Me perdoou por me trair.



Era um sábado nublado, como nublado estava meu amigo com quem sai para conversar.
Sua expressão era triste, sem viço, sem energia.
Antes tão cheio de fé, força, pujança, agora vê-lo daquela forma, barba por fazer, cabelos desgrenhados me doía no fundo do coração.
Revelou-me que estava desencantado. Sentiu o peso de não ter sido compreendido, o peso da ingratidão, do jogo de poder.
Não conseguia mais jogar o jogo.
Ele me conta que cansou de combater, que coisas que antes eram fáceis tornam-se difíceis, e talvez, a mais difícil seja constatar que cansou – pois ele nunca antes cansara.
O mundo do trabalho, antes tão estimulante, agora gerava medo, pânico, terror em não fazer frente aos desafios.
Em sua pequena agência ele fazia tudo. Encarava metas, falta de recursos, intrigas da corte. Tudo encarava com um enorme júbilo, como que em cada desafio ele tivesse que mostrar a si mesmo que era capaz de vencê-lo.
Um dia quebrou-se por dentro. Algo parou de fazer sentido.
Olhou-se no espelho e já não se sentiu o mesmo guerreiro. O mesmo desbravador e líder de antes.
Seu grupo notara e a cobrança de viver o papel costumeiro o tornara mais impotente ainda.
Tinha vergonha do que sentia. Tinha medo de atender o telefonema e na outra linha deparar-se com mais um desafio a ser perseguido.
Sentia que não tinha mais as mesmas forças de antes.
O que lhe acontecera? Ele que sempre amara o trabalho e por ele tinha dedicado boa parte de sua vida?
Eram as perguntas cíclicas, que entre uma fungada e outra, ele me fazia.
Chorava vagarosamente, internamente o choro, eu podia sentir, era copioso.
Choro de séculos adormecidos, de noites mal dormidas, de dedicação exclusiva – agora não mais percebida como fazendo sentido.
Perguntei-lhe o que aconteceu nos últimos. Ele revelou coisas cotidianas em qualquer organização do trabalho: falta de reconhecimento, ingratidão, jogo de vaidades, exercício indevido do poder, cobranças descabidas, sapos digeridos, sapos expelidos...
Perguntei-lhe o que mudara de tempos atrás, se essas mesmas situações ele já vivenciara.
Falou-me que sim. E isso era o que mais o maltratava. Antes ele tirava de letra, sacodia a poeira, começava novamente, ou ligava o “tou nem aí”.
Agora ele me vela que ficou sentimental. Emotivo. Tudo o machuca. Ele sente-se estranho, assustado e esquecido por todos; tal qual o verso do poema do The Doors

People Are Strange

“Quando você é um estranho, rostos saem da chuva.
Quando você é um estranho, ninguém lembra seu nome...”

Naquele sábado sofri com aquele gerente de agência, com tantos anos de dedicação.
Perguntei-lhe como andava a vida pessoal e ele me revelou suas dificuldades.
Não tinha senso de humor, tinha perdido a vontade de fazer coisas para ele mesmo que antes lhe dera prazer. Vivia cansado e só queria dormir ou zapear o invisível à frente de uma TV.
Assistia a todos os programas de TV, mas não via nenhum.
Perdeu a vontade de receber amigos, de sair, de ir a festas e até de “conhecer” sua mulher.
Tinha fobia social e temia que parentes mais próximos fizessem a pergunta cruel:
“O que você tem, está me parecendo tão murcho?”
Revelou-me que seu maior medo era deprimir e não conseguir reagir, voltar a sentir a alegria de viver e de encarar os obstáculos da vida como antes fazia.
Ele temia que seus filhos e esposa cobrassem dele uma postura mais participativa no lar, mais atenciosa e que ele não encontrasse forças de desempenhar esse papel.
Na verdade, sentia-se murcho tal qual maracujá de fim de feira.
Queria respostas de mim. Queria que eu enquadrasse sua “doença” numa planilha de sintomas e causas, prescrevendo-lhe uma “solucionática” para sua problemática.
Tive uma profunda compaixão nessa hora.
Já vira esse filme antes, até comigo mesmo, e sabia o quanto seria lento o processo de cura interior do que quebrar por dentro.
Ele, por amar seu trabalho e não mais conseguir lidar com as limitações entre o sonho e a realidade, estava com a Síndrome de Burnout.
Minha velha conhecida que a mantenho com fome em meu interior.
Afinal, nunca a matei.
A domo, do verbo domar, por inanição.
Os sintomas dessa síndrome do esgotamento laboral são diferentes do estresse ou depressão.
Elas atingem a autoestima laboral, o sentido do trabalho. E, paradoxalmente, só são acometidos por ela aqueles que encontravam um enorme sentido no seu trabalho.
Seus “clientes” prediletos eram o pessoal da saúde, da educação, policiais e funcionários públicos. Hoje a Síndrome, melhor estudada que foi, não escolhe profissão.
Têm em profissionais perfeccionistas, líderes mobilizadores, altamente engajados e comprometidos com a profissão – seu público-alvo predileto.
Atinge-lhes no cerne da autoestima ao fazê-los perceber que não mais conseguirão manter a voltagem para cumprir prazos exíguos, atingir metas ousadas, mobilizar equipes apáticas e negociar com áreas difíceis.
Aos poucos vão fenecendo.
Um dia o filamento queima (burn). E queima na relação dele com tudo que está no exterior (out.), ou seja: Burnout.
Olhos vazios no pôr-do-sol do DF que iniciara seu espetáculo diário perguntou-me o que fazer.
Respirei. Respirei.
Uma palavra errada, um tom fora do prumo podia aumentar sua crise.
O que falar? Como nós psicólogos sofremos com essa questão.
Falar ou não falar. O que falar? Quem fala?
Pra que falar? Quem escuta o falado se o falado não for falado pelo próprio receptor da fala querida.
O que falar?
Saia do emprego? Isso acontece com todo mundo? Coragem você é forte?
Vai passar?
Fulano já teve isso e fez assim...?
Ou, isso já aconteceu comigo?
Procure um psiquiatra?
Procure ajuda na fé?
Faça yoga, tai-chi, alimente-se com alimentos naturais?
Faça caminhada, tire férias, passei?
O que falar?
Por que falar?
Quase lendo meus pensamentos ele pede uma cerveja para brindar o encontro de amigos.
Troca de assunto e fala de sua família, de sua casa, de seu cachorro.
Fala de nossa região na Paraíba. Da saudade e da última vez que lá foi.
Fala de seus planos para as próximas férias e da última lente de máquina fotográfica que comprou.
No fundo de sua alma escuto a pergunta: “O que faço?”
Sua razão desvia o assunto, acomoda meu silêncio numa profusão verborrágica de cenas cotidianas.
Peço outra cerveja e brindo ao mais normal dos sentimentos humanos, mais normal do que o amor ou o ódio, mais normal do que o júbilo ou a esperança, convido-lhe a brinda ao perdão.
Ele não entende.
Falo que uma possível saída, sem excluir a busca por ajuda na psiquiatria, é o seu auto-perdão.
Confuso ele para de sorver a cerva, bigode branco fustiga-me um olhar como que a me pedir explicações.
Revelo a ele como domei meu mostro interior que em 2003 acordou.
Domei perdoando-me.
Perdoando-me por me trair.
Como diz a canção do Chico Mil Perdões

“Te perdôo. Por contares minhas horas. Nas minhas demoras por aí. Te perdôo. Te perdôo porque choras. Quando eu choro de rir. Te perdôo. Por te trair.”

Traí a mim mesmo. Ao que esperava de mim. A minha própria autoimagem.
Traí e me perdoei por me trair.

Não dei conta. As situações enfrentadas deixaram sequelas, acumularam-se e foram mais fortes do que minhas forças - e trai a mim mesmo, sendo frágil.
Ajoelhei-me, prostrei-me no chão diante de tantas coisas a fazer, situações a vencer, imagem a zelar, pessoas a encantar, agradar, convencer, tolerar.
E me perdoei por me trair.
Perdoa-me, perfeição, profissionalismo, comprometimento, me perdoa por te trair.
Não consigo mais render como antes. Perdoa-me!
Perdoa-me por não ser mais o que esperam de mim, nem ao que eu espero de mim mesmo.
Cansei do papel e tiro férias por uns tempos.
O não já tenho. O zero idem. Que mais, de mais difícil, pode acontecer que olhar minha própria face desfigurada no espelho, sem formosura e graça, revelando o peso de me sentir impotente para reagir às mais corriqueiras situações?
Que mais?
Perdoei-me por ser frágil. Por não desempenhar mais meu predileto papel a contento.
Compreendi meus limites.
Aceitei-me na dor, da angústia, na incompreensão que tudo me causava.
Aceitei-me como triste, melancólico, sem vigor.
Abri meu coração para amigos, para familiares.
Contei-lhes que estava vivendo um tempo diferente, um momento novo.
Que não era nada pessoal com eles, era o meu momento de perder parte da casca e num doloroso processo de metamorfose reencontrar outros sentidos para o viver, afora o trabalho.
Pedi ajuda.
Pedi que não tomassem como pessoal minha cara amarrada, minha falta de humor, minha descrença nos tempos melhores.
Disse-lhes que estava quebrado por dentro e que o processo de reconstrução seria lento.
E que talvez, desse processo, não brotasse mais o mesmo Ricardo de antes.
Mas que seria o Ricardo possível. O Ricardo vivido, envelhecido, processado e aceito por ele mesmo como um ser em contradições.
Perdoei a mim mesmo. Revelei o que sentia aos meus amigos e familiares, pedindo-lhes para não mudarem para comigo mesmo e me aceitarem em meu período de deserto.
E, por último, aprendi a vencer um dia de cada vez.

A tolerar-me em minhas imperfeições, um dia de cada vez.

A tentar vencer mais um desafio para o qual parecia que não teria forças, um de cada vez.

A superar a fobia social, uma vez por dia.

Aprendi que nem sempre venceria. Que teria dias melhores e piores.
Aprendi a conhecer meus limites.
E a nem sempre vencer o medo e o terror de não dá conta.
Aprendi que entre uma crise de autoestima, de sentimentos de impotência e de querer desistir de tudo e hibernar numa rede, sempre haverá outro dia, que às vezes, sem razão nenhuma, acordaremos melhores.
Aprendi, por último, que a fé em Jesus é um bálsamo e porto-seguro para juntar-me á sua misericórdia paixão e sofrer com ele no caminho para o calvário.
Meu amigo congelara a cerveja no ar.
Não sabia se o que falava era absorvido.
Ele pediu para repetir o lance do perdão por me trair.
Expliquei-lhe que a maior porta de entrada do Burnout é nossa autoimagem. Nossa autoestima.
É a imagem que projetamos de nós mesmos nos outros que tememos perdê-la, e ao fazer isso, alimentamos o monstro interior do Burnout e ele cresce, invade todas as áreas de nosso ser.
Ao nos perdoar por não ser mais a imagem que construímos de nós mesmos, abrimos espaço para a reconstrução de nossa identidade, de nosso infinito particular.
Ele chorou.
Revelou que desde pequeno sempre foi o mais aplicado. Sempre foi o mais atenciosos, mais comprometido, mais envolvido.
Sempre ouviu elogios ao seu desempenho, aos seus resultados e que aquilo seria difícil e não mais ouvir.
Falei-lhe que seria um luto, um divórcio dele mesmo, mas que ele sobreviveria e encontraria outro tom, om outro jeito de ser que o explorasse menos, que o mobilizasse na busca pela excelência de outra forma.
Que se ele não se cobrasse tantas respostas, tanta valentia, tanta disposição, tantas mudanças de situações difíceis e nem sempre fáceis de mudar ele não teria adoecido, como não adoecem milhões de trabalhadores que aprendem desde cedo a diferença entre fazer do trabalho o sentido da vida e fazer da vida o sentido do trabalho.
Ele agradeceu-me e pediu a conta.
Meses depois ligou para mim. Estava alegre. Comemorava o primeiro dia que se sentia novamente em paz e feliz.
Perguntei-lhe o que aconteceu?
Ele disse-me que se traiu e que adorou. Que finalmente relaxou e que parou de se cobrar tanto e de se importar com quem não se importa, ou com coisas que não importam. Só no dia anterior e por isso ligara. Disse-lhe, então siga em frente, um dia de cada vez. Um melhores, outros piores, mas o dia de ontem mostrou-lhe que é possível.

Um comentário:

  1. Saber ouvir, saber falar - e ter a boa vontade de exercitar tais habilidades...
    Um bom interlocutor é puro bálsamo.

    Grande abraço.

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