Capital Emocional (*)


Pense numa pessoa que passou o início da manhã murmurando e reclamando, essa pessoa sou eu.
Até ir buscar um documento no carro e ver que tinha deixado a Bíblia de Jerusalém no banco.
Lembrei-me que nessa tradução, a de Jerusalém, li recentemente um versículo que me encantou, e que só vi nessa tradução, uma das melhores da Bíblia – reconhecida por exegetas do mundo todo. 

“Fazei tudo sem murmurações nem reclamações.” (Fil 2,14)

Quando Paulo escreveu essa Carta aos Filipenses, de Filipos, Norte da Grécia, fundada pelo pai de Alexandre – o Grande. Paulo, ao escrever aquela Carta, estava preso e sofria severas provações, era o ano 48 DC.
Então, ele falava de algo que estava fazendo e vivendo. Aliás, a Carta aos Filipenses é a Carta da Esperança e Alegria.
Bíblia à parte, o que me deixara reclamão e murmurento fora dois atendimentos que tive, bem cedinho pela manhã, e que o gosto amargo deles impregnou minha alma.

Então, como um ruminante mental, fiquei murmurando e reclamando sobre o ocorrido, para todos os amigos com os quais tirava um dedo de prosa, até as 10hrs.
E só aumentava o desprazer. Parece que temos uma verdadeira atração para falar repetidamente sobre o que nos chateou, como um disco de vinil que fica arranhado.

Deixa eu te contar o que me aconteceu.

Manhã de sexta, trânsito bom, sigo caminho para levar o JG à escola.
Vejo que o carro está na reserva. Passo pelo primeiro posto, mas têm filas nas bombas. No segundo, uma beleza. Vazio.
Estaciono e peço para que o frentista complete até o automático. Logo chega o segundo carro, e estaciona nas bombas à minha frente. Naquela hora, eram dois frentistas e dois carros.
Movimento tranquilo. Aí a moça do carro da frente pede que o frentista limpe o para-brisas. Ele começa a limpar, e o outro foi ajudá-lo.
No meu carro a bomba parou, deu aquele estalo de quem chegou no automático.
E eles lá limpando os vidros da moçoila. E eu cá, esperando que eles me vissem.
Aí, fiz um gesto para o primeiro frentista, o que começou a me atender, de que meu carro estava pronto. Mas, ele meio que me desconsiderou. Continuou a “ajudar” o outro frentista a terminar o serviço do para-brisas da moça. E fui ficando puto. Buzinei.
Ele chegou e falei com ele que não gostei de “ter sido deixado para trás, no atendimento”. Ele deu de ombros, e disse que o automático tinha disparado fazia pouco tempo.
Inchei de ira. Saindo de lá, deixei o JG no Colégio e fui na Padaria Savassi, restabelecer as energias emocionais e gastronômicas. Sinto falta da Juliana, atendente de lá que está de licença maternidade. Esta padaria agora é meu cantinho das 7h30min.
A mocinha chegou e fiz meu pedido. Pão com queijo e cafezinho.
A espera estava mais longa do que o normal, para uma sexta, na qual todos têm a ideia de tomarem café no mesmo horário.
Uns 10 minutos depois, ela se aproxima e pergunta: “Qual tipo de queijo mesmo? ”
Aí, saí do sério e cancelei o pedido. Não esperaria mais 10 minutos, já que por não saber o queijo nem começara ainda, e chegaria atrasado. Sempre fui muito severo comigo mesmo em termos de pontualidade.
Então começou a descer as águas dos pensamentos negativos. Ao ficar numa posição ruminante, reclamona e murmurante sobre as qualidades do atendimento que tive.
Aquilo estava tirando o brilho da manhã.
Até que parei, respirei, li o versículo, tomei água, e comecei a mentalizar as coisas boas da vida.
Levar o JG no futebol. Lecionar. Terminar um trabalho. O feriado de quarta. O sistema de irrigação que funcionou. Levar o carro para lavar. Balu, meu cachorro, que tomou um bom banho no pet. Ufa, fui melhorando, melhorando, melhorando...

Aquilo foi ficando menor, diante de outras coisas da vida. Sem importância, já que sobre o que me ocorreu nada mais restava a fazer. A não ser trabalhar a emoção.

Quantos pensamentos negativos habitam nosso ser num minuto?

De coisas que não deram certo, de ansiedades, de aflições ou preocupações, ou de coisas que nos frustraram, em nossas expectativas superdimensionadas.

Esvaziar a mente do rio de água negativa, que desce de forma violenta, coração adentro, é um esforço bacana, na construção de uma felicidade possível, e no aqui e agora: não no futuro dos "quando", ou dos "se".

É exercício permanente. Na percepção do agora: saber como estamos, o que pensamos e as emoções derivadas desse pensar é um exercício de anatomia. Anatomia da alma.
Profundamente necessário para ir modelando nossas emoções, ao longo do dia, e não nos deixar ser tolhidos por episódios desagradáveis, que teimam em ficar martelando o dia inteiro, e alguns deles entram pela boca da noite, e até vão para cama conosco.

Saber dizer: basta! Chega de reclamação ou murmuração para aquilo que sobre o qual nada mais podemos fazer.

Compreender o tempo que aquilo irá nos acompanhar e o momento de virar a página é fundamental. No meu caso, por longas duas horas.

Perdi 120 minutos de percepção do bom, belo e virtuoso, que ia acontecendo também à minha volta, por ter ficado martelando e remoendo nas péssimas experiências de atendimento que sofrera.

Paulo está certo, em sua exortação aos Filipenses. Mais que nunca é preciso cuidar da ecologia emocional de nosso ser.
Cuidar para não levar tão a sério, e até ampliar, os pequenos dissabores que vamos tendo.
Dona Estela entra na minha sala, novamente, e me serve água. Dou um sorriso, comento que seu penteado está bonito. “Bom dia Dona Estela, que diadema bacana no seu cabelo! ”
Ela olha para mim e diz: “Oxe Ricardim, eu já entrei aqui mais cedo, servindo-lhe café, e você falou comigo”.
Peço-lhe desculpa e digo-lhe: “Eu não a vi”.
Ela não entende nada. E eu tudo!
Quando estamos afobados ficamos cegos, e perdemos a capacidade de ver a essência das coisas boas, belas e virtuosas que continuam a acontecer.
Perdemos capital emocional positivo (CEP). E vamos murchando e embrutecendo.
Simples, triste e perigoso assim.

(*) Termo que criei para definir as transações emocionais que acumulamos, frutos de nosso pensar, que alteram nossa escada das inferências, e a percepção de nós mesmos, dos outros e da realidade.

   PS.  Na foto, Dona Estela e seu diadema. 

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