Dê vida aos invisíveis

Ela pacientemente limpava o chão da praça de alimentação. Deveria ter uns 60 anos. Ou parecia mais velha pela vida difícil que levara. Magrinha, cabelos tingidos de branco, rugas de expressão. Uma touca na cabeça. Um uniforme azul. Um carrinho com água, esfregões, panos e produtos de limpeza. Numa mesa perto eu a observava, enquanto JG devorava um MAC, mais pelo brinquedo que ganhara, do que pelo seu sabor. Ela tinha algum dom. Algo misterioso. Era invisível. Ninguém a via. Ou dirigia-lhe a palavra. Mesmo quando esbarravam nela, quando saiam esbaforidos com suas bandeijas - aflitos e esfomeados, como animais quando perseguem suas presas, não a viam. Para eles, bateram num móvel qualquer. Pessoa-móvel.
Quem ela era? Será que já tinha comido algo naquela Praça de Alimentação?
Até que horas trabalharia, nessa lida pesada, de esfregar o chão, numa sexta à noite, num movimentado shopping? Quais seus sonhos? Será que ainda os tinha?
A vi passando o esfregão no chão ao lado da mesa na qual estavam duas vovós. Agora eram três de cabelos brancos. Duas não a viram. Achei que as vovós a cumprimentariam. Dariam um "boa-noite". E nada. Para se vingar de ser invisível, vez por outra ela fechava algum acesso com o rodo. Com a cara brava de quem se arma de esfregões e baldes, deveria dizer, por aqui ninguém passa até eu limpar. Aquilo deveria fornecer pra ela um pouco de dignidade, poder e autonomia.Na saída, olhei-a fixamente. Ela baixou a vista, com medo. Eu então lhe disse: "boa noite!" Torço para não ter sido o único dessa noite de sexta-feira 13.
A invisibilidade dos "pequenos trabalhadores" é o produto mais cruel da sociedade consumista, excludente e individualista que estamos criando.Convido-lhe a quebrar esse desencanto. Convido-lhe a ver, com olhos renovados, aquele que te serve sem tu perceber. O copeiro, a recepcionista, o vigilante, o zelador, a faxineira. Tua diarista, mensalista, qualquer que seja o humilde profissional que te serve.Pingue um colírio de vida nos teus olhos opacos pela indiferença. Veja o inaudível. Ouça o invisível. Toque o infinito. Não seja mais um sequestrador de sonhos e vontade de viver do outro. Talvez o que esse outro precise, por menor que seja na "cadeia alimentar" do poder, seja teu reconhecimento, empatia e solidariedade. Só você tem o dom de trazer-lhe ao mundo visível, à vida, pois que muitos já acostumaram-se a serem vistos como coisas. Protegem-se de olhos frios, rudes, esnobes, sendo coisa, equipamentos. E assim, vão morrendo naquilo que tem de mais precioso, a dignidade. Dê vida aos invisíveis. Ame-os!

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