Planetizando a Vida (Autor Ricardo de Faria Barros)

Naquela manhã, acordei mais nervoso do que vendo uma disputa por pênaltis, numa final de Copa do Mundo, com Brasil jogando contra Argentina.  Afinal, seria o dia de meu desligamento oficial do Banco do Brasil, após um bom tempo de trabalho. Ansioso, chequei os documentos, botei gravata pela última vez, ufa!, e parti para o local combinado, no qual seria anotado a baixa na carteira profissional.
Quando de lá saí, eu não tinha o chão nos pés. Não devemos fazer esse tipo de coisa sozinho, pensei comigo. Senti como se estivesse sem a gravidade. Um misto de leveza e estranheza me invadiam o coração.  Agora eu não era mais um satélite que orbitava um planeta chamado BB. 
É estranho, mas fundamental, em algum dia de nossas vidas deixar de ser satélite.
De qualquer coisa que nos prenda a ela.
Pergunta-me como estou, um ano após aquele dia, e respondo a todos com um enigma:

Estou me planetizando. Num processo lento, mas permanente de redescoberta de mim mesmo. 

Muitos arregalam os olhos, sem entender. Outros fingem que entendem e engatam uma outra pergunta, sobre o clima, por exemplo. desviando o assunto.

Para alguns explico, o que farei para agora para vocês. 

Existem inúmeras relações que temos ao longo da vida que nos satelizam. 

Ficamos excessivamente dependente delas. Perdemos nossa própria órbita, luz e autonomia, ao girar tudo em torno daquilo a que nos fixamos, quase com uma obsessão fatal.

Têm relações a dois, assim, do tipo Satélite.  Na qual, nossa vida só tem valor se a do outro tiver. Nosso dia só terá luz, se o dia do outro se iluminar. Nosso riso só se abrirá, se o outro também sorrir.

Aí satelizamos nosso existir, em torno de uma pessoa. E morremos um pouquinho, a cada dia, por excesso de dependência dessa pessoa. 
A pessoa perde seus próprios interesses, gostos, prazeres e sua liberdade de ser, tornando-se refém da força gravitacional que o outro exerce sobre ela.  Esse excesso de apego reduz a relação a uma relação de dependência, do tipo mórbida. E terceirizamos nosso bem-estar ao outro, sob o qual damos voltas, tal qual a Lua sobre a Terra. 


Têm relações com o mundo do trabalho assim também. A pessoa passa a girar toda a sua vida em torno da empresa, e até o clube que frequenta é vinculado a ela. Amigos, diálogos, lazer, eventos, noitadas, tudo vai acontecendo em torno do ambiente cultural e negocial daquela empresa.  Até as camisas que usa na caminhada tem a marca da empresa. E a família, ou outros interesses profissionais, culturais, sociais e espirituais vão ficando para um dia qualquer... "quando tiver tempo, ou me aposentar".
O trabalho é idolatrado e a pessoa vira um satélite em torno do planeta CNPJ.  E é como se todos participassem quase de um igreja, com seus dogmas, ritos, mitos, heróis e vilões.  Tudo gira em torno dela. O que poderia ser chamado de comprometimento, de vestir a camisa, se for feito de forma exagerada vira uma doença, que exclui outras possibilidades de sentido. E, na aposentadoria, perde-se o planeta, sob o qual orbitava, e aí já viu, né?  


Têm relações de pais com filhos do tipo Satélite, também.  Enche-se as crias de cuidado, de proteção, de zelo, tudo ao excesso. Tirando delas mesmas a possibilidade de experimentarem a vida, com tudo que vem no pacote de viver. É como se os pais quisesse viver pelos filhos, ou afastar deles todas as barreiras que a vida lhes impõe. Pais assim são crueis para o casamento de seus filhos. Quando sentem-se que perderam seus planetas, nos quais orbitavam, para outras pessoas que "roubaram o coração dos filhos". Aí passam a exigir visitas periódicas, atenção e cuidado, como se entregassem a fatura pelos "anos que lhes dediquei a vida". E fazem chantagem emocional com os filhos, na vã tentativa de mantê-los por perto, afinal toda a vida desses pais passou a ser vivida em função deles, no desempenho do papel extremado de pais. Até o namoro, de um para com o outro, foi esquecido nas gavetas do coração, visto que eles tornaram-se satélites da vida dos filhos. 

Aprendi, neste um ano a me planetizar. Não quero mais ser satélite de nada. Nem de trabalho, nem de filhos, nem de vida afetiva, nem do próprio tempo, com suas marcações de coisas a fazer.

Aprender a ter luz própria, a voar para outras paisagens, a redescobrir interesses, a aventurar pelos limites e fronteiras dos sete mares, sem medo dos dragões que foram plotados nos mapas de oceanos desconhecidos. 

Toda relação Satélite x Planeta  anula um dos dois. Ninguém quer isso. Nenhum planeta quer isso de seu Satélite, falando do ponto de vista comportamental, emocional, e não astronômico.

Pergunte a uma mulher, que tem um satélite babão ao lado dela, e louco de paixão, se ela pediu isso. Aquele dedicação doentia e excessiva, a ponto de seu amado perder-se dele mesmo, dos gostos, interesses e outras vocações, para "cultuá-la e servi-la".  Ela não pediu.  Relações boas são entre planetas, pois juntos formam uma constelação. E, ambos estão inteiros, luminosos e com órbita própria, mesmo que combinada. Para que possam oscilar pertinho, um do outro, a um abraço de distancia.

Pergunte aos filhos de pais excessivamente cuidadosos se eles querem isso. Se eles querem que os pais devotem a própria vida a eles. Esquecendo-se do papel de marido e mulher, por exemplo. Ou de tantos outros papeis que a paternidade e maternidade vividas de forma dependente exclui de sentido.  Eles não querem suas vidas invadidas pelos seus pais. E até seus casamentos. 

E por aí vai. 

Então, um ano após minha aposentadoria, e num ano no qual vivi outros desligamentos, ou acoplagens, descobri que o principal aprendizado é o de planetizar a existência.

Ninguém, nada, ou nenhuma coisa, merece que você, ou eu, passe o dia gravitando em torno dela, excluindo qualquer outra possibilidade de sentido.

Precisamos reaprender  a ser Planeta nas mais diversas relações que travamos com a vida. Ser Planeta é ousar cultivar autonomias e luz própria, mesmo que em alguns momentos gere medo do desconhecido, da ausência daquela força que nos plugava a ela e nos dava uma falsa sensação de segurança. 

Ser Planeta é perder o medo de abandonar-se no vazio de si mesmo, enfrentando seus próprios monstros, crenças e hábitos limitantes.

Ser planeta é entender que toda a força que nos prende, de forma doentia, a algo um dia cessará. E, não poderemos, na ausência dela, ficar ricocheteando na atmosfera, ou incendiando, como Satélites quando caem em Planetas.  

Então, caros amigos, aprendi que é urgente planetizar tudo em meu viver. E é o que venho fazendo nestes doze meses. Com dias melhores, dias piores. Com idas e vindas. Mas, num crescendo em busca do que gosto, sou e quero.  Às vezes da medo, o medo da liberdade de quem sempre viveu e aprendeu a comportar-se nas gaiolas que orbitam planetaas. Mas, é medo fraquim, sem sustança, embora metido a besta, e logo passa, é só continuar desafiando os limites na busca por si mesmo, reais ou imaginários. 
E isto é uma coisa que tem me mobilizado a redesenhar outros esboços de mim mesmo, que estão sempre inacabados.  Desenhos de planetas possíveis. 

Então, por que não fazer aquela tatuagem um dia querida, aprender a dançar, velejar, ou um hobbie do tipo cervejeiro, curtir abestagens e estranhices, nadificar o tempo, aprender novos conhecimentos, permitir-se novas aventuras, se levar para passear, namorar bastante, festar a vida, participar de um outros grupos sociais, conhecer novas culturas, lugares, pessoas?  Deixando de orbitar sob algo, ou alguma coisa, e criando sua própria trajetória, sem a força danosa da gravidade existencial, por melhor que seja exercida pelo outro, ou algo, em nosso viver? 

A isto chamo de planetizar a existência, tu vem comigo? 

3 comentários:

  1. Lindo texto, vem bem ao encontro das datas festivas de fim de ano e início de um Ano Novo... Que é quando fazemos um balanço de nossas vidas com possibilidades de mudanças... Muito bom!!!

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  2. Querido Ricardo, 30 anos de carreira! Não foi pouco. Foi quase uma vida! Mas quantas vidas podemos ter? É um esforço tremendo ajuntar o que nos sobra de cada vida e recomeçar a nova, com uns pedaços gastos e alguns - tão caros e raros -
    arrancados, nunca fui estrela, sei que já não sou planeta ou satélite, sou alguma coisa sem órbita, vagando à deriva no vazio, na escuridão de um luto sem fim, na confusão de um novo big-bang vsurgirão outros sistemas. Gosto dos teus textos. Grande beijo, Caro Amigo.Leila.

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    1. Gostei desse negócio do big-band, é bem por aí mesmo. valeu amiga Leila!

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