E sobre mais do que gatos vadios...


Hoje vi uma cena inusitada. Um ratinho com ração e outro com água denunciava que ali havia alguém que cuidada de um animal. Procurei a informação e descobri que era de um gato. Felizardo gato.
Um gato corporativo. Ele mora no maior complexo de tecnologia de informação da América Latina, no Ed. Sede IV do Banco do Brasil.
Deve ser um gato tecnológico, daqueles que têm fixação por mouses. rsrs
Gosto de observar o novo e o velho se imbricando. Gosto de ver as contradições no muro do oficial, o espaço do demens, no sapiens sapiens que somos.
Fico imaginando o carinho do cuidador do gato ou gata. Todos os dias observa o nível aração, a quantidade de água.
Imagino quanto os homens-das-“ordens-são-ordens” já tentarem “limpar” as tigelas do local. Expurgar aquilo que contraria a ordem reinante: “Imagine, um gato por aqui! Que absurdo!”
Como são felizes os arautos do inusitado, do fazer o não feito, do pensar o não pensado.
Os que saem do quadrado e são eles mesmos, autênticos.
De tanta padronização, de tanta overdose de “seja assim”, “compre isso”, “vista aquilo” vamos perdendo nossa identidade que nos diferencia.
Vamos nos homogeneizando e ficando todos moldes.
Um gato nessa hora se alimenta desafia nosso senso de realidade, fantasia que é. No escuro de bits e bits, no frenético pulsar de transações que processam alegrias de créditos recebidos; tristezas de dívidas que caem: “o cheque caiu na conta”, ansiedades de transferências que nunca chegam, embora prometidas; um gato ronrona pelos corredores.
Um gato que circula a nos ensinar que somos mais que máquinas. Somos seres de afeto. De cuidado. De mística e da mágica de um eterno acontecer, todos os dias, nunca igual.
Um gato que circula e agradece a água, a comida, deixada por uma pessoa que transcende a natureza das coisas.
Quem espera sua bacia de água e alimento?
Quem espera um cuidado qualquer, mesmo desafiando a natureza imanente das coisas dada pelos alienados como perenes?
De quem você cuidará, sem esperar nada em troca?
A quem fará o bem, só pelo simples fato de que é uma pessoa e que merece, como você, atenção, respeito e paciência.
Quem...?
Para quem se não encher sua bacia de água e colocar ração fará uma diferença danada?
Para quem você pode fazer a diferença, mesmo que com gestos simples, gentis, gratuitos?

Sobre todo existir pessoas recai uma hipoteca social.
É tão fácil esconder-se por trás das normas, dos processos, das vestimentas do poder fantasiadas de hierarquia e não ser.
É tão fácil se embrutecer.
É tão fácil, repetir os não que ouviu. Reproduzir a secura com qual foi tratado. Negar o reconhecimento que nunca recebeu.
É tão fácil ser chato, ruim, bruto e insensível.
É só deixar de alimentar o gato.
Romper é um convite que te faço.
Romper ao estabelecido. Romper ao previsto. Romper ao concebido.
Romper para abrir espaço ao novo que teima em querer aflorar em teu coração.
Romper.
A cadeia de mentiras; a corrente de descrença; a falsa proteção de fazer tudo como sempre foi... Romper!
Criar novos tempos. Ser gente. Manso, humilde e cooperativo.
Alimentar os gatos e gatas que só precisam de um pouco de teus dons, de tua atenção, de tua fortaleza e liderança.
Nessa noite compartilho a esperança na humanidade. Se ainda tem gente que num ambiente de trabalho alimenta um gato vadio... Imagine o quanto podemos fazer uns pelos outros.
Corta a cena.
Hoje testemunhei um gesto recíproco de perdão entre colegas de trabalho. De tão emocionante, sai um pouco da sala para tomar ar e não me emocionar na frente deles.
Mais dois cuidadores de gatos corporativos a humanidade ganhou.
Quem guarda ódio morre um pouco a cada dia. Meus colegas reviveram pela arte do diálogo. Pela arte de ouvir as razões do outro. Tentar entender seu mundo e o que lhes fizera ficar tão triste - um com o outro.
Meus colegas alimentaram o melhor gato que habita em seu interior e fizeram-se afeto, compreensão e justiça à minha frente. Que dia rico em ternura... Quantos ensinamentos. Vou encher uma panelinha de água e ração amanhã. Vou conservá-la sempre perto de mim, podendo vez por outra servir para alimentar pessoas sedentas e esfomeadas de cuidado, respeito e dignidade que possam circular por onde habito.

2 comentários:

  1. Meus olhos ficaram marejados... Aquelas derradeiras cenas pareciam de final de filmes em que o Bem vence, e os "antagonistas" selam o passado com um abraço fraternal! Obrigado pela mediação e, principalmente, pelo acolhimento... Parabéns e obrigado pelo relato.

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    1. Amei teu comentário. Quem escreve precisa do retorno para saber se tá no caminho certo. Valeu mesmo!

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