Era uma vez um povo que nas noites frias reunia-se ao redor das fogueiras, feitas com os restos de de suas vidas.
Muito ficavam horas ali, perfilados, sem murmurarem queixumes, sem falarem do tempo, sem comentarem sobre o último que partiu, ou repararem os que por ali chegavam.
Apenas se aqueciam, deixando seu ser perambular, entre as chamas brincantes que teimavam em escapar da sina de queimar junto.
Numa grande panela, um caldeirão de sopa coletiva e rala fervia. Feita com as com raras e minguadas batatas, retiradas do que restou das plantações, baús e escombros.
Então, dirigiam-se até ela, enchiam seus pratos, sorviam aquele alimento, sem se falarem, pois não mais se reconheciam como iguais.
Eles viviam naquela rotina há meses, até que numa noite algo ocorreu.
Havia uma pessoa diferente, arrodeando o fogo, logo notada por todos.
Perceberam que ela não era dali, era forasteira.
Tinha um semblante altivo, embora esquálido pela fome. E, ela fazia coisas diferentes deles. Vez por outra ela botava uma lenha no fogo, para não deixar apagar. E ia em direção à panela mexer, atitude que muitos reprovavam, em expressões faciais, já que não mais se falavam.
Ora, para que mexer uma panela de sopa, feita com dez litros de água e uma única batata?
Não havia lógica.
Na outra noite, não satisfeita em atiçar o fogo e mexer o caldeirão, Carmina começou a cantar uma velha canção, para desaprovação de muitos.
Os pensamentos deles trocavam ideia entre si, no silêncio dos porões espirituais.
- Como pode esta senhora cantar, diante de tudo que estamos passando? Pensou o mais alto do grupo.
Ao que o outro pensamento, em diálogos espirituais, endossou dizendo.
- Só pode ser maluca, é preciso que tenhamos cuidado com ela. Poderá inclusive botar algo na sopa. é bom prestar atenção nela.
Contudo, entre os presentes alguns começaram a bater o pés, no ritmo da canção. Embora timidamente. Outros assumiram a tarefa de botar a lenha no fogo. Outros ainda, começaram a revezarem-se na mexida da sopa, que até passou a lançar delicioso perfume, daqueles que atiçam e dão sabor à fome.
Uma jovem órfã se aproximou de Carmina. Ela se chamava Maria, e passou a cantar baixinho com ela.
Ao voltarem para casa, as duas iam juntas parte do caminho, até se despedirem.
Passou uma semana e a rotina era sempre a mesma, fogo sendo atiçado até tarde, caldeirão mexido, e canções sendo cantadas pela Carmina, sempre acompanhada por algumas batidas de pés no chão.
Mas, eis que Carmina não foi naquela noite.
Eles se entreolharam, perguntando com seus toscos botões o que teria ocorrido.
Não sabiam em qual casa ela morava, ou quem ela era, pois nunca se importaram em perguntar.
E se sentiram culpados por isso.
Perguntaram então à Maria, mas ela falou que quando voltavam juntas, Carmina a deixava primeiro, e seguia caminho.
Fez um silêncio, daqueles que se dá para ouvir o crepitar das chamas.
De repente, um dos presentes, timidamente, começa a entoar a canção preferida da Carmina, ao que todos o acompanharam.
Outros, logo se animaram e assumiram o atiçar do fogo, e uns outros revezavam na mexida da panela.
Eles já tinham cantado por diversas vezes, e as labaredas do fogo estavam alta, quando ao longe um vulto aparece, trazendo algo nas mãos.
Era Carmina, e trazia uma placa com a inscrição: "Casa de Maria".
Todos olharam para ela, desconcertados, sem entenderem o gesto.
Então, ela fez sinal para que o grupo a acompanhasse. Após andarem por bairros destruídos, chegaram a um resto de casa, na qual Carmina ficou na calçada a placa que fez.
Disse que a noite seria encerrada com Maria contando sobre a sua casa, seu mundo, sua família, amigos, conquistas, derrotas, medos, coragens, sonhos e desejos que ainda tinha e alguma coisa da dimensão da "estranhice" que ela gostava, colecionava, fazia.
E a noite seguiu pela madrugada adentro. Logo as pessoas foram buscar algum resto de fogueira, feita com escombros das casas destruídas, e se aqueciam enquanto sorviam a vida da Maria.
Ao raiar do dia, o mais alto do grupo, e outrora o mais resistente, disse que naquela noite gostaria de botar uma placa no que restou da casa dele, e que gostaria de contar sua história aos presentes.
E assim se sucedeu, dia à dia, pessoa à pessoa.
Ao acabarem as narrativas, Carmina propôs um mutirão para ajudar, um a um, a reconstruir o que restou de suas casas. E assim foi feito.
Existe um punhado de gente que inspira outros ao seu melhor, como Carmina Burana, cujo nome nesta ficção foi retirado de uma famosa ópera.
Existe gente que não desanima, mesmo que só possa, diante de uma situação limite, atiçar o fogo.
Ou mexer a panela. Ou ainda, cantarolar uma canção daquelas de aquecer corações cansados.
Este povo do bem, consegue devolver identidades perdidas, atiçar ânimos molengas, revitalizar práticas virtuosas esquecidas. Mesmo quando todos, tudo e a própria situação represente para eles uma barreira, quase que intransponível.
Mesmo assim, eles continuam, perseveram, e caso nada possam fazer de mais significativo, ainda assim fomentam o espaço da fala aos aflitos, para que estes possam se reconhecer nelas, recriando identidades, reinicializando-se em aberturas às novas possibilidades, nem que seja a de mexer uma panela, de uma sopa rala, ou a de não deixar um fogo apagar!
No limite, um dos bens mais preciosos que podemos conceder aos outros é o direito à fala, ao compartilhar de sua jornada, em espaços fecundos de escuta institucional de narrativas eivadas de subjetividades e valor.
Ninguém sairá igual dessa roda de conversa, sairá mais forte e esperançoso!
Obrigado pelo carinho dos reconhecimentos.
Às vezes, quando se nos faltarem os ventos, ainda poderemos ousar remar. Os remos podem ser uma vírgula: Aos que semeiam, esperança!
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