcluirObrigado pelo incentivo, amiga.
ResponderExcluirlindo paii
ResponderExcluirObrigado filho, e qual dos meus 4 fez o comentário? rsrs
ExcluirParabéns pelo trabalho. Esta última reflexão muito lúcida e pertinente. Estou lendo seu livro Aposentei.... Também sou Coach e meu cliente alvo são pessoas aposentandas e aposentadas.
ResponderExcluirQue legal este teu trabalho de Coach com aposentados e aposentadas, uma área que precisa muito de orientação. Parabéns!
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