Pessoas-Kintsugi




Eu sou alguém que sempre está precisando de reparos na oficina da vida.
Muita gente foi juntando os cacos de meu viver que se espalharam ao leu: uns provocados pela saudade de lá, outros por desamores de cá, um mais ao fundo de solidão na multidão, outro, menos aparente, de um medo do futuro, medo de partir antes do JG desabrochar.
Cada um que cruzou em meu viver conserta um pouco estes cacos, une-os.
Completam-me a ponto de poder disfarçar o quanto de tecido puído e rasgado há na trama de meu ser. E, e muitos ainda me consertam, depositando ouro nas minhas imperfeições.
Tal qual a Kintsugi, técnica japonesa de colar pedaços preciosos de vasos quebrados, utilizando-se de ouro derretido. A ponto de o vaso ficar mais precioso ainda, mesmo com suas imperfeições.
Tive em meu viver pessoas-kintsugi, que quando todos viam caos no meu existir, elas foram mansamente juntando-me, pedaço a pedaço, e unindo-me novamente tornando-me algo menos disforme.
Hoje falo de algumas delas, que testemunharam momentos-ruptura em meu viver.
Falo de Dona Joaninha.
Conheci Dona Joaninha na Capela de São Sebastião, na qual fui seminarista de 1977 a 1982.
A Capela ficava na periferia de Campina Grande-PB, formada por gente pobre, simples, trabalhadores braçais e desempregados.
Naquela Capela, por quarto anos fiz minha formação prático-teológica para ser padre.
Eu era um dos quatro seminaristas-menores que chegavam na sexta-feira, e voltavam aos lares no domingo. Nossa agenda era cheia: reunião de oração, ensaio cânticos; catequese; comunhão aos doentes, celebrações nos lares, rito da palavra nos sábados à noite, grupo de jovens, etc.
Éramos quatro jovens vocacionados, só eu não virei padre. Carlinhos, Assis e Cristovam são padres ainda hoje.
Dona Joaninha tinha uns 80 anos, e nem sempre conseguia ir às Celebrações, pois era fraquinha do pulmão. Tossia muito e estava sempre “mais pra lá do que pra cá”.
Ela era minha “cliente” da comunhão aos doentes.
Chegar à sua casa, após um final de semana intenso de reuniões e pastorais, era um bálsamo.
Tinha sempre um cafezinho pronto, uma broa de milho.
Entre uma tosse e outra, ela dizia o quanto aquele momento da comunhão era especial para sua vida.
Nunca a vi reclamar de nada.
Sempre acolhedora e orante.
Um triste dia decidi que não iria mais ser padre. Tinha ingressado no curso de Eng. Civil, em 1982.
E não aguentaria o celibato.
Aproveitei o final da Semana Santa e anunciei aos colegas seminaristas e à Comunidade.
Foi um choque.
Todos correram para me abraçar, olhos marejados.
Senti, pela primeira vez, o que é o luto.
Estava muito abatido. Tinha certeza da decisão, mas sentira muito.
Aquela era uma espécie de “capela-escola” para novos padres e eu não podia continuar à frente de seus trabalhos.
No domingo de páscoa fui levar a comunhão pra dona Joaninha.
Sabia que era a despedida.
Ela abraçou-me longamente.
Até a tosse silenciou.
Em palavras entrecortadas de emoção pediu-me para continuar levando-lhe a comunhão.
Que mesmo sem querer ser padre eu era muito estimado por ela e ela queria receber semanalmente de mim a hóstia consagrada, já que sua doença a impedia de ir à Capela.
Dona Joaninha verteu litros de ouro derramado nas minhas feridas da separação, separação de amantes da mesma fé.
Por anos, ainda fui levar-lhe a comunhão, até que ela faleceu.
A visita na casa de Dona Joaninha era um bálsamo. Sempre mansa em paz, alegre e com um cafezinho a nos esperar. Ela era uma pessoa-kintsugi. Mesmo sem falar muito, sua expressão de bondade, de ternura, tornava sua casa um altar. Um fecundo poço de vida.

Outra pessoa-kintsugi foi Irmã Marie Etienne.

Ela era a Diretora de um Colégio de Freiras – o Imaculada Conceição DAMAS, nos idos de 1981. A conheci das pastorais da juventude, das quais participava. Houvera ingressado no curso de Eng. Civil e procurava um bico que custeasse os livros. Soubera que um professor de física das Damas houvera todo um derrame, e consequentemente se afastado das atividades docentes.
Tomado de coragem procurei Etienne. Acho que foi amor à primeira vista, e é por que ela tinha a fama de ser a dama-de-ferro do colégio. Sempre me dei bem com damas-de-ferro. Ela ouviu minhas inquietações e falou-me que a vaga já houvera sido preenchida.
Contudo, me propôs um desafio, que eu ensinasse religião aos jovens do 2. Grau: no Primeiro e Segundo Científico.
Ela propunha uma disciplina que levasse à reflexão fé x vida, nos moldes que as pastorais de juventude, inspiradas pela Teologia da Libertação, estavam fazendo na cidade.
Entre espantado e feliz, topei na hora. Foram lindos anos como educador naquele Colégio. Aprendi a contemplar, conjuntamente com meus alunos, o objeto do conhecimento - mesmo sem nunca ter lido à época Paulo Freire ou Rubem Alves. Era instinto. Naquelas aulas, muitas ao ar livre, discutíamos sociologia, política, filosofia, e até vez por outra religião...
Mas onde entra o Kintsugi?
Era Natal de 1984, fui pegar no dia 26 o resultado de um exame de gravidez da minha namorada. Aluna do III Científico.
Como nosso namoro era pesado, daquele tipo que só falta a “penetração formal”, e ela parou de menstruar, desconfiei que “algo” poderia ter subido nadando pela corrente de seu rio vaginal.
Lembro quando a moça me deu o exame e disse, - “Você é o pai? Parabéns!”
Minha vida quebrou-se em mil cacos.
Saí dali e entrei no Convento de Freiras das Clarissas, sentei-me no jardim da entrada e chorei copiosamente, chorei as mil lágrimas. Entre o resultado do exame, 26/12/1984 e o casamento 05/01/1985 foram dez dias.
Virei escândalo público. Não só pela ligação com o Colégio da Aluna grávida, como pela minha presença nas pastorais da juventude.
Tão logo casei, fui ao Colégio das Damas, dá baixa na carteira profissional, pedir demissão.
Morto de vergonha.
Etienne me abraçou. Consolou-me, não queria minha demissão.
Falou-me do amor de Deus. Do perdão de Deus. Estas coisas.
Eu, de tão envergonhado não olhava para ela.
E o quanto eu era importante para o Colégio.
Insisti, disse-lhe que minha autoestima religiosa estava abaixo de zero, e que não tinha a mínima moral para olhar os alunos.
Ela, visivelmente entristecida, aceitou.
Não esperava tanta compreensão.
Aquilo fluía pelo meu interior, qual ouro derretido que selava e fundia os cacos de meu vaso interior quebrado.
A dama-de-ferro revelava-se de imensa bondade, empatia, de quase um espírito maternal, eu tinha 20 anos.
Colou-me para que eu pelo menos voltasse a caminhar.
Aposto que fez reunião com a comunidade docente pedindo-lhes que preservassem meu ser.
Despediu-se de mim, não sem antes dizer que me pagaria ainda o mês de fevereiro, programando a baixa da carteira para março.
Ela foi meu Kintsugi. Ajudou-me a conviver de cabeça erguida com a vergonha de meu ato, vergonha que sentia quando entrava na Igreja do Rosário e os jovens para os quais eu era exemplo me viam, me acompanhou meses adentro, só sendo curada com a exata medida que meu filho crescia nos meus braços.
O nascer do Tiago me libertou de toda culpa, de todo pesar, de toda vergonha.
Vendo-lhe tão pequeno no meu colo, senti-me o mais forte dos Homens.
A médica que atendeu Cristina em sua gravidez de alto-risco do JG, inclusive fazendo o parto antes do tempo, com 31 semanas, Dra. Narayana, foi uma de minhas alunas de religião daquele colégio. E a esposa de meu irmão, a Patrícia Galdino, apresentado por mim a ele, idem. Coincidências? Nada. Kintsugi que flui.
Para finalizar, não poderia deixar de falar de meus pais-kintsugi, que tiveram presença marcante na mesma cena acima relatada.
Para eles aquela gravidez nas coxas também foi um choque.
Contudo, não se furtaram em correrem para me ajudarem.
Desfizeram-se de suas parcas economias das aposentadorias do Senai, e em dez dias montaram casa para seu filho.
Mas que casa, abriram seus corações e não deixaram que mais agressões chegassem até mim.
Pouparam-me e não me deixaram abater ainda mais.
Não ficaram me ofendendo com sermões sem sentido, após o leite derramado.
Eu gostava da namorada, fomos casados ainda por dez anos, mas foi toda uma vida que se precipitou, foi um amadurecimento no carbureto. Envelheci uns cem anos, em dez dias.
Meus pais durante muito tempo, mesmo nos primeiros anos de BB, davam-me ajuda financeira para cobrir os custos de uma família. Nunca me deixaram desesperar por problemas financeiros. Mesmo quando fui morar uns tempos na sua casa, por não ter dinheiro para pagar as contas regulares, eles ainda assim me diziam: vai passar, num instante vocês voltam pra casa, é só uma crise passageira.
Como foram sábios e amorosos.
Meus pais-kintsugi!
Dona Joaninha, Irmão Etienne e meus pais, eu sobrevivi!
Muito obrigado por juntarem meus cacos e os colarem com o que podiam.
Outros tantos juntaram meus cacos vida afora: Catão, Ari, Marcos Gouveia, Valzenir, Alcione, Pedro Nelson, Deraldo, João Júnior, Sergio Dantas, Gustavo, Andrea, Patrícia Galdino, Cristina Pinatti, Tiago, Rodrigo, Priscila e JG, muito obrigado por existirem!
Eu quero ser kintsugi para quem eu possa. Quero tornar alguém, mesmo que quebrado pela vida, desfeito em mil pedaços, melhor ao cruzar meu caminho.
Quero ajudar-lhe a sarar as feridas, fundido nos seus pedaços de ser que se espalham-se ao léu, qual os meus, um rio de ouro derretido que ao fundir vai colar seus pedaços interiores.
Ouro temos de sobra, é só buscarmos no interior uma palavra mansa, amiga, de estímulo, de consideração, de reconhecimento, de gratidão, de solidariedade e semeá-la no coração dos cansados e abatidos.
Palavras que poderão vir também na forma de gestos concretos, tais os que recebi de Joaninhas, Etiennes, Evandy e Denises de meu viver.
Para eles pode até ter sido pouco. Para mim, eram as tábuas que faltavam - na ponte de minha existência, para que eu pudesse continuar trilhando a minha jornada pessoal por mais uns metros, em busca de novas oportunidades que o futuro reservara para mim.

3 comentários:

  1. Adorei o texto! Os Kintsugi que surgem em nossas vidas são valorosos. Também tive a graça de ter uns vários e, quem sabe, possa retribuir a outros que precisem. Agradeço por compartilhar seu texto conosco.

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  2. Que tenhamos sempre sabedoria para reconhecer e agradecer aos "rios de ouro" que passam pelas nossas vidas! E, sabendo que fomos abençoados, que possamos também ser Kintsugi!

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