Cabeças Cortadas Colam (Autor Ricardo de Faria Barros)

Fui limpar a estante e esbarrei na escultura que trouxe de Bananeiras-PB, que representa o casal Lampião e Maria Bonita. E eles caíram no chão, ficando com suas cabeças decepadas.

Eu gosto muito de ler sobre a história desse casal:  Lampião e Maria Bonita. Lembra a história de um outro casal famoso, nas guerrilhas brasileiras, a Anita e o Garibaldi, lá pelas bandas do Rio Grande do Sul.
Lampião, do alto de sua inédita e ousada carreira para-militar no Nordeste, encontrava tempo para o amor. Levando na sua comitiva de jagunços a Maria Bonita, que com ele lutava nas várias batalhas em que se meteram.

Acho que eles são uma bela metáfora ao amor, a de lutarem juntos por uma causa.

Há alguma memória fotográfica de ambos, inclusive um vídeo deles dançando xaxado. Pois, seguia o grupo o fotógrafo sírio-brasileiro chamado de Benjamim Abraão.  Lampião ficou amigo dele ao receber o título de Capitão, das mãos de Pe. Cícero, lá no Juazeiro do Norte-CE.

Agora, aqui em casa, eles estão decapitados. Vou procurar cola boa para restaurar esse escultura, tão  querida.
Não é justo que fiquem assim, após terem vivido um amor tão bonito, digno de um belo filme de romance.

Quem não gostaria de ser chamada de Bonita?  Ele a chamava. Era sua Maria Bonita, sempre vaidosa e posando ao lado dele. Nunca atrás. Ela era completa. Não perdeu sua essência nem deixou-se intimidar-se pelo carisma e poder de seu parceiro. Ela encontrou seu caminho, e o caminho dela era cuidar, admirar, ficar perto e proteger o seu amado, lutando na mesma causa que ele. Passando os mesmos apertos, comendo quando tinha comida, dormindo sob o céu estrelado e se expondo a toda sorte de riscos. Ela nunca quis ficar numa das várias fazendas que o acolhiam e lhe davam guarita.

Nunca.

Maria Bonita não era de ficar olhando seu amor ao longe. Ela construía seu amor,  e sempre ao lado dele. Lampião sabia que tinha que ter tempo para cultivar o amor, e fazia periódicas festinhas para o bando, no pretexto de dançar com ela e de dar-lhe um pouco de lazer, naquela vida tão incerta e sofrida que passavam. Ele a paparicava com adereços para sua "armadura" de cangaço, e juntos contemplavam o mesmo amanhã.

A vida a dois tem momentos em que o casal se sente decepado.  Que algo de violento ocorreu entre eles, e que os tirou do prumo.

Mas, se houver amor, entre ambos, pela força do perdão reciproco eles restaurarão suas vidas a dois.
E, sairão mais fortes daquele choque pelo que passaram.

Tem um técnica oriental de colar porcelanas valiosas, quando se quebram, chamada de Kintsugi. Eles as soldam com ouro líquido. E aquela obra de arte fica mais preciosa ainda.

Vive-se um mito de que relacionamentos são sempre espaços de felicidade e paz. E o povo se junta esperando que a lua de mel seja uma constante. E aí, aumentam tanto a expectativa, um para com o outro, que quando a mesma não vai batendo com a realidade, eles desencantam-se mutuamente, por excesso de idealização do amor romântico e de eros.

É como o que vejo na sociedade atual, um verdadeiro culto à felicidade, como se não tivéssemos que passar por aperreios, e por momentos de baixa intensidade "felicidional", para crescer e amadurecer com aquilo.

Aí o povo se entope de tarja preta, ou drogas lícitas e ilícitas, para adormecer a angustia e os momentos de eventual tristeza.

Sim meus amigos, é importante que minha escultura passe alguns dias com a cabeça decepada.
Para poder colocar em perspectiva de quem eles eram, e o que os levou a perderem a cabeça, um com o outro, e a se machucarem mutuamente. 

As fases de esfriamento. aperto no coração e tristeza podem ser muito fecundas à renovação do amor.
Pois, se ambos decidirem avaliar o que lhes ocorre, perdoarem-se e recomeçar a vida a dois, o relacionamento ficará mais real, e menos conto de fadas, daqueles repletos de clichês postados nas redes sociais, em vidas editadas.

Ali, ninguém sofre ou passa por problemas. E terminamos por acreditar que é sempre assim. E vamos nos apegando a uma imagem distorcida, fora da realidade, do que é relacionar-se.

Mas, a decisão de colar as cabeças novamente tem que ser da dupla que se ama.

Não adianta só um querer recomeçar.  Não vai funcionar e o corte só se ampliará, dificultando a sua soldadura.

Vivemos tempos de baixa resiliência a dois, com índices altíssimos de separações antes de cinco anos de caminhada.

Creio que é pela falta de saber lidar com a realidade, e sobre ela operar, reinventando-se no cotidiano, até da própria rotina que muitas relações precocemente se esvaziam.

Essa crise de resiliência, amplificada pelas tecnologias de comunicação, faz-nos desistir facilmente de nosso sonho a dois. Para novamente idealizar uma nova relação, na qual "agora irá dar certo".

Baixa capacidade de perdão, de acolher o outro como ele é, expectativas irreais, e um mundo girando em torno de si mesmo, só querendo receber cuidado, admiração, afeto e proteção, sem nada dar em troca, acaba por degradar a vida a dois.

Aí, quando isto se estabelece na vida a dois, é como se cada um dos parceiros usasse uma foice contra o outro. Decepando-o, para matá-lo dentro de si mesmo. Uma pena.  E jogando para bem longe a cabeça do outro, para que não precise se aquebrantar para dar-lhe uma nova chance e juntos colarem-se a si mesmos.

O amor pede menos arrogância e mais humildade, para ser cultivado.
Menos certezas e mais apostas.
Menos perfeição para ser aceito, e mais aceitação para ser vivido plenamente.
Menos criação de mágoas de estimação, no canil de nosso coração, e mais depuração das toxinas emocionais, originadas dos embates relacionais.

Na escola do amor, não se pode perder a lição do perdão! Sob pena das cabeças nunca mais voltarem a ser, aquilo a que foram vocacionadas pelo Eterno, juntas!

Da arte de acolher o mal (Autor Ricardo de Faria Barros)

Era uma manhã de domingo, daquelas que o sol amanhece bonito, denunciando seu encantamento com a manhã.
Preparei-me para feirar, quando a campainha toca, e era o Adalfran, meu amigo e porteiro do prédio.
Ele queria saber se eu podia dar uma carona para ele, até um ponto de ônibus mais movimentado, pois estava “pegar” uma moto usada que comprara de um amigo.
Oxente, mais é claro, falei.
No trajeto, ele contou que entrou num bolão de dinheiro, junto a outras quatorze pessoas. E que o mês que ele pegaria a grana seria em março de 2018.
Com os R$ 5.000,00 ia procurar uma moto usada, útil para facilitar seus deslocamentos.
Ele estava radiante. Um amigo próximo, ao se acidentar pela segunda vez andando de moto, resolveu passa-la para frente, e aceitou receber os R$ 5.000,00 em março.
Ele me dizia que ela estava usada, mas ainda novinha, pois é de 2008, e está com a “documentação em ordem”.
Fiquei alegre por osmose. E é bíblico, “alegrai-vos com quem se alegra”. No caminho fui fazendo-lhe recomendações, pois já sofri um grave acidente de moto, que queimou uma de minhas sete vidas.
À tardinha ele tocou a cigarra querendo que eu fosse vê-la. E era uma belezura mesmo. Toda estilosa, uma 250 cc.

Na quarta feira seguinte, eu chegava de Brasília, tinha acabado de deixar o JG em casa, e o avistei junto à moto, preparando-se para sair nela. De longe, ele acenou para mim, e segui em sua direção.
Ele nem me deixou dar boa tarde, e foi logo dizendo: “Paraíba, olhe que fizeram nela!”
E, desolado, passou a me mostrar uns arranhões perto do tanque, e outros no assento.
Fiquei triste por osmose. E é bíblico, “entristecei com quem que entristece”.
Ele continua, e me diz, babando de raiva, que só pode ter sido coisa de um desafeto dele, que mora no nosso prédio, e que o passado o condena. Por atitudes semelhantes, de quando ele comprou um carrinho, tempos atrás, e amanheceu com um líquido corrosivo sobre a pintura, que a estragou, tendo sido esse “Sem Noção” o principal suspeito, àquela época. Ele já denunciou o desafeto por preconceito racial, fruto de uma humilhações que passou com ele, mas ficou nisso mesmo.

Pedi que ele se acalmasse, pois além de não ter provas, ele era a parte frágil dessa relação, e que subisse no meu apartamento para conversarmos.

À noitinha ele apareceu. Estava transfigurado e com um desgosto tremendo, por terem danificado a pintura de sua moto. Na perspectiva da base da pirâmide social, tudo é tão difícil de se conseguir, que compreendi perfeitamente a desolação dele. Aquilo não era apenas uma moto, era mais um pequeno degrau que subia na vida. Portanto, era a materialização de seu sonho.

Em certo momento, ele ao me escutar, disse que ia deixar para lá aquela raiva que estava sentindo, que ia relevar.
Disse-lhe que acolher a raiva é melhor. Ele me perguntou a diferença. Ao se “deixar pra lá” algo, ele teima em crescer.
Mas, ao assumirmos nossa dor, nossas emoções, e as reconhecermos, elas podem ser efetivamente melhor canalizadas.

Acolher a dor não significa concordar com o que houve. Não significa criar um mundo cor de rosa para nele habitar, alienando-se.

Significa compreender que nem tudo sai do jeito que esperamos, do jeito que queremos, ou planejamos.
Em alguma esquina da vida, alguém vai nos arranhar. Vai nos machucar.
Vai estragar parte da lataria de nosso viver.

Acolher o mal, significa deixar que ele em nós opere. Significa usar a força negativa dele, contra ele mesmo. Como nas artes maciais.

Significa entender que não temos controle sobre o outro, e que nem sempre ele compartilha de nossos valores e visão de mundo.

Quando acolhemos o mal, entendemos que ele nasce junto com o trigo, como o joio, mas que o trigo ao crescer, 100% mais alto que ele, dará frutos e sombreará o joio, eliminando sua força invasora.

Dará trigo para alimentar multidões.
Assim é com a luz da bondade e amor. Irradia, transforma, cura, renova, fortalece e anima a caminhada.
O mal não consegue fazer isso. Ele se acaba em si mesmo. Quando focamos no arranhão que em nós fizeram, deixamos de perceber o que não está arranhado e que é bênção.

Focamos na maldição e no desgosto. E esquecemos a bênção e o gosto de viver.

Era o que ocorria com ele. De tão decepcionado com a atitude que alguém fez para com ele, ele deixou de apreciar o que conquistou. A motinha bonita, mesmo arranhada, com motor bom, com documentos em ordem, e sendo sua, três meses antes do previsto. E de muita procedência, item importantíssimo para quem compra coisa usada.

Na alma arranhada dele, escorria todo o prazer da recente conquista, transformando tudo em trevas, pela força do ódio que lhe consumia.

E, se ele não intervisse naquele arranhão, agora no seu tecido emocional, aquilo lá poderia ter infecionado e virado uma gangrena. Destruindo-lhe por inteiro, como uma grave ferida emocional.

Acolher o ruim significa que na vida nem sempre as coisas sairão 100% como queremos. Mas, muitas das vezes, os 50% já dão jogo, já estaremos no lucro.

Quem garante que o tempo em que ele me relatava do arranhão, ainda de capacete e jaqueta, pois que ia sair naquele final de tarde, não foi suficiente para livrá-lo de um acidente, comuns nestes dias chuvosos por aqui?

Nossa vida é uma colcha de retalhos. Alguns deles não vemos sentido em sua forma, cor e textura. Mas, quando se juntam aos outros, tudo fica uma belezura só.
Têm coisas pelas quais passamos que são como esse tecido sem nexo, que se cola em nosso pano existencial. Depois, só muito depois, perceberemos que ele foi um marco importante em nossos viver.
Até para apreciarmos melhor, os tantos outros tecidos: de boa forma, textura e cores que em nós se afixaram, e que passaram a ser despercebidos, como se sempre estivessem ali.
Quem sobrevive aos revezes da vida, e saí deles sem aderir ao mal, torna-se melhor como pessoa.

Aprende a valorizar os 90% da área do tanque de gasolina que está com a pintura em perfeito estado, no lugar de ficar implicando com os 10% que sofreram o golpe do mal.
Aprende a focar no que lhe causa satisfação, alegria e paz na vida. E não no que nela acontece que lhe tira do sério, causando-lhe tristeza. A isso se chama acolher, deixar partir, deixar levar e desapegar de tudo que lhe faz ou lhe torna infeliz. Entendendo que no pacote da vida e do viver, alguns arranhões vão nos tornar mais fortes, caso não virem uma ferida fétida. E, se pararmos de valorizá-los eles perderão a intensidade infeciosa.

Amigos são como saborosas sobremesas. (Autor Ricardo de Faria Barros)



Era pelas 7hr da manhã, o sol debuta com todo esplendor, depois de muitos dias de tempo fechado. Tempo bom para lavar roupa e botá-la para secar, pensei. Pensamentos de dono de casa. rsrs
A campainha toca, e é o Adalfran, o porteiro do prédio, com sua visita costumeira, antes de bater o ponto, às 8hrs.
Ele chega com uma pequena garrafa de café, que diz que a mulher faz e manda para ele. Mas, como tem restrições ao café, por uns prerrengues que teve no coração, ele me presenteia com parte dela, todas as manhãs, após tomar sua única xícara permitida.
O bom mesmo é escutar suas histórias, naqueles dez minutos que passa aqui em casa. Ele conta do cavalo que cria, e que é uma de suas razões de viver, o Paul. Conta do capacete que comprou para poder dirigir com maior segurança uma moto usada que comprou há dez dias. Conta que amealhou um frango caipira e que "vai fazer pra nós". Adalfran é meu amigo.
Ele é um típico pacato cidadão brasileiro. Trabalhador, afetuoso, ético e que valoriza o que tem.
Não tem como receber a visita dele e ficar do mesmo jeito. Ele, quando chega, traz consigo uma lufada de bem-estar que me deixa bem melhor do que me encontrou.

Acho que amigos são isso em nosso viver. São lufadas de bem-aventuranças, de bem-estar.

Falo para ele que levei umas duras de uma amiga, após ter dormido pelo efeito de álcool com anti-histamínicos , deixando-a falando sozinha no zap. Quem ama cuida e dá dura, quando necessário. Então, digo-lhe que estou no purgatório, em quarentena para com ela. Ele sorri solidário e escancaradamente.

Após sua saída, acesso as mensagens antigas do whats, já que ontem resolvi ficar mais em off, “pagando pedágio”.
Numa delas, a uma amiga pergunta se eu melhorei da faringite, e diz que se preocupa comigo. Senti-me tão bem ao ler esse post.
Outro, diz assim: "Oi Amigo. Sua ausência e espírito natalino estão fazendo falta. Se precisar de algo pode contar comigo".
Lembro do que falei, em palestra recente na Procuradoria Geral do Trabalho, aqui em Brasília-DF.
Na palestra, passei três tarefas para serem cumpridas até a virada do ano.

1. Mandar para seis amigos (as) vivos (as) uma mensagem dizendo o quanto ele (a) é importante, e o quanto é grato por ele (a) existir.
2. Fazer algo de bom ao outro, como uma doação, inclusive de disponibilidade para acolher sua história de vida. Talvez seja essa a doação mais rica, nos tempos atuais: tempo para o outro.
3. Perdoar alguém, ou a si mesmo, por algo que ocorreu em 2017.

Foi tão legal a forma pela qual eles aderiram às "tarefas para casa" que vou incorporá-las às minhas falas. Eu disse que as alças de um caixão são em número de seis. e que precisamos de seis pessoas por perto, de confiança, e com quem possamos contar, para nos levar aos sete palmos de terra, e o povo sorria preocupado.
O Procurador Geral, quando tomou a palavra, cumpriu logo a primeira tarefa. Declamando para os presentes os seus seis amigos (as), começando pelo seu fiel copeiro. E foi uma cena linda e inesperada.
Sábado, na casa de meu irmão, reuniram-se amigos das antigas, de quando ele chegou aqui em Brasília, em 1994.
Esse grupo reúne-se na casa do Guga e da minha cunhada, a Patrícia, desde que por aqui chegaram, para celebrarem juntos o natal. Meu irmão e cunhada têm o dom de cultivar amizades. Na casa do mano, ninguém é estranho.
Esse ano, fui convidado novamente para participar daquele momento de confraternização, já que não pertenço oficialmente ao grupo dos históricos. Mas, fui me achegando e hoje num perco mais as festas dos “Felas”.
Contemplando ao longe, o burburinho de amizade entre eles, testemunhei o quanto de amor existe ali. E dos bons.
E que após vinte anos, ainda produzem instantes mágicos, como se fora a primeira vez, e com o mesmo vigor.
E, são justamente os instantes mágicos aquilo que nossos amigos (as) nos proporcionam. Amigos são as enzimas que catalisam os bons momentos de nosso viver.
É como se junto deles nos sentíssemos mais fortes, animados e alegres.
Todo mundo anda pensando nas metas para 2018. As minhas são simples: fazer mais amizades e ter mais tempo para fazer o que de fato gosto, ao pensar mais em mim.
Para isto vou me afiliar a grupos. Grupo de dança, de caminhada, de pedal, de contemplação, de oração, de passeios, de voluntariado, de estudos (fotografia, gastronomia)...
O quer que seja. Os grupos são lugares para cultivar boas amizades. Neles aprendemos que precisamos do outro. E que outro importa.

Corta a cena, pois Analice me pede uma ajuda, via whats, para lidar com o luto de um amigo, vítima de latrocínio.
Analice tem uma lanchonete no Detran de Campina Grande-PB. Ela foi menor-aprendiz do BB, entrando com 14 anos. Todos os colegas do setor a tinham como a mascote. Por dois anos, cuidamos da carreira daquela pirralha, que tinha a idade de meus filhos, e que já ralava tanto.
Ela está arrasada pela morte súbita dele. Floro, seu amigo, foi vítima de um latrocínio. Eles se chamavam, a ambos, de "Sobremesa".
Ela me diz que toda sexta feira, antes de ele ir para casa, passava na lanchonete, dava um abraço apertado nela e dizia que aquele abraço era tão bom como sobremesa, e que agora sim, ele poderia ir para casa feliz, para curtir um final de semana maravilhoso. 
Virou um ritual na vida dela. E a vida pede rituais. Eles tornaram-se sobremesa, um para o outro.

Mas, o abraço da semana passada foi o último que ela deu nele. No final de semana, ele foi assassinado.
Digo que ela, mesmo sofrendo, ainda é uma felizarda. Deixou partir um amigo que ama após um abraço caloroso. Não ficou com abraços pendentes, nem falta de perdão, nem falta de dizer a ele o quanto o considera. Ela me disse que sempre dizia a ele assim: "Tenha um bom final de semana, Sobremesa, e volte segunda pra me ver". Mas, numa das segundas de dezembro, ele não voltou.
Para tirar um pouco a Aninha do pesar, passamos a falar sobre o valor da amizade. E que amigos não morrem, ao deixarem em nós suas boas lembranças.
Aí, ela foi me contando das pessoas que faz da vida dela algo diferente, tanto na família, como no trabalho e vida social.
Disse-me que lidera um grupo chamado "Amigos de Pedro Serrão", a escola em que terminou o ensino médio, em 1992. E que anualmente eles vêm se reunindo. Uauuu!.
Contou de muitos funcionários do Detran que se tornaram grandes amigos: O Heleno, a Abigail, Dr. Ricardo e o Floro.  Para o Ricardo ela nutre e tem especial gratidão. Ele foi peça fundamental para encaminhar o filho dela a um tratamento especializado de saúde.

  Fala de sua ex-vizinha, a Maria Catraia, pela qual nutre uma amizade muito bonita. Aproveita e manda um texto que Catraia enviou para ela, vejam que lindo:
"Saudades linda, minha lindona. Você é minha amiga, minha irmã, tudo na minha vida. Quando passarem as festas quero ir dormir aí para conversar muito com você. Fica com Jesus minha linda, gosto da sua família. Beijus lindona, amanhã vc vai ter a surpresa do áudio ..".
Maria Catraia tem 70 anos, e durante uma fase em que eram vizinhas teve um severo processo depressivo, para o qual só contava com as visitas da Aninha. Aí, Aninha a arrastou para fazer academia com ela, e isso fez com que ficassem muito amigas, e ajudou muito a tirá-la do processo depressivo.
Alguns amigos, que se aproximam de nós na hora em que estamos mal, ficarão para o resto da vida sendo por nós reconhecidos e gratos pelo apoio que nos deram.
Falou ainda da amizade com suas funcionárias, a Vanda e a Edileuza. Que vão ganhar de PLR um dia de noiva, num salão de beleza. “Para o natal, ou ano novo, elas escolhem”.
Disse que sente saudade de sua irmã, que mora no Norte, a Dulcelene. Falou com tanto amor dela que pensei que irmãos podiam aprender a serem assim, com elas.

E, a cada fala, foi processando o luto do Floro.

Para terminar, falou da amizade com a pequena Samira. Essa é de encher os olhos de lágrimas.
Samira tem oito anos, e um dia acompanhava a mãe que tinha ido regularizar pendências no Detran. Aí, ao retornarem do guichê, passaram na calçada da lanchonete.
Samira sentiu o cheiro da cozinha da lanchonete, e pediu a mãe para ali entrar.
Com olhinhos babando e cheia de vitalidade, perguntou à Analice o que estava cheirando de tão bom. Era uma carne de sol que estava sendo refogada, e que inebriava todo mundo de prazer com seu aroma. Samira sabe das coisas.
Analice perguntou se ela queria. Ela disse que sim, e dessa forma:
"Tia, quero feijão, arroz, carne de sol, tomate e alface. Gosto muito de tomate".
A mãe acompanhava emocionada a cena, e disse que tinha gasto tudo no caixa, e que estava sem dinheiro, chamando a filha para ir embora.
Analice pediu que a menina ficasse, e que aquele pratinho de comida era um presente.
Aí Samira comeu como nunca, de estatelar os olhos. A mãe ficou impressionada, ela andava sem comer nada.
E Samira começou a puxar assunto a Aninha, até dizer-lhe assim: "Tá vendo meu cabelo, vai cair todinho, vou ficar carequinha. Tenho leucemia. Mas, mamãe vai comprar uma peruca bem bonita pra mim".
Aquela visita inesperada, e a forma como Analice acolheu aquela pessoinha tão lida, transformou o aquele lugar em templo. Hoje ainda são boas amigas, e quase todo dia a Samira posta áudio para Analice, ou arruma um jeito de convencer a mãe a ir almoçar com ela. Viraram companheiras na luta pela vida que a pequena Samira trava. Me diz que vai comprar presente de natal para a Samira, para visitá-la em casa.
Imagino quantas pessoas num já foram abençoadas pela Aninha, ao entrarem na sua lanchonete, para comerem um PF, ou tomarem um lanche, apressadas e preocupadas com as aflições da vida.

A essa altura do campeonato, Aninha parou de chorar de saudade de seu amigo, o Sobremesa, e começou a acolher a dor da perda.
Agora ela tinha outros amigos e amigas para cuidar, e não podia sucumbir à dor. E tantos outros que Deus ainda vai colocar no caminho dela, naquele Templo em que se tornou sua pequena lanchonete, chamada Manga Rosa, no Detran de Campina Grande-PB,
Este é o maior dom que amigos verdadeiros têm, uns para com os outros, o de tornarem a vida de ambos melhor, só com o relacionamento que cultivam entre si.
Amigos são necessários, esperados e saborosos como boas sobremesas. Nisso o Floro, que Deus o tenha, está certo!
E, todos temos nossas Mangas-Rosa, locais onde trabalhamos e que neles passamos boa parte do dia, no qual podemos fazer a diferença na vida das pessoas.
E, nunca deixe seu amigo falando sozinho, isto não se faz com quem cuida, admira e se preocupa contigo.

O dia em que meu dedo virou antena. (Autor Ricardo de Faria Barros)


Passei uns dias encafifado com um rádio que não pega bem aqui em casa.
E gosto muito da 97.5 - Nova Brasil, aqui em Brasília, a Nova FM, só MPB e das boas.
E comecei a fuçar no aparelho, e descobri que ele tem uma conexão para antena FM.
E, quando eu colocava o dedo nessa conexão, o som da FM era límpido e cristalino, quando tirava ficava ruim novamente.
Aí pensei comigo: "ué???"
Fiz uma busca presencial nas eletrônicas, e acabei achando a bendita da antena, e funcionou - "mar-or-meno".
Confesso-lhes que colocando meu dedo no local do receptor da antena o som fica melhor ainda.
Melhor do que essa estilosa antena de rádio FM que acho que só eu ainda procura para comprar.
Mas, gosto desse tipo de atitude minha. Temos que ter uma certa cota de esquisitice para preservar nossa saúde mental.

Tomando uma Proibida, com resto das iscas de peixes, temperadas por mim e JG, nesse domingo tão frio em Sobradinho-DF, lembrei que temos esse tipo de pessoa em nossas vidas.
Você deve querer me perguntar: "Que tipo de pessoa, Ricardim?"
Oxente, a resposta é fácil: é aquela que quando nos toca nós ficamos pegando melhor.

Tu já acordou todo embrulhado do estômago emocional e quando viu determinada pessoa ela te fez abrir um sorriso Lua Cheia? E tu melhorou das dores de humor do fígado emocional? (o nome humor vem do fígado)
Têm pessoas em nosso viver que nos ajudam a melhorar nossa recepção e sintonia, daquilo que a vida tem de melhor.
Tu tá sem esperança, desanimado. Aí chega essa pessoa e te diz: "tenha calma, continue lançando as sementinhas, algumas vingarão..."
Tu tá doente, febril, garganta ruim, rouquidão, coriza, febre alta, aí essa pessoa chega do teu lado e te diz, "bora, vamos ao hospital, não pode continuar assim, eu guio o carro e te levo".
Tu tá enfrentando um problema sério no trabalho. Aí essa pessoa chega perto de ti e diz: "Ele passará, tu passarinho..."
Aquela pessoa que tira um sorriso teu, mesmo nos dias mais sombrios.
Aquela pessoa que acredita em ti, mesmo quando tu mesmo virou um descrente.
Aquela pessoa que quando chega o sol aparece.
Sim, meus amigos leitores, são as pessoas que amamos aquelas que funcionam como nossas antenas existenciais. Elas amplificam nosso poder de existir, nos tornam potentes, nos impulsionam para além de nossos problemas de conexão.
Então, já imaginou nosso poder na vida dos outros?
Nós podemos "fazer o terra", expressão que os eletrotécnicos usaram para dizer o que ocorria com meu radio, que quando eu tocava nele o sinal da FM era perfeito, e quando tirava a mão ficava chiando novamente.
Muita gente boa em nosso viver pode nos ajudar a fazer o terra. Tenha gratidão pro elas. Diga isso pra elas. O quanto elas são importantes em teu viver. Não espere virar o ano para dizer-lhes isso.

Fazer o terra é voltar a caminhar esperançoso, em busca de dias melhores.
Fazer o terra é entender que nosso viver tem ciclos, fechamentos, tem fases, tem coisas pelas quais teremos que passar e que são frutos de nossas escolhas, ou não escolhas, mas que todas elas vão contribuir para nossa iluminação espiritual, pela forma como nos posicionamos diante das mesmas, e com elas aprendemos a ser +.
Quando Tiago, Priscila, Rodrigo e JG olham para mim, e dizem: "Pai..." Acaba sintonia ruim. Acaba rádio FM que num pega.
Um céu se descortina em meu viver, e me sinto o mais forte dos pais. Esqueço tudo, e digo: "Filho..."
E me conecto só a coisas boas para passar para eles: força, disciplina, determinação, dedicação, coragem, esperança...
Nós podemos mudar um instante na vida das pessoas.
A cada quinze dias eu mudo na vida da Lady. Ela termina de fazer a faxina no cafofo, e geralmente estou fora. Quando chego, tá tudo limpinho, cheiroso, no lugar, aí zapeio para ela: "Lady, obrigado pela dedicação ao meu ninho, ficou tudo muito bacana".
Pronto, acabei de tocar no coração dela, e ao fazer isso, ela não sairá da mesma forma, melhorará a sintonia com as coisas boas da vida.
Quem recebe um elogio verdadeiro e continua o mesmo?
Têm muitas pessoas com dificuldade de conexão com a vida, com antenas existenciais de pouco alcance, ou danificadas pelas pancadas que ela levou da vida.
Eu e você podemos ajudá-las. Podemos "fazer o terra" com elas, tocando-lhes no mais profundo da alma e coração.
Dizendo-lhes, tenha calma, eu confio em ti, continue tentando, respirando, amanhã será melhor!
E aí, uma mágica acontece. Aquela pessoa que antes estava "mofumbática", fica mais animada, disposta, e cheia de novas energias, que teu toque nela produziram. e ela se conecta a outras estações da vida, aquelas que transmitem coisas boas.
Tem muita gente que fica com coração apertado, mesmo mantendo a pose, e que perdeu parte da conexão com a vida.
E que está como meu rádio, quando sem antena, e que precisa de seu toque de esperança e otimismo na vida delas.
Pense nisso! Tu e eu podemos ser antena para o outro. Ajudando-lhe a sintonizar-se nas estações da vida, e não nas da morte!

Libertem as pipocas (Por Ricardo de Faria Barros)

A tarde do sábado era de festa na Centro Cultural da CEF, em Brasília.  Era o início da programação natalina, com mil atividades para a criançada, e até adultos, como o belíssimo grupo musical que se apresenta a cada 2 horas.
João Gabriel (8), meu quarto filho, estava ansioso para participar de tudo. E entramos numa das quilométricas filas, a do caminho suspenso e tirolesa.
A criançada ama aquilo lá, e acho que eu gostaria também, mas tem limite de idade. rsrs
Depois daquela aventura, fomos nos deliciar com o grupo musical, um sexteto que canta divinamente, e não tem como conter as lágrimas, a cada música executada, cada uma mais bela que a outra.
Perto das 17hrs, resolvemos partir. A missão seria levar o JG para comer um crepe que ele ama.
Mas, a chuva nos impediu.
Era chuva forte e com vento. E resolvemos ficar próximo da entrada, esperando que passasse.
Aí, notei uma cena que muito me entristeceu.
Todos que chegavam ao local, bem ensopados pela chuvarada, eram "vistoriados" pelos olhos inclementes do povo que ficava na recepção.
Então, entendi o objetivo daqueles olhares intimidadores (SIC!). Era o de barrar o acesso ao local comendo pipoca.
Pasmem!
Não meus amigos(as), o assoalho não era acarpetado, nem tinha um tapete felpudo. Era um piso de madeira, e dos já bem estragados. Piso de tráfego, não era de tablado. Também, não havia pipocas ofertadas no interior do local, que pudessem "concorrer" com as que vinham de fora.
Passei a observar as carinhas de decepção dos pais e das crianças, que chegando com pipocas tinham que comê-las apressadamente, todos encharcados, ou jogá-las no lixo, sob protesto da criançada.
Que regra burra e infeliz!
Naquela recepção, parte da magia do natal do local se esvanecia. E as crianças ficavam frustradas, por não entendem nossas leis, nem nossos rostos taciturnos, daqueles de poucos amigos, na missão de barrar prosaicas pipocas.
Alguns pais protestaram, ao que ouviam a célebre frase: "ordens são ordens".
Meu pequeno perguntou o porquê de não poder comer pipoca, não soube responder.

Gosto de pipoca, algodão doce e balões.
Duvido você achar isso em enterro.
Pipoca, algodão doce e balões combinam com a celebração da vida. E o que é o Natal senão isso?

A CEF gasta uma nota com o espaço e programação e alguém cria uma lei que desconhece a experiência do cliente. E determina, do alto de seu poder, qualquer que seja ele: "proibido entrar com pipocas!".  Sem dúvida, para aquelas família barradas na entrada, o que pode ficar de registro é esse desconforto, perante seus pequenos. Uma pena!

Isso foi ontem, sábado. Hoje fui para a Feira do Padre, aqui em Sobradinho-DF, e de longe ouvi o som de berimbau e pandeiro. Pensei: oba, hoje tem apresentação de capoeira.
Liguei o GPS do ouvido e parti em busca dele.s Os encontrei se preparando para começarem, no acesso direito da Feira.  Concentrados, faziam seus aquecimentos e ensaiavam.
Procurando local bom, para fazer os registros fotográficos, testemunhei mais uma cena do tipo: "ordens são ordens".
Um irado funcionário do local veio tomar satisfações com o grupo por terem tirado uma corrente, posta na rua de entrada do estacionamento. Essa corrente é colocada na madrugada, para liberar a área para os feirantes instalarem suas barracas. Após o que não faz mais sentido, não há como carros entrarem no local.
Mesmo assim, agora era uma corrente humana que fazia a roda e cantava, e que seria impossível um carro ali adentrar.
Mas, o funcionário da administração precisava mostrar que tinha poder, e exalava braveza. Não perguntou como, porque, onde ou com quem? Foi logo dizendo, "quem mandou tirar as correntes?". Isso tudo num espaço que desde a sua criação prevê apresentações culturais no seu interior. Ideia do Pe. Jonas, fundador da feira, visando  integrar a comunidade pela arte, e que tem dado certo há 30 anos.
O povo da paz, que são os amantes da capoeira, argumentava mansamente que eles foram autorizados a fazerem o show ali, e que era o único espaço disponível que não prejudicava o acesso às barracas. O homem da ordem, todo espevitado, disse então algo assim: "Se autorizaram tudo bem, mas só até o horário, passou disso virei aqui botar as correntes.".  Com as correntes não haveria área disponível para a roda da capoeira, lembro aos meus leitores.
Ou seja, o que ele fez foi usar o poder de uma ordem que tem e que não analisa as variáveis de contexto, para dizer cheio de razões: "Se atrasarem virei tirar vocês"!
Após dizer isto, saiu com peito inflado, batendo os pés no chão, como se estivesse numa missão militar.  O salvador das correntes e os barradores de pipocas são pessoas que me dão asco.
Eles podem estar com a lei ao seu favor.
Mas, continuam me dando asco.
Eles e quem fez essas leis.
E, pela minha experiência com organizações, nem sempre há essa lei. Na maioria das vezes, é o poder que sobe à cabeça e a pessoa que o detém acaba por extrapolar uma orientação, moldando-a ao seu bel-prazer. Tornando-a mais radical do que o lei que a concebera.
Esse é o risco de todas as leis.
Nunca esqueci de um idoso, que aparentemente pela primeira vez embarcava de avião, saindo de Brasília para Recife.
A moça da companhia disse que ele precisa abrir a caixa de papelão que estava despachando. Para ela ver o que continha.
Ele falou que tava bem fechadinha, com barbante. Mas, ela disse que eram ordens. E abriu a caixa.
Para desgosto dele, que resmungou que a tinha lacrado tão bem.
No dia, eu estava despachando minha bagagem ao lado dele, e fiquei pensando: e se ele botasse aquilo tudo numa daquelas bolsas enormes, daquelas que fecham com um zíper, passaria? Sim, passaria, foi o que constatei. A implicação são com caixas de papelão, daquelas que os mais humildes usam. Se as coisas estiverem dentro de malas, ninguém te aborrecerá.
Então, pipocas, correntes e caixas de papelão são a expressão de uma cultura que despreza a experiência do cliente. De normas que ou não se atualizam, ou não são sopesadas diante de mudanças no contexto em que se aplicam.
Umas 20 famílias poderiam não ter visto a programação natalina, dependendo do estresse com o qual reagissem àquela norma. Uma centena de clientes de feira livre poderiam não ter apreciado um show lindo, e de grátis, por causa de uma corrente. E um cidadão brasileiro que paga um preço bem salgado pelo transporte aéreo, poderia ter tido o desprazer de ao receber seus pertences verificar que a caixa abriu na viagem e que tudo estava fora do lugar, ou faltando.

Mas, reclamar para quem?  Ordens são ordens...

Pense nisso sempre que for criar uma regra. A tendência e que ela seja extrapolada, pelo uso indevido do poder, indo muito além do que queria regular.   Então, para cada regra que venha a criar, deixe claro as não-regras, para diminuir o risco de que as pessoas possam entender que a regra de: "É proibido a emissão de gases poluentes nesse recinto", se dê também quanto ao expirar dos pulmões, pelas narinas, ou coisa fétida similar.

Perceba o bom, o belo e virtuoso entre nós. (Autor Ricardo de Faria Barros)

Acordei cedinho, após uma madrugada de muita chuva, daquelas com raios e trovões. Uma tempestade caiu aqui em Sobradinho-DF, e aquela manhã de domingo acordou encharcada.
O nome da cidade foi originário de duas casinhas de João de Barro erguidas sobre um  cruzeiro, erguido às margens de um ribeirão. O lugar então ficou conhecido como Sobradinho do Mirante, e com a fundação do DF, na década de sessenta, passou a se chamar Sobradinho.

Mesmo com tempo úmido e chuvoso resolvi ir na Feira do Padre. O nome foi originário do Pe. Jonas, administrador de Sobradinho-DF, que em 1979 mobilizou pequenos produtores para criarem a feira livre deles, retirando-os das mãos dos atravessadores, ou grandes lojas de varejo, que geralmente determinam  o preço e exploram os pequenos produtores da agricultura familiar.

Considero as feiras livres um lugar terapêutico.  Uma pesquisa (1) do CDS e UFPE, confirma minha intuição:  40% dos frequentadores afirmam que uma das razões pelas quais visitam a feira é pela amizade que fazem com os agricultores que ali comercializam seus produtos, em rústicas instalações.

Bem, então me espreguicei e, mesmo com o tempo molhado, resolvi sair em busca de amizades. Era dia de cultivar vínculos sociais, afetivos, cordiais e de respeito mútuo.

Começo a zanzar pelos corredores curtindo aquele burburinho típico de feira livre e vendo a variedade de produtos. Numa das banquinhas num anúncio o vendedor diz que tem um motor de opala, e em bom estado, para vender. rsrs

Gosto disso. Àquela hora da manhã as bancas de pastel, tapioca, caldo e café estão apinhadas de gente. E aquele aroma de café, passado na hora, inebria a todos, como se fosse um aroma de casa da vovó, aquele cheirinho misturado ao de terra molhada faz de tudo renovação.

Vejo uma fruta estranha, rosácea, e logo puxo assunto com seu produtor, o Sr. André. Ele me diz que ela se chama Pitaya, e dá num cacto, como se fosse a flor do cacto que se transforma em fruto. Sr. André fica todo orgulhoso de meu interesse na fruta, e me diz que trouxe uma mudinhas dos cactos, e aponta para local onde as deixou. Vou lá, fotografo, volto e ele fica feliz em falar de seu roçado de Pitaya. Com suas mais de cem mudas. Ele é o único que as têm, e é frutinha metida à besta de cara, sendo vendida em Brasília de 15 a 20 reais, uma fruta apenas. Ele vende por 8, e faz 2 por 15. Pechinchei três frutas e ele deixou por R$ 20,00. Feira livre sem pechincha é supermercado. Num presta.
Quando as Pitayas estavam posando para uma foto, junto ao seu dono, um grito e um som seco de um tombo na banca ao lado.

E é uma correira só, para acudir um feirante que desmaiou. Seu corpo estava rígido, muitos faziam-lhe massagem no peito, outro abanavam o rosto, outros ainda opinavam em puxar-lhe a língua para fora. Ele não reagia.

A sua mãe, cabelinhos brancos (80), gritava pelo filho (55) para que ele acordasse. Uma rede de solidariedade se fez presente. O filho do produtor da Pitaya correu até uma viatura da polícia para acionar o SAMU. Uma outra feirante, socorria aquela mãe desesperada, dando-lhe água, abraço, palavras de esperança e cuidados. Ela dizia que ele não tinha bebido nada, que estava bonzinho e que viera dirigindo o velho carro deles, do sítio até a feira. E que aquilo nunca tinha ocorrido antes. O clima de tensão no ar era enorme. Mas, lentamente, o feirante foi recobrando a consciência, se mexendo, e abrindo os olhos. E o povo aplaudiu. Muitos choravam. Ele não estava morto. As pessoas não deixavam que ele se levantasse, visto que bateu a cabeça no chão, ao cair,e conversavam com ele para que se acalmasse, pois os médicos estavam chegando. Acho que foi uma convulsão. A sua mãe dizia pra todos que ele nunca tivera nada parecido. Para alívio de todos, as enfermeiras do Samu chegaram, fizeram os primeiros socorros, e levaram-nos: mãe e filho, ao hospital mais próximo.

Um enorme silêncio se fez, quando ele saiu na maca, acompanhando por sua mãe a segurá-lo às mãos. Quanto amor!

Por uns 20 minutos, da queda até o socorro, eu testemunhei o melhor que existe na raça Homo Sapiens. Não havia curiosos fazendo self, fotografando ou só buscando uma notícia para suas redes sociais. Todos ali estavam querendo ajudar de alguma forma. Um deles abanava com a mãos o rosto do senhor caído no chão, para que moscas não pousassem nele. Um amigo deles, um cliente, assumiu o cuidado com a banca, mesmo sem saber os preços, ele garantia a segurança dos poucos itens expostos numa tosca tábua: umas dúzias de cocadas, de todas as cores, uns 4 litros de leite em garrafas, duas pencas de bananas e um bolo. Eram os produtos da senhorinha e seu filho.

Após o Samu levá-los, e ainda em choque, fui agradecer à feirante do lado pelo que ela fez à senhorinha, dando-lhe colo e afago. Ela me disse que poderia ser a mãe dela, e que precisava apoiá-la, mesmo fechando sua barraca ao possíveis atendimentos que poderia ter, e por um bom tempo.
Nossa Senhora!, quanta doação ao outro. O cliente que assumiu a barraca perguntou ao da Pitaya se ele cuidaria das coisas da vizinha, ao que ele afirmou com um "Sim, é claro!", do tamanho do infinito, e o cliente seguiu caminho.

Saí zanzando à caça de café e tapioca, para recobrar-me do susto e de tanta emoção que vivera. Na barraca da cearense, a melhor tapioqueira do pedaço, sentei-me num banquinho e, mastigando aquela iguaria, pensei em como a vida é finita. De como somos breves demais para sermos mesquinhos em nossas jornadas.

Continuei caçando amizades e achei o Sr. Beto, produtor de castanha de Baru. Uma figura de pessoa. Sabe tudo sobre o Baru e em sua propriedade rural, em Minas, tem muitos pés. Ele vai na roça a cada quinze dias, pois é longe, e traz de la de um tudo. Ao seu lado, fiel escudeiro, o Sr. José, seu caseiro. Sr. José é um daqueles velhinhos retirados dos contos de Monteiro Lobato, tipo uma Dona Benta.

Logo fiz amizade com ele, pois o Sr. André estava muito ocupado com a fila de gente querendo as cobiçadas castanhas de Baru, boas pra tudo, segundo ele e um jornal que fez cópia e distribuia.
      
Sr. José contou-me que trabalha para ele há muitos anos, e que são amigos. Que tem sua rocinha também, ao lado da do Sr. André. E que nela preserva os bichos do cerrado. Conversa com eles e educa os sitiantes vizinhos para não o matarem. "Pois temos nossa própria comida, pra quer matar esses bichinhos de Deus, tão raros e sofridos para comê-los?".

E me mostra um artefato de madeira que usa par pescar. Disse-me que fe aquele para um cliente que vem buscá-lo. José me contou que atrás de sua casa, aqui em Sobradinho, corre um pequeno ribeirão.
E que ele todos os dias pesca uns peixinhos, embora não goste de peixe e não coma. Ele me contou que na sua casa sempre tem um peixe fresco para um pedinte necessitado. E que é comum que pessoas batam á sua porta perguntando se tem algum lambari para doar.

Uauu!!!

Então ele pegou no bolso umas sementes e me contou que fará mudas para o Sr. André. "Foi uma frutinha que um cliente me deu, que achei doce e gostosa, e que guardei as sementes para fazermos mudas e levarmos para Minas. Plantarei uma na minha roça e outra na do patrão. Meu maior gosto é fazer mudas, fiz mais de 50 de ipês, e plantei em nossas propriedades. Quando eu morrer, as pessoas vão ver os ipês e se lembrarão de mim. Eu quero deixar algo meu naquela terra. Deixarei frutas e flores... "

Disfarcei uma tossida e escondi uma lágrima vadia que teimava em cair. Pedi licença da prosa, peguei meu Baru, e segui pra comprar pastel.

Resolvi comprar dois, um para mim e outro para o José. Enquanto era preparado, uma menininha me aborda, vendendo numa caixinha uns quinze chocolates tipo Baton. Perguntei-lhe quanto era o estoque, e o arremetei. Disse-lhe que poderia ficar com a mercadoria vendida, e que agora ela fosse para casa brincar. Ela deveria ter uns 12 anos. Não fiz nada. Quem fez algo foi Sr. José, o cliente da vovozinha que acudiu a banca, o filho de Sr. André que correu na polícia, e a feirante do lado que socorreu uma mãe desesperada. Eu estava retribuindo a generosidade que testemunhara, apenas isso.

Voltei e dei o pastel ao Sr. José, e ele fez uma festa com aquilo. Fiquei pensando, há quanto tempo Sr. José não come um pastel!

Após uma hora de zanzar pela feira, voltei para barraca do acidente de cedo, para colher notícias, e a vovozinha está lá, no seu posto, assumindo as vendas.

Que força! Quem de nós voltaria às vendas após um turbilhão emocional destes?  ela voltou. Ela precisava vender aquelas cocadas, bananas e leites. Era o apurado da semana, e com o filho sob observação de 24 horas, ela poderia precisar de dinheiro.

Fiquei um pedaço conversando com ela. Na saída, deixei-lhe uma quantia para ajudar a fazer o lucro das vendas que ela não realizou. Ela não queria receber. Eu insisti, e disse-lhe que poderia ser útil ao para medicação do filho. Aí ela abriu um sorriso e disse: "aí tá certo, assim eu aceito."  Não sabe ela que eu só estava remunerando a overdose de amor que ela me deu, naquela manhã.

Saí da feira com o coração cheio de emoções positivas. E segui caminho em busca de uma loja para colocar uma película no meu celular, que insiste em cair no chão e quebrar.  No balcão da loja um bolod e chocolate e uma coca-cola. Perguntei ao Alisson, atendente prestativo, quem aniversariava. Ele falou: "vocês, nossos clientes. O refri e bolo é para vocês, pdoe servir.". Aproveitei e tomei um copod e coca-cola. Alisson avaliou os estragos do quebrado, como a perícia de um cirurgião. Perguntou-me se queria investir um pouco mais do que os R$ 10,00 e colocar uma de película de resina, de R$ 25,00, que ele iria cortá-la até ficar boa. E, por uns bons 15 minutos, ele foi moldando a película, como um artesão Depois, colocou-lhe no aparelho e eu vi que ficou excelente. Não mais precisaria trocar o visor, que custa uma fortuna. Qualquer outro atendente diria que não havia maneira, visto os estragos do vidro. Alisson não!
Ele não era qualquer um, ele faz a diferença com o seu trabalho.

Bateu vontade de tomar uma cerveja e petiscar e fui no Restaurante Diamante Negro, próximo a Igreja dos Migrantes, um lugar com comida e bebidas a preço justo e de excelente qualidade. Na chegada os garçons me saúdam, pois já nos conhecemos, e soltam um: "Paraíba, adivinha o que temos hoje?". Nem acreditei no que via, eram costelinhas de bode, um manjar.

Fiz um pratinho, peguei uma cerva gelada, e sentei-me na varanda, degustando tudo que vivera naquela manhã. E olhando feliz para meu celular renovado. Aí o cozinheiro me aborda com pedaços de pernil de carneiro, que acabara de tirar do forno. E me diz: "É para o senhor, não precisa pesar..."

Mais uma vez, aquela lagriminha rebelde insiste em se fazer presente. Voltei para casa pensando em como existem pessoas boas, safrejando no roçado da humanidade.  Nessa imensa feira livre em que vivemos, que é só se especializar em catar gente que presta que as acharemos,e  aos montes, e todas elas podem ser nossas mestras na arte da vida e do bem viver.

Escrevo nessa segunda bonita, deliciando-me com um cafezinho passado na hora, presente de pessoa amada que meu lar e vida mudar de fase: Sim, agora temos café. 

O whatsapp apita, mensagem nova, é de mamãe. Dando-me instruções para comprar uma plantinha para ela, e levá-la para Campina Grande-PB, no final do ano. "Rico, é uma bougainvíllea branca e dobrada, mande foto quando achar para eu ver se é ela mesma." rsrs

Agora vou ali, comprar uma plantinha para mamãe. Chegará um tempo em que desejarei ardentemente que uma mensagem como essa apite em meu celular novamente.


(1) O Papel Econômico e Social da Feira do Padre

O show não pode parar (Por Ricardo de Faria Barros)

Era manhã de sexta e fazia frio. No horizonte, a neblina da manhã chuvosa teimava em desafiar o sol que sobre ela se deitava. Olhei-me no espelho e os cabelos espevitados, de uma pré-careca ao centro, pediam para serem aparados. Lembrei-me que era dia da Feira da Lua, e que precisava comprar pimenta de cheiro, para uma moqueca domingueira. Embora se chame de Feira da Lua, ela abre pelas 6hrs da manhã, da sexta, e só fecha na madrugada do sábado.

Na noite da sexta, o espaço é disputado por muitas barracas de comilança e shows. Durante o dia, é um sortimento só, daqueles de encher os olhos. É peixe fresco, pescado na hora, dentro de enormes caixas de água, é honesta linguiça de porco defumada, e é todo tipo de hortifrutigranjeiro. A feira funciona ao lado do Estádio de Sobradinho-DF.
Parei no estacionamento dela, olhei-me no espelho e estava estragado, com os cabelos centrais bem rebeldes. Então, perguntei a um guardador de carro se tinha barbeiro próximo. Ele apontou para um, por trás da rodoviária, e segui para lá, "de pés" mesmo.

Cortei o pelo e voltei à caça da tal pimenta de cheiro. E eis que me deparo com uma cena de tirar o fôlego, daquelas que ao vermos não conseguimos mais fazer nada de nada, para o tempo!
Perfilados estavam uns 20 velhinhos, embaixo de um toldo, cada um deles com um instrumento musical de percussão na mão.
Pensei, vai ter show!
E teve, e daqueles de ganhar um óscar.
Eles são asilados do Lar dos Velhinhos Bezerra de Menezes, aqui de Sobradinho-DF, e era o dia da apresentação do seu grupo musical.
No meio deles circulavam voluntários, que não deixavam a música sair do ritmo, e estimulavam o mais sem jeito tocador a fazer seu próprio som, sem se preocupar se estava correto.
O importante era participar da atividade.
E que atividade!
Tirar aquelas senhorinhas e senhorinhos do asilo em que vivem, num dia tão frio, mas proporcionar-lhes aqueles momentos de tanto calor, pela inclusão cidadã e vacina contra a morte social, era algo de emocionar a mais pedra dos corações.

Pena que os clientes da feira livre estavam ocupados demais, para pararem um pouco ali e prestigiarem o espetáculo.

Cada um deles, à sua maneira, estava desafiando o destino das coisas, ao tocar seu instrumento e continuar sentindo-se ativo.

Cada um deles estava criando algo para além de suas vidas esquecidas, num canto qualquer. Agora eram artistas de rua, disputando a atenção dos clientes, com o melhor que eles tinham, a força da sua idade que desafia a vontade de parar.

Tinha o que batia o bombo, que ralhou com o monitor-voluntário: "Deixe eu fazer do meu jeito, não reclame comigo". Que lindo.
Tinha a vovozinha do pandeiro, que não parava nunca de agitá-lo, era a mais animada do grupo.
Tinha o vovozinho que precisou de uma ajuda com seu instrumento de percussão, ao que uma jovem voluntária pegou em sua mão e deu a ela a maestria de um músico profissional.
E ele agradeceu com um sorriso escancarado. Como quem dizia: "nossa, era só fazer assim!"

Acho que uma boa ideia era botar cadeiras e improvisar um tipo de palco. E trazer um monte de gente, inclusive eu, para sentir tanta vida saindo de pessoas que foram deixadas para trás naquele asilo, e que mesmo assim, nãos e deixaram ficar para trás.

Escrevo emocionado imaginando o que deve estarem comentando nessa noite, após o jantar, sobre o show que deram.
Alguns deles devem estar ensaiando para a próxima sexta. Será que tem toda sexta?
Outros, devem estar perguntando como faz para aprender determinado instrumento, como o pandeiro da vovozinha, que só ela usava.
O monitor-voluntário, o cantor e tocador de violão, deve estar com eles, comemorando o feito. E ouvindo de alguns que estava muito frio, mas que conseguiram. De fato.
Aquele grupo, de octogenários para cima, teria mil razões para não fazer o show nessa manhã. Mas, ele não se deixou abater pelo desânimo, até pela falta de quem lhes aplaudissem.
Eles estavam juntos se divertindo, e não deixando que o fantástico show da vida parasse de acontecer nas suas jornadas peregrinas.

Bem cedo, eles tomaram uma decisão, não ficariam em seus quartos esperando o dia de amanhã raiar. Eles raiariam o dia de hoje, com sua presença no mundo, levando música a um lugar que se eles ali não estivessem, ela não teria acontecido.

Após umas quatro músicas, dei pequena gratificação muito menor do que a que deles recebi, e parti em busca da pimenta dedo de moça.

Não achei, mas eu ia reclamar de que mesmo?

Cartas ao JG. Na dor, vá para a margem (Parte 2). A Disparada da Despedida (Autor Ricardo de Faria Barros)

Sabe filho, uma coisa que tenho aprendido é a ler os sinais do que a vida que me falar, nem sempre de forma tão clara.
É preciso ir juntando uma peça ali, outra acolá, é preciso estar sintonizado na frequência dos sentimentos e pensamentos mais nobres e perceber a fala da vida, sobre determinada situação que enfrenta.
A condição para essa escuta é desacelerar o ritmo, permitindo-se navegar lentamente, beirando a margem, para que a dor do momento, o luto, ou uma forte decepção não lhe turve as vistas, e faça com que você se perca de si mesmo.

Na margem, ficamos com a percepção seletiva aguçada, para nos ler, nos autoconhecer melhor, mapear o que nos ocorre e juntar evidências para tomar decisões.

Ontem foi um dia assim. Tudo começou quando dirigia para me despedir de Duquesa, e no caminho conversei com o veterinário. E ele me disse que Duquesa não poderia ser sacrificada, na manhã de ontem, pois que tua mãe decidira enterrá-la no jardim. Confesso-lhe que fiquei puto de raiva, uma vez que a minha decisão - após muito estudo e sofrimento, eu já tomara. E era para que o próprio veterinário desse fim a ao corpo dela. Então, para esclarecer melhor a situação, eu liguei para tua mãe que confirmou a informação dizendo que o jardineiro Jackson iria hoje (18.11.2017), abrir uma cova no jardim. (Evidência 1)

Então, retornei o telefonema para o veterinário, reprogramando o procedimento para a esta amanhã.
Continuei dirigindo para tua casa, com o firme propósito de me despedir da Duquesa. E o trânsito estava infernal, naquela sexta de tempestade aqui no DF, e eu levei 90 minutos de Sobradinho e até próximo à São Sebastião, onde mora.
No trajeto, tua mãe ligou dizendo que pessoas amigas do trabalho dela falaram que já existe tratamento par essa doença. Eu disse-lhe que conhecia e que o preço era exorbitante, e que não recuperaria as lesões que ela já sofrera, nos rins e fígado. (Evidência 2)

Cheguei na tua casa e marquei o lugar da cova, perto do meu pé de umbu. Desci ao pomar e passe um bom tempo acariciando Duquesa, num processo de despedida bem doloroso, mas necessário para fechamento de ciclos. Em determinado momento me distraí, ao ver o quão bonito está a Lichia, carregada de frutos, e ao olhar para o gramado novamente, só vejo o Balu, o nosso velho e gordo labrador.
Chamo por Duquesa e nada dela. Subo a escada externa, em direção ao pavimento superior, e ela também não está a garagem. Ergo a vista e a vejo na garagem da casa da frente, e de lá ela balança o rabo para mim. Chamo-lhe e ela vem correndo, toda alegre, como quem sabe que fez uma peraltice. Ralho com ela e ela volta para o pomar e canil, descendo as escadas qual foguete. Duquesa nunc fez isso. O portão fica sempre aberto. Subir para a plataforma superior é algo impensável para ela que foi condicionada a ficar sempre no pomar. Ela nunca fez aquilo. (Evidência 3). Era como se ela dissesse para mim: “ei, eu estou bem, olha como corro, sei fazer até a disparada da despedida”.

Saio de tua casa, com a cabeça a mil, visto que aquela cena fora muito forte para mim. E sigo para meu lugar predileto de esfriamento de cabeça, qualquer um dos parques do DF. Opto pelo Parque Nacional de Brasília, chamado de água mineral. Ao começar a caminhar pelas suas trilhas, olho para o céu, e um coração de amor se faz presente, olhando das nuvens para mim. (Evidência 4).

À tardinha, voltando para casa após pegá-lo na escola, Mariana, amiga de papai e filha de Ari e Sylvia, meus compadres, manda uma das tantas mensagens de apoio que papai recebeu, após publicar tua Carta, de ontem. Aí eu gravo um áudio para ela, relatando como foi a despedida, inclusive a fugida para rua da Duquesa, ao que ela me responde assim: “Poderia ser triste a história, mas o amor como você fala dela é lindo! Foi a disparada da despedida. Que ela continue feliz e lindona...” Ela usou o verbo no presente, percebe? (Evidência 5)

À noite, meu filho diz que um grupo de criadores e veterinários, ao saberem de minha história, aceitaram tratar de Duquesa e adotá-la. (Evidência 6).

Aí, entro em sites relacionados ao tema e descubro que há 3 anos chegou no Brasil o único medicamento que elimina a doença do animal, chamado de Milteforan. Descubro também que o cão infectado não transmite pela saliva, pelos ou pele, ou em mordidas, lambidas ou contato físico essa doença, o que livrará você de pegá-la (Evidência 7). Continuo a fuçar em sites de criadores, ONGS de proteção aos animais, e até em clínicas veterinárias, e vejo que a opção da eutanásia é uma questão de saúde pública, não pela doença em si, mas pelo alto custo do tratamento. Coisa que afasta a população mais pobre dessa opção, o que é uma pena. O tratamento custa algo em torno de R$ 5.000,00 considerando as duas aplicações do remédio, as colheitas e rações especiais.

Após essas sete evidências sinto que a vida está me falando algo. Saio da margem, volto ao leito do rio, e decido tratar a Duquesa. Bancar o custo e não carregar a culpa de não ter tentado. Quem ama admira, cuida e protege. E eu a amo.
Abro a janela do apartamento e sinto vindo em minha direção uma aromatizada brisa Aracati que me diz: “não temas voltar ao curso do rio de teu viver, eu segurarei em tuas mãos, pode sair de minha margem e voltar a navegar: corajoso e em paz.”.

Um sentimento bom invade meu ser. Envio mensagem para o veterinário cancelando o procedimento da eutanásia de Duquesa. Entro no Mercado Livre atrás de remédio mais barato, e sinto que estou fazendo a coisa certa, mesmo abrindo mão de uma quantia razoável, que poderia a outas coisas ser destinada. Tem nada não, o que gastarei é muito mais barato do que o peso em minha consciência.

O que quero te ensinar com isso? Na margem, quando estiver vivendo processo de luto, ou de angústia, pelo que te ocorre, aprenda a ler os sinais da vida.
No deserto da navegação pela margem de eu viver, aprenda a ser compreender melhor, a se conhecer, a interpretar os pequenos toques, e nada diretos, que a vida via te dando. Pois, você precisará tomar decisões, até para voltar a navegar pelo leito do rio de teu viver. Pois que ninguém é feliz andando só pela margem da vida. Por melhor que seja a tua margem, como as minhas são, elas não poderão devolver o sentido da vida a ti. Só você poderá fazer isso, pagando o preço pelas suas escolhas e decisões.

E estando pronto para voar novamente, abrindo as asas de si mesmo, despindo-se de todo medo, culpa e sentimentos ruins que em ti foram se fixando.

Ao retornar para o curso do rio de teu viver, veja que ao teu lado voa uma borboleta azul, aquela mesma que quando tu estava na margem insistia em lhe dizer que o que o amanhã será melhor, e que aquilo que vivia também passaria. Agradeça a ela. E aprenda com ela. 

Borboletas azuis quando estão pousadas nos troncos, não são azuis. Elas são marrons, da cor dos troncos. Fazem isso para sobreviver, criando um mimetismo com o ambiente. O tronco é a margem delas. Mas, quando saem para polinizar esperanças, abrindo as suas asas, um azul cintilante irrompe de seu interior, clareando os mais nublados dos dias teus. Quem tem uma na vida, tem bênção e graça, e em abundância.

E, geralmente elas são nossas margens. Aprenda a valorizar e a ser grato a quem de ti cuidou quando esteve sofrendo. E, um dia retribua, e cem por um. Devolvendo aos outros, quando for margem para eles, em dobro, o que a vida lhe deu, em forma de proteção, amor e respeito. “Tudo que tu quiser tentar é o mais importante. Amanhã o sol vai brilhar.” Mensagem de minha margem, que serve para tu, e em todos os momentos nos quais decidirá retornar ao centro do leito do rio de teu viver, voltando a ser o próprio protagonista de tua jornada.

Aprenda a ler os sinais do que a vida está querendo lhe falar. Algumas vezes, até gritando-lhe para que tome consciência e mude algo que está lhe fazendo infeliz.

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JG = João Gabriel, meu quarto filho, hoje com 8 anos.

Cartas ao JG. Na dor, vá para a margem! (Autor Ricardo de Faria Barros)


Sabe filho, quando você estiver passando por um processo difícil, vá para as margens do rio de tua vida.

Eu aprendi isso com os comandantes das embarcações que chegam, ou partem, de Iquitos que é  considerada a capital da Amazônia Peruana.

Iquitos é a maior cidade do mundo, com seus quase 500.000 habitantes, que não se pode chegar nela por terra: só por ar e água.

Então, o Rio Amazônia vira a BR principal para chegar à Iquitos, que fica à sua margem.  Dependendo de onde os barcos saem, eles subirão o Amazonas, ou descerão.

E, o maior cuidado dos marinheiros é não bater em troncos flutuantes, ou errar o caminho, entrando nos enormes afluentes de Nanay e Itaya, que desaguam no Amazonas.

A viagem leva em média 8 dias, tempo suficiente para se pensar muito na vida.

Pois bem, quando as condições do clima pioram, com chuvas torrenciais e neblina, dificultando a navegação, pela pouca visibilidade à frente, os comandantes tomam uma drástica decisão.

Eles reduzem ao máximo a potência, e dirigem suas embarcações para bem próximo das margens do Amazonas, e seguem mirando nela, que funcionará como uma guia.

Quando você tiver sofrendo muito, passando por um aperreio grande, vá para as margens de tua vida.

Diminua a potência, e siga sua jornada, apoiando-se na na margem.

Hoje eu fui para a margem. Tomei a decisão de sacrificar Duquesa, que contrariou Leishmaniose. A orientação sanitária é para sacrificar, pois o mosquito pode picar nela e infectar humanos.

Duquesa é minha amiga, aquela que me muita companhia no Recanto do Guerreiro. Eu estou sentindo muito.  E fui para a margem.

Na margem eu me fortaleço, para encarar a realidade de não mais acariciá-la, quando ia te pegar.

Na minha margem existe a espiritualidade, existe um amor de cuidado e admiração, existe meus filhos, irmãos e pais, ou seja, minha família.

Na minha margem, existem amigos fieis.  Daqueles que falamos a mesma coisa, como disco repetido, e eles ouvem como se fosse a primeira vez.

Na margem eu acolho minha dor, compreendo-me no sofrer e não me apresso para voltar ao centro do rio de minha vida.

Na dor, procure suas margens. Eu posso ser uma delas, conte comigo.

Ser margem é exercitar o dom de acolher o outro. De apenas abraçá-lo e deixá-lo aninhar-se no seu peito.

Ser margem é não parar de acreditar que aquele barco, da pessoa amada que em ti se conectou, logo voltará a navegar, e em melhores condições, assim que o mau tempo passar.

Ser margem é não apressar o rio. É ter paciência com o lento desabrochar para a vida, novamente, da pessoa amada. Estando 100% presente, mas evitando fazer a travessia por ele, pois não funcionará.

Ser margem é reduzir a ansiedade de ver a pessoa amada melhor, pois isso só a fará sentir-se pior ainda.

Ser margem é semear esperanças que dias melhores virão, e que "isso também passará". E para isso não precisa dizer nada àquele que em tua margem procurar uma guia, seja apenas amor. E o amor nem sempre pede palavras. 

Filho meu, quando tudo estiver difícil à sua frente. Quando as coisas estiverem sem um horizonte, cobertas pela neblina ou temporal, vá para a margem.

Ali, reduza a potência de seus motores existenciais, mas não ancore. Siga devagarinho, em direção à Iquitos.

Devagarinho, um dia de cada vez, sem querer apressar a libertação da dor e luto.
E se aceitando, não tão mais disposto como antes do temporal existencial que fechou caminhos em teu viver.

E chore!  Não banque o forte. O luto precisa de angústia. E a angústia precisa de tempo de maturação.

Cuidado para não se perder, entrando nos afluentes do Amazônia. Quando estamos tristes e vivendo processo de luto é bom não tomar decisões precipitadas, nem procurar falsas ajudas. Esses atalhos só farão você se perder de si mesmo, e será mais difícil retornar ao curso do rio de tua vida.

Na dor, cuidado com os falsos oráculos, as receitas mágicas, as coisas que aparentemente te farão esquecê-la, mas que ao passar o efeito delas, a dor virá mais forte ainda.

Portanto, não anestesie tua dor.  E, cresça na dor. É filho meu, a dor nos aquebranta, nos faz mais humildes, humanos, mais gente.  Ninguém supera um momento de dor, sofrimento ou luto, saindo da mesma forma.

Quando essa pessoa volta a leito do rio, de seu viver, está bem mais forte. Quem já sofreu e superou sabe do que falo.

Serei tua margem, mas tu terá muitas outras. Talvez uma namorada do tipo brisa aracati, ou a rara borboleta azul, para te dar forças. Caso tua margem não seja pessoa amada, ainda assim tu poderá botar os joelhos no chão e pedir a paz, Ele não te faltará!

Agora, papai vai se recolher um pouco, pois estou sentindo a falta da Duquesa, sempre tão alegre e amiga. Papai foi para a margem, desliguei os motores e desço para Iquitos devagarinho. Sem drogas de qualquer espécie, nem outras fugas de minha dor. Que é só minha, e de mais ninguém, e que preciso passar por ela.

E passarei, pois que no amanhã dias melhores virão

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JG = João Gabriel, meu quarto filho, hoje com 8 anos.

Obs: Na foto Duquesa, uma Golden Retriever fazendo o que amava, tomar banho de mangueira.

A Arte de Fazer Vinha D´alhos na Vida (autor Ricardo de Faria Barros)

Arrumei a casa ontem, após tua saída.  Nela, tinha restos teus espalhados por toda parte, e com eles me deliciei, propagando os bons momentos que juntos vivemos.

No sofá, o cobertor que te aninhara permanecia do jeito que tu deixou. Quase te vejo nele.

Numa das fotos que tiramos, percebo tua expressão faceira, de surpresa e humor. Acho que estava querendo falar algo, sobre o prato que juntos cozinhamos, como que a pedir para ir comê-lo no sofá da sala de TV, algo para ti mais proibido do que namorar com prima.

Durante nossa experiência gastronômica, ensinei-lhe a fazer isca de peixe. E tu ficou surpreso com o vinho que botei no peixe para marinar.

Falei que o vinho fixa e realça o sabor, e que sempre foi usado na culinária, desde a idade medieval, no que se chama de vinha de alhos.

Teus olhinhos brilhavam de curiosidade, e tu me ajudou a deitar o vinho sobre o peixe, sentido-se um máster chefinho.

Sabe filho meu, hoje tu tem 8 anos, e não sei quando lerá essa carta.  Nela, preste atenção a duas palavras: fixar e realçar.

Aquele peixe não teria nem a metade do sabor que ficou, e fez tu comer tudinho, sem o vinho. O vinho pegou o sabor da cebola, do alho, do tomate, da salsa, pimenta e sal e fixou nos poros do peixe. Depois disso, ele catalisou uma reação química realçando o sabor desses temperos, e dando ela próprio, com sua acidez, um sabor mais que especial ao peixe.

Só deixe se fixarem coisa boas em teu coração. Elas vão realçar o sabor da tua vida.

Exstem dez bons tipos de vinho, para as vinhas de alho de nosso viver, são eles: gratidão, solidariedade, esperança, perdão, doação, bondade, otimismo, paz, amor e a coragem, de se reinventar após momentos difíceis.

Cada um dos vinhos acima, isolado ou atuando em conjunto, fixará e realçará o sabor de teu viver.

Acredite em teu pai.  Não adianta querer saborear aquela Moqueca Capixaba da tua vida, se teu coração for cheio de mágoas e rancor. Não sentirá o gosto dela.

Não adianta querer degustar aquela costela de tambaqui, com o coração cheio de ingratidão e desesperança. Ela vai descer entalado.

Teu pai é colecionador de pessoas comuns, com atitudes incomuns diante da vida. Se eu pudesse definir o que as caracterizam, eu diria que são duas coisas.

A primeira, elas não querem ser as melhores da humanidade, mas as melhores para a humanidade.

A segunda, elas não perdem tempo cultivando emoções ruins, criando-as como bichinhos de estimação, em seus corações e mentes.

As melhores experiências da vida, os maiores amores, as viagens inesquecíveis, ou situações no mundo do trabalho dignas de louvor, sem a vinha de alhos feita com algum dos dez vinhos, acima descritos, expressos naqueles comportamentos ou atitudes (paz, amor, perdão, esperança...,) não se fixarão nas memórias afetivas, e não terão o seu sabor realçado e melhor valorizado por quem as viverá.

Tenha muito cuidado com isso.  Já convivi com um monte de gente que vive experiências maravilhosas, contudo as degusta como quem come coisa ruim. Desaprenderam a sentir, com as emoções e pensamento positivo, o valor do que tem, fazem, recebem ou testemunham nos outros.

São promovidas e não se alegram mais. Acham que mereciam e pronto.  Lutam para entrar numa empresa, estudando anos a fio, e não mais renovam o tesão por ela. Envelhecem-na dentro deles.
Têm filhos maravilhosos, como você, Tiago, Priscila e Rodrigo, mas por estarem com o coração tão cheio e pesado de coisas ruins, não mais acolhem a presença deles, de forma inteira, não ansiosa, agitada ou cheia de outras preocupações.

E o sabor da vida não se fixa ou se realça em nada de bom que eles vivem. 

Pois, falta-lhes algum dos dez vinhos. Talvez um pouco mais de perdão. Para outros, paz. E em determinado momento, pode faltar-lhes a coragem de se reinventar, após os baques inevitáveis que levaram da vida.

Por isso, aprenda a guardar esses vinhos. Nunca vi alguém infeliz com eles na adega do coração.

O Gerânio da Mamãe (Por Ricardo de Faria Barros)

Tomando um delicioso cappuccino, curtindo o friozinho do DF, mito esperado em sua chegada neste ano, contemplo nuvens brincantes no horizonte.

Deito a vista sobre a estante e me delicio com os brotos de uma tenra muda de gerânio que vêm nascendo.

Sempre fui apaixonado pelo mistério do germinar, da casca que se abre em brotos. De brotos que desafiam espaços impossíveis de ser. E, mesmo assim, tornam-se.

Não é um gerânio qualquer. É de pingente e vermelho, comprado seguindo recomendações expressas de minha mãe, numa saga hilária.

Vê-lo nascendo lembra minha mãe e seu amor pelas flores e plantas. 

Quando chego perto da sacada, e acompanho broto a broto sua evolução, é como se ela estivesse ali comigo, torcendo, apoiando, me amando.

As coisas só são coisas até serem tocadas pelo toque do amor. Como na mitologia quando Midas 
fazia ouro com seu toque, o amor nos torna mais que preciosos, nos torna eternos. 

Nesse momento, após serem abraçadas pelo amor, as coisas deixam de ser coisas. E esse filhote de gerânio não é mais um gerânio, é o Gerânio. Os substantivos viram nomes próprios, adquirem personalidade.  Aquele Gerânio, plantando de um pequeno galho caído no chão, quando eu preparava sua mãe, para levá-la até a minha, é presença de mamãe na minha varanda.  Minha mãe é aquela que além de me amar, reza por mim. Então, é amor em dobro. 

Não sei com vocês, mas comigo têm umas coisas que deixaram de ser coisas. O cobertor que o João Gabriel gosta de ver filmes, todo empacotado nele, não é mais um cobertor, é o Cobertor do JG.

Se eu soubesse dessa natureza das coisas, de tornarem-se evocação de pessoas e bons momentos, eu teria guardado mais algumas delas, em baús do pirata. 

Mas, quando somos jovens, achamos que isso de bom que vivemos vai se repetir e que nada precisa ser guardado, para com aquilo fazer comportas emocionais, tal qual fazemos com as frutas da estação, inclusive as jabuticabas. Para serem degustadas noutros momentos, quando a vida ficar menos agitada, ou quando a preocupação se avizinhar.

Somos seres simbólicos, de mistérios, místicas e cheios de subjetividades. Creio que é isso o que nos torna humanos.

Lady vem fazer faxina na quarta, ela pode esbarrar em qualquer um de meus vasos de plantas, e até quebrá-los, eu vou substituí-los numa boa, sem estresse, faz parte. 

Mas, mas se for o do Gerânio da mamãe eu irei sentir muito. Logo procurarei nos sacos de lixo, para ver se acho o lixo aqui de casa, e salvarei a tenra muda. 

Essa parte "Demiens", do "Homo Sapiens", é o que torna transcendental o viver.  Afinal, de perto ninguém é normal, como disse Caetano. 

Quem de vocês reviraria um lixo atrás de um galho de gerânio?

Quem de vocês compraria uma radiola usada, só para ao olhar para ela se lembrar de onde veio e o quanto cresceu, quando em 1985 - com quase 21 anos, recebi o  meu primeiro salário como adulto sério e grávido? E, hoje, há exatos 32 anos, fucei no Mercado Livre até achá-la, mesmo com um pequeno defeito no descanso do braço, segundo vendedor, e sem as caixas de som, mas funcionando. (Oremos. rsrs)  É bom olhar para nossa história e saber o que passamos, de onde viemos, e o quanto já crescemos e sobrevivemos, e estamos mais fortes e preciosos do que éramos. 

Não é mágico viver?  Não é bacana percebermos o quanto das pessoas entram nas coisas de nosso viver, dando a elas um novo significado?  E o quanto carregamos conosco, e deixamos nelas, do nosso perfume de existir?  Aliás, se há uma conserva emocional poderosa são os aromas.

Aromas afetivos que nos fazem rememorar o amor. Que renova e refresca nossa esperança, tal qual o orvalho das manhãs faz com os tenros brotinhos, saídos de cascas e galhos, dando-lhes mais uma oportunidade de despertarem o  seu melhor potencial.

Casas que não são lar e quartos de hotel nem sempre possuem isso. Não há aromas de referência e a história das coisas é frugal. Não há o cheiro de gente nelas.

Gente cheira. As pessoas são aromatizadas. Eu sei que tu está sorrindo, imaginando que algumas fedem, de ruins que são. Engano seu.  Elas apenas pisaram em cocô de pato, e carregam esse cheiro. Mas, não é delas. Foram coisas fedorentas que nelas foram se afixando. Se tirar essas coisas delas, elas voltam a cheirar.

Somos almas perfumadas. Todos nós. E, mesmo que alguns de nós tenham se transformado em coisas, em algum momento de sua história de vida, quando são tocados pelo toque do amor, tornam-se Nome Próprio, deixam de ser pessoas-substantivos. 

Até nós, coisificados que ficamos, não resistimos ao toque do outro em nosso ser, quando ele é de amor, e nova criatura nos tornamos. 

Nossa muda de gerânio interior, tão comum às demais, e sem graça alguma, quando nela se deposita o amor, deixa de ser uma muda, e passa a ser a muda. Transforma-se de objeto em sujeito, de substantivo em nome próprio.

Levanto-me e vou avaliar meu Gerânio. Agora são cinco folhas e três novos brotos. Antes era apenas um galhinho, sem folha e brotos. 

Quanto progresso!  Um desavisado que chega e olha para meu Gerânio, não vê nada de especial. Eu, que conheço sua história, sei de seu progresso pela vida, e o quanto significa para mim.

Assim é conosco. Para saber de nossos avanços têm que nos conhecer, e nos amar.
Muito de nós, visto de longe, somos apenas uma pequena muda de uma plantinha, sem flor e formosura alguma. Mas, se conhecermos a história dela, veremos o quão longe já chegou e o quão significativo é cada broto que dela nasce.  

Somos eternos demais para nos acostumarmos com o ruim e o pequeno, até de nós mesmos. 

Quantas pessoas pegaram o galhinho de nossa vida, que estava jogado lá no chão, desprezado, sofrendo e esquecido,  e com cuidado o plantaram no jardim de seus corações? Que vingaram em  rosas laranjas cheias de bênçãos e de beleza. 

Agora deu fome e vou comer uma feijoada, que também não é uma feijoada.  É a Feijoada, aquela que evoca em mim a renovação de meu espírito de luta, tal qual a brisa aracati faz nos sertanejos do Vale do Jaguaribe-CE, ou borboletas azuis fazem para caminhantes exaustos em trilhas do Cerrado.

Sim, quando o Gerânio der suas flores vermelhas, e em pencas, lá pelos idos de 2018, será mais mais uma razão para celebrar a graça de viver. E, nesse dia, você está convidado(a) para juntar-se à mesa e comigo celebrar à vida. Temos que aprender a festar a vida, e nas suas pequenas coisas, que ao serem objeto de nossa gratidão deixam também de ser coisas, tornam-se marcos. 

E, deixar marcos nos outros é muito melhor do que deixar marcas. Então, aguardem o marco das flores do Gerânio da mamãe. 

Quem procura acha. (Autor Ricardo de Faria Barros)

Cheguei de exame periódico, feito no Hospital do Coração de Brasília, tomei coragem e fui avaliar os estragos da chuva na minha vinilcoteca, que fica na estante da sala.

A estante foi bem afetada por um temporal que por aqui caiu, ontem à tarde, pois as janelas estavam abertas e eu estava fora de casa. Nela, ficam meus vinis, livros de gastronomia e álbuns de fotos. Ontem, avaliei os estragos nas fotos. E, para minha grata surpresa, elas não foram atingidas.

Para mim, um verdadeiro milagre pela disposição dos álbuns e pelo volume de água que entrou.

Hoje, comecei retirando um dos lotes de discos, uns 50, dos 1.000 que possuo.
E, como diz a canção:  "meu mundo caiu". Eles foram atingidos em suas capas, e estavam molhados ainda, denunciando a chuva em suas faces.  Ficarão com as extremidades das enrugadas, danificando a composição artística das mesmas. Eu até botei para secar, contudo não serão mais as mesmas.

Os livros também escaparam ilesos, que bom.

Quando uma ponta de tristeza quis irromper meu coração, eu lembrei-me da senhorinha que fez exame comigo, hoje bem cedo, e da forma com a qual lidou com uma pane de seu carro, quando estacionava no hospital.  Deixa eu contar pra vocês.

Bem cedo saí para fazer exame de Cintilografia, marcado para 7hrs. Cheguei no local pelas 6h30min. Logo após, uma outra cliente chega. Percebo que é bem idosa, cabelinhos branquinhos, e de longe ela me vê e me saúda com um sonoro bom dia. E eu abri um sorrisão para ela.

Nossos atendimentos estavam marcados para 7hrs, e ela também iria fazer a Cinti.

Aí, chegou outro cliente para o mesmo exame, e da porta já esbravejou com a maquina de senha que ainda estava desligada. Ao que a senhorinha disse-lhe: "não se preocupe, o Sr. é o terceiro da fila".
O cliente sentou à minha direita, e ela estava à esquerda. E ele continuou resmungando sobre o horário dos atendentes (x) o horário do atendimento.

A senhorinha mudou de assunto, cotando que o carro dela "morreu" ao estacionar, e que deve ter "afogado". E que foi salva pelos rapazes que "guardam carro", que lhe ajudaram empurrando o carro por mais um metro, até ele entrar complementamente na vaga.

Ela falava com uma mansidão e paz, daquelas de ninar criança no colo. Nenhum atitude de desgosto, de maldição de raiva ou ranzince. Pelo contrário, ela disse estar muito grata aos rapazes que ajudaram-na, e que se o carro não pegasse, na sua saída, ela chamaria o seguro.

Às 7hrs,  as atendentes chegam e nos chamam. Eu fico na estação de atendimento do meio, e os outros clientes nas do meu lado.

A senhorinha, ao começar a ser atendida, deseja á jovem um excelente dia de trabalho. O outro cliente, bem agitado e nervoso, pergunta à moça: "Vem cá, qual é o seu horário mesmo?"

Eu baixo a cabeça de envergonhado.

Para que essa pressa, se vamos passar quatro horas nas salas de exame? O que são uns minutos a mais ou menos?  Pensei com meus botões.

Depois de atendidos, seguimos para a sala de pinçamento da veia. O enfermeiro nos dá mais formulários para preenchermos, e ele solta mais um rabujo: "Cadê a minha prancheta?" 

O enfermeiro se desculpa e diz que são dois preenchimentos por vez, no caso o meu e o da senhorinha, e que logo dará a prancheta para ele.

O enfermeiro pede então que caminhemos pelos corredores por 30 minutos, "para circular" a medicação.  Aí começamos a andar. Ela, uma gracinha: toda falante vai contando de como era Brasília quando aqui chegou em 1966. E que ama essa cidade. Que foi atleta de vôlei e gosta de fazer caminhadas. Para se manter jovem nos seus 83 anos. Como não amar uma pessoa assim?

Ele, nos acompanha reclamando do curto espaço da "pista", ou de uma cadeira que alguém deixou no circuito, diminuindo-a mais ainda. Ou de apenas um tomógrafo está funcionando pela manhã, o que atrasará mais ainda o atendimento. Como ele foi caçar essa informação, pensei?

Nós, damos de ombro, e seguimos falando de coisas boas, e até brincamos dizendo que estamos caminhando na praia, e que só falta a cerveja. O enfermeiro que nos atendeu ouve-nos, e entra na brincadeira, convidando-nos para ver a decoração da sala do ergométrico. Ele abre a porta e nos diz, aí está a praia de vocês. Tratava-se de uma parede pintada com uma bela praia. E todos caímos na gargalhada.

Após a caminhada, é hora de comer algo gorduroso para melhorar as imagens: água, pão, queijo e iogurte. Imaginem quem reclamou do lanche?  Acertou...

O cliente cismou com a água mineral com gás. 

A senhorinha sorri, deliciando-se com o lanchinho. E dizia,  "se eu soubesse que tinha direito a lanche tinha feito esse exame mais nova". cacacaca

O que os diferencia?

Ela, extraí elementos da realidade para ser mais feliz.

Ele, extraí elementos da realidade para ser mais triste.

Cultivar o bem-estar emocional positivo nos pensamentos é uma escolha.

Volto o olhar para a vinilcoteca. E faço uma intervenção em meus pensamentos negativos, quanto ao que me sucedeu.

Digo para mim mesmo: pelo menos salvaram-se as fotos, essas sim, únicas em meu viver.  Eu trocaria todos os meus 1.000 vinis por um álbum, com 500 fotos, das mais de 5.000 que tenho impressas, de um tempo que não havia máquina digital, caso ele tivesse sido estragado pelas águas. 

Muitas coisas em nosso viver podem ser assim, quando as perdemos. Poderemos até ficar tristes por um momento, frustrados e etecetera e tal. Mas, se olharmos por outra perspectiva, se olharmos para o que ainda temos, para o que nos sobrou, e não para o que nos falta, encontraremos forças para superar o luto da perda, de qualquer perda.

E, no meu caso, sobraram os livros e a fotos. E está excelente. É lucro, diante do que ocorreu na sala com aquela chuvarada.

Quem passa o dia procurando razoes para ser infeliz, acha. Nosso cérebro entende que é esse nosso modelo mental, de pesquisa dos dados da realidade ou dos outros, e se encarregará de apresentar cenas e atitudes, desse teor de emoção negativa, e vindas de bandeja e aos montes.  Como o cliente fazia com tudo que via, num excesso de crítica pessimista da realidade. 

Assim como o Google faz quando você pesquisa qualquer coisa, por alguns dias, passando a enviar para você um monte de coisas relacionado àquela pesquisa, até no seu  Gmail e Facebook,  Ele saca o que tua percepção seletiva está atrás, e te oferece mil possibilidades de encontrar o que precisa.

Nosso sistema de emoções e pensamentos é igualzinho, ou melhor, é muito, muito, muito mais potente que o Google.  Nosso cérebro saca o tipo de energia que estamos cultivando dentro dele, e faz com que ela encontre pontos de conexão, na realidade ou no outro, para se abastecer dela.

Ter consciência sobre o que estamos pensando, e do impacto desse pensamento em nossos comportamentos e emoções, e até nos relacionamentos com os outros, já é um primeiro passo para deter o rio dos pensamentos negativos - substituindo-lhes por outros, bem mais expansores e edificadores da consciência, e das possibilidades de ação. "Se não pegar o carro, eu chamo o seguro..." Que sabedoria!

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