Acorde, vem olhar a lua! (Crônica 500)


Madá, olha que lua linda que nessa noite faz!
Fui buscar a máquina e bater essa foto para ti, a que ilustra essa crônica.
Lembra que te fiquei devendo uma crônica?
Aliás, levei até um puxão de orelha de ti, quando daí retornei, em julho/2016, e fiz uma crônica sobre outro tema.
“Puxa, falou de tudo de Londrina e não falou de nós? ”.
Lembra? Quando li teu comentário, confesso-lhe: abri um sorriso e disse: “Minha sogra sarou, voltou a reclamar. ” rsrs
Têm uns dez dias que venho adiando essa crônica, não que faltassem motivos, mas travei – afinal essa é a 500 crônica de meu blog: o Bode com Farinha.
Quisera o bom Deus que a 500entona fosse para ti. Mas que lua, hein!
Espero que do Céu esteja contemplando-a, mais formosa ainda, com certeza.
Queria tanto que o pedido da canção: “Acorde, vem ver a lua”, fizesse-se realidade. E tu acordasse, viesse passar uns dias conosco, aqui em Brasília, e que tudo não passasse de um mal-entendido, um sonho acordado, ou uma pegadinha divina.
“Acorda, vem ver a lua que dorme na noite escura
que surge tão bela e branca derramando doçura
Clara chama silente, ardendo meu sonhar
As asas da noite que surgem, e correm o espaço profundo
Oh, doce amada, desperta
Vem dar teu calor ao luar
Quisera saber-te minha na hora serena e calma
A sombra confia ao vento, o limite da espera”.
Mas, como bem diz a canção: “a sombra confia ao vento, o limite da espera”. E o vento-Pai sabe a hora de levar, e era chegado teu dia.
Precisava ver como tu estava linda. Tuas filhas capricharam. Estava serena, toda formosa e bela, em paz, e arrodeada por mil flores, e de corações orantes.
Do jeito que gostaria de ser.
Pela manhã de hoje, ao terceiro dia, fiquei um tempo contemplando teu jardim, conversando com a Sandra, enquanto ela o molhava, com água da rua e das suas retinas.
Sandra contou-me o esforço que fez para preparar teu jardim. Contou-me até que tu falou chorando, ao vê-la jardinando pesado, que não se sentia bem vendo-a trabalhando sozinha, sem tu poder ajuda-la, de cansada e fraquinha que se sentia.
Ficou lindo o jardim, destacando mais ainda tuas palmeiras-orquídeas.
Enquanto conversávamos uma senhorinha que vinha descendo a calçada parou e chamou a Sandra pela grade do portão.
Ela disse assim: “Sou a vizinha lá da rua debaixo; outro dia enquanto tua mãe tomava sol eu fiquei conversando com ela um tempão. E ficamos amigas. Ela gostava de ouvir e de falar. Perdi uma amiga. Se precisar de algo de doméstica fale comigo, eu posso ajudar”.
Ficamos mudos. Aliás, tu sabia que aqueles moços que faziam hemodiálise contigo foram se despedir, e deram testemunho idêntico. Dizendo que tu era a distração deles, naquelas 4 horas, falando pelos cotovelos e ensinando-lhes receitas.
Hoje juntamos a família na tua casa, do jeitinho que gostava. Até seu Dito foi. Abrimos as cortinas, janelas, o Marcos deu uma de eletricista e consertou a lâmpada da garagem.
Fui comprar a chuleta do Japa, lá da esquina, aquela que tu comias com prazer.
Madá, tu já deve estar sabendo aí por cima. Dona Iasakuto, a mãe do Japa e tua amiga, faleceu 15 dias depois daquela nossa ida lá, em julho/2016. Ela foi atropelada, quando ia buscar seu marido no mesmo hospital em que tu fazia a hemo. Já pensou?
Jose, tua filha mais velha, preparou uma farofa de cenoura, divina. E aquele teu arroz, que comemos ajoelhado de tão bom. Seu Dito e eu tomamos um cálice de cerveja. Hoje ele estava precisando. Botamos para tocar “Por que Ele vive”, entre outras, almoçando ao som de músicas que nos falam de um amanhã espiritual, consolando-nos mutuamente.
Botei gás para apressar Cristina, para não perdemos o vôo, e te ouvi cochichando, como sempre fazia: “Sandra e Cristina são tudo lerda com horários, tem que começar a chamar pra sair uma hora antes”. Sorríamos de nossas confidências espirituais que só nós ouvimos.
Sim Madá, trouxe umas sementes daquele caramanchão amarelo, do cemitério de Pirajuí-SP. Se as mudas pegarem, vou fazer um pra ti.
As meninas vão caprichar na reforma do jazigo da família, coisa fina, Porcelanato Portinari, fui com elas na Leroy escolher as peças. Fique tranquila, estará tudo bacana para o dia 2/11.
Do lado de cá, o JG pesa que tu “mudou de fase, evoluiu”. Ele sabe que tu morreu, mas na inocência dele não caiu a ficha. Só quando eu o vi hoje, fazendo bagunça no tapete da sala, e ameacei chamá-la para ralhar com ele. Aí ele olhou-me tristemente, deixando transparecer a dor que sente, por um instante sequer. No corpo dele li o que queria dizer e não conseguiu: “Vovó viria era para baixo desse tapete, brincar comigo”. E iria mesmo.


Sim, deixa eu te contar. Não é que aprendi a dirigir carro automático. Eu tinha que levar as meninas no carro da Sandra, por 300 km, até Pirajuí-SP. Aprendi no tranco, dando cada freada por erro que todo mundo balançava a cabeça. Em desaprovação ao cangueiro aqui.
Finalmente o chuveiro de teu quarto funcionou sem pelar minha pele. Após o conserto que a Sandra mandou fazer, ele voltou perfeito. Você deve ter ficado orgulhosa dele, aquela raridade Lorenzetti, da década de 70. Quis roubar tua escova de costas, uma rósea, dentro do box. Queria uma coisa tua por aqui, mas pensei melhor. Não pegaria bem. Vou roubar outra coisa. Que Sandra não me leia.
Sim, buscamos a penteadeira no quarto de despejo e arrumamos teu quarto como ele sempre foi, como era antes de chagarem os equipamentos para a hemo domiciliar.
Ao levantarmos tua cômoda, vimos que estava em cima dela a importância de R$ 90,00 num envelope do Dízimo de tua igreja.
Não teve jeito, ambos choramos.
Choramos de alegria por ver aquela cena.
Eram mais que 10% de tua pouca renda.
Aquilo ali representava gratidão. Não eram noventa reais.
Era um coração agradecido, em forma de cifrões. Sandra contou-me a pouco que foi – nessa noite de domingo, levar ao culto a tua oferta.
Nunca esquecerei Madá a fala emocionada da Sandra, durante teu velório: “Eu só tenho o que agradecer. Ter passado mais de 20 de minha vida cuidando de minha mãe, foram vinte anos ganhos, e não perdidos. Ganhei 20 anos ao lado dela. Ganhei uma companheira, uma amiga, uma confidente, uma cuidadora, torcedora por minhas conquistas e fiel escudeira”.
Aprendi três coisas contigo, nesses dias de tão intensas emoções.
A primeira delas é a que independente de como nos sentimos; do quão pobres e miseráveis nos achamos; de nossas doenças; de sentimentos de mal-estar, fraqueza e até desânimo, é sempre bom ter um envelope aberto, na cômoda de nosso coração, ainda cheio de coisas dentro dele para por elas agradecer ao bom Deus. Em tudo daí graças. Aprendi a prática disso, ao ver aquele envelope no teu quarto.
A segunda coisa é o valor da disponibilidade para um dedo de prosa. Mais de 300 pessoas passaram pelo teu velório, cada uma delas – quase como um papel carbono, destacavam teu dom de ouvi-las, conversar com elas e estimulá-las a ser melhores. “Escuta, você que nesse leito faz hemodiálise por 4 horas, e por semanas percebemos que não fala com ninguém, nós aqui estamos no mesmo barco. Converse conosco, quem você é? ”
E o homem, o “introspectivo”, sorriu e abriu-se para o grupo. Trazendo até fotos da família, para mostrar a todos, nas sessões subsequentes. Sim Madá, a senhorinha que passava pela calçada só queria alguém para conversar. Na sua solidão, de “do lar”, ter alguém quando voltava das compras para saudá-la e prosear era melhor do que tarja preta.
Ela contou-nos isso com olhos marejados, o quanto para ela foi significativo aquele tempo a ela dedicado para escuta e diálogo.
A terceira coisa, e por aqui vou me despedindo, dado que a prosa deve estar boa por aí em cima e não quero atrapalhar, e que aprendi foi o valor da resiliência. Você não desistiu de viver, e em nenhum momento. Nesse vale de lágrimas, entre internações, UTIs, exames, clínicas e hemos, que fazia desde fev/2016, você nunca antecipou sua hora desistindo, ou prostrando-se de forma mórbida e letárgica. Você queria viver. E lutou por sua vida, do seu jeito, honrando e reconhecendo esse dom precioso de nosso bom Deus. Você jogou até o último minuto da prorrogação, afinal, o jogo só acaba no apito final. E você não o antecipou.
Nunca desistiu. Sempre deixava que a Sandra lhe desse banho. Lhe levasse ao médico. Deixava que lhe fizessem os procedimentos, alguns bem invasivos e doloridos. Que outra pessoa, já sentido a fraqueza que sentia, insistiria em ir visitar sua cidade natal - sujeitando-se a dois dias seguidos de hemodiálise, para que pudesse ficar 4 dias em Pirajuí-SP? Isso foi no mês passado, lembra? Quem de nós poderá agora desistir? Alegar que tudo já foi tentado e querer antecipar a hora? Quem pensa em desistir, querendo colher os tomates cereja da calçada, como tu fez?
Por fim, hoje senti muita falta do aroma do café, pelas 6 da manhã, quando eu acordava junto com o tique taque de teu relógio do criado mudo. Sandra fez. Mas, o teu é o teu.
Sim, fique tranquila pela Sandra, nós cuidaremos dela.
Hoje, o Tiago vai dormir lá. Ela nunca estará sozinha, afinal somos uma família. E, quem tem família, nunca está só!.

2 comentários:

  1. Ricardo, não tenho palavras para expressar o que senti ao ler sua crônica. Chorei. Foi um misto de saudade da mãe e felicidade ao ter certeza de quanto vc tbem a amava. Entreguei o dizimo com alegria pq este era a primeira coisa que minha mae separava mensalmente e ha cerca de oito dias aguardava para irmos juntas a casa do SEnhor devolver um pouco de tantas bencaos ja recebidas. Infelizmente ela nao teve tempo... Farei o café sempre que estiverem aqui mas nunca chegará aos pés de pretinho da mamis. E, assim que for organizar as coisas, darei a vc uma lembrança com maior prazer. O Tiago dormirà aqui e me fará companhia.Somos família e sou grata por cada um de vocês. Linda crônica cunhado.

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    1. Sandra, seu testemunho de cuidar tocou-me profundamente. Você, com sua atitude, deu um exemplo do que é o verdadeiro amor. Eu teria mil outras coisinhas pra contar. Mas, travei de emoção. Gostava muito da Madá. A gente se entendia. Ela me ouvia, me perdoava e sabia que podia falar das coisas delas comigo, que eu guardaria para sempre.

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