Caminhe mais 200 metros.

Relato de Viagem 15
O dia começou chuvoso, então aproveitamos para fazer o passeio da Bica, ou Parque Arruda Câmara.
Ir à Bica tem cheiro de programa de família, diversão garantida.
Nunca tínhamos ido nela pela manhã, e parece que as luzes realçam mais ainda seu intenso verde.
Trata-se de um oásis no centro de João Pessoa, com 26 hectares de mata atlântica preservados, além de um zoológico. Uma raridade urbana.
 Na entrada, um grupo de Palmeiras Imperiais, centenárias, abrem o cortejo do belo.
Logo de cara, encontramos a famosa Bica construída em pedra sabão.
E, ainda funcionando. Desde 1782, dela jorra água mineral, de excelente qualidade, que matou a sede de muitos pessoenses, ao se tornar uma das fontes de abastecimento dos nativos, quando a cidade ainda era chamada de Filipeia de Nossa Senhora das Neves.
Sentar-se perto dela, beber daquelas águas, é reverenciar a história de tantos que foram responsáveis por preservar aquele espaço para as gerações futuras, tais como o botânico paraibano Arruda Câmara.
Um urro açoita os céus. Urro gutural. São os leões, tomando café da manhã e brincando com seu treinador. Numa área entre as celas e o fosso de observação, o treinador corre de um lado para o outro para exercitar uma leoa, que ele viu nascer e dele se apegou. O pai leão observa a cena, feliz, e urra como quem a aplaudir. JG delicia-se com o que vê. A leoa aproxima-se da tela e recebe uma massagem nas ancas e dorso, quase dorme de relaxada e feliz que ficou.
Seguimos pela trilha dos macacos e descobrimos novo acesso ao Parque, por dentro da mata. Sem ser pela área calçada. Uma trilha de chão batido, entremeada por pequenos cursos de água, atravessados por minúsculas pontes. No caminho, várias placas dizendo-nos para nos conectar nos sons locais.
E como são belos. Escuto bem-te-vis, papagaios, água correndo mansinho, vento nas folhagens e muita risada de criança em excursão.
Não conhecia esse acesso por dentro da mata, e fico encantado com tanto viço da natureza ali intocada. Passa correndo perto de nós uma cutia, procurando comida entre as folhas secas, ao nos ver para, fita-nos, e diz “Oi”.
O final da trilha desagua num lago fantástico, de cor verde esmeralda, que com a luz do sol matutino fica magistral. No laguinho equipamentos de lazer estão disponíveis. Alugamos um pedalinho, somos os únicos. Custou-nos R$ 11,00 um passeio de 20 minutos. Estamos navegando em águas puras, daquelas que brotam das profundezas do chão. Ao nosso lado pastam aves de água, e andorinhas dão vôos rasantes. JG assume o “leme” e fica todo feliz.
Paramos no centro do lago e contemplamos as nuvens, espelhadas na suas águas. Como não eternizar esses momentos? O sol nos diz que daria praia, besteira, já estamos tendo nossa praia, naquele pedalinho do lago. Voltamos para entrada da Bica pelo outro acesso, o que sempre fazia.
Partimos em busca da observação dos pássaros, habitantes de imensos viveiros.
Ali chegando, vimos um coreto bem preservado e nele fomos bater foto. JG assustou-se com uma taturana (caranguejeira) que atravessava o caminho, para pegar um sol da manhã.
Ele impediu que a mãe e tia prosseguissem por aquela parte do trajeto. E, todo orgulho, disse-lhes que estava protegendo-as.
Então, desistimos da trilha superior e voltamos por outro acesso, mais acima do coreto, e aí Deus se fez presente em meu viver, mais uma vez.
Deixa eu te explicar. Gosto de observar as árvores ao caminhar, e, uns 50 metros antes de nela chegar, sabia que era especial. Monumental, aquela árvore reinava esplendorosa. Tinha uns 60 metros de altura, apressadamente caminhando ao seu encontro, intui que poderia ser um Jequitibá Rosa.
Chegando bem próximo vi que no seu caule estava afixada uma plaquinha. Aproximei-me e vi que era sim, uma formosa espécie de Jequitibá Rosa.
Tenho uma atração por Jequitibás, e na minha casa plantei um deles. E já foram temas de minhas crônicas no meu blog, o bode com farinha (http://bodecomfarinha.blogspot.com.br)
O maior e mais velho jequitibá do Brasil está no Parque Estadual Vassununga no município de Santa Rita do Passa Quatro, em São Paulo. Pela datação de carbono, descobriu-se que já estava por aqui antes do nascimento de Cristo.
Abracei-me ao Jequitibá Rosa da Bica, em profunda comoção. Pela largura de seu tronco, e altura de suas copas, ele deve ter mais de mil anos. Sendo testemunha privilegiada do nascimento da cidade. Notei que ele tem saudades de seus amigos, por só estar, aqueles mesmos que viraram material de construção, fogueira ou móvel, sem nenhum cuidado com a preservação daquele patrimônio biológico.
Eu nunca tinha abraçado um jequitibá. Aliás, acho que nunca tinha visto um. A não ser o meu pequeno, de um metro e pouco, que crio em casa. Em Tupi seu nome significa o gigante da floresta. E, por isso mesmo, ele pagou o preço da “evolução”.
Um grupo de turistas parou perto para fazer uma foto. Não do Jequitibá, mas deles, em selfs infinitos. Aproximei-me e contei-lhes que aquela árvore, que estava ao lado deles, era um Jequitibá Rosa. Um ancestral, raro e precioso, mais antigo que a própria cidade. Eles deram de ombros com o que falei, respondendo com um “a tá!”. E seguiram caminho fazendo mais selfs deles. Nessa sociedade narcisista, olhar para além da lente dos selfs, deixando de apenas se contemplar e ao seu grupo, abrindo espaço para ver o que ocorre à frente das lentes vai se tornando uma coisa cada vez mais difícil de acontecer. As pessoas estão vendo as Cataratas de Foz do Iguaçu, por exemplo, mais estão mais interessadas em fazer um self, com elas por trás. Do que parar para deixar que aquelas águas adentrem os seus corações. Pobres seres humanos, pobres tempos, nos quais tudo gira em torno da própria pessoa. De sua exposição, de suas performances perante as telas, não importando o cenário que a emoldura. Aliás, estão pouco se lixando para o cenário, quando ele não serve para projetar a si mesmos.
Voltei-me para meu Jequitibá e notei que ele percebeu a cena. E que sentiu o desprezo da indiferença, o pior deles, de quem por ele passa todos os dias, e não mais o aprecia. Aliás, para apreciar algo temos que entender seu valor.
Combinei com ele que voltaria, li, para trocar um dedinho de prosa com ele, sempre que em João Pessoa estivesse. Vou sugerir aos administradores da Bica que criem a trilha do Jequitibá Rosa, incentivando que pessoas-menos-self tenham a experiência que tivemos. Ao sair, colhi um pedaço de seu tronco frondoso, que devidamente plastificado, ficará sobre no meu consultório de psicologia. No caminho, dei de cara com cascas de sementes em formato de coração, que falavam amor. Que belas. Dariam um bom quadro expressionista.
Seguimos para explorar o Altiplano. Trata-se do topo da Barreira de Cabo Branco, uma área que era pouco valorizada, até 10 anos atrás, seja pela dificuldade de acesso ao mar, seja pela pouca urbanização.
Agora, aquilo ali está mais parecendo Águas Claras, no DF, com espigões desafiando as nuvens e inúmeros condomínios horizontais, com direito até a muitos food-trucks, devidamente estabelecidos sob sombras de cajueiros. Ficou bonito demais, aquilo lá, antes uma área tão esquecida. E, não derrubaram uma árvore da mata que reveste a barreira, fazendo tudo de modo muito sustentável. Um exemplo de ocupação urbana.
Passamos pela belíssima Estação Ciência e seguimos para almoçar na Praia da Penha. Outra descoberta recente de meu turistar, quando lhe dei asas.
A Penha era considerada praia de povo simples, popular, e naquela época que eu não a via, meu coração era muito burguês. Corações burgueses deixam de ver e experimentar muitas coisas boas da vida, por se fecharem em guetos sociais. Era me caso.
A fome bateu e seguimos para a Peixada do Amor, localizada logo abaixo da barreira da Penha, bem perto do mar. O local fervia, e com sorte conseguimos uma mesa em local arejado. Aliás, não é sorte.
Refrescando-me com uma geladinha, observei um senhorzinho todo elegante, camisa xadrez, chapéu formoso, varrendo o chão do local.
Notei que ele era o dono da banquinha dos dindins, que ficava próximo da entrada sul do local.
Então a ficha caiu. Como ele vende uns dindins gigantes (geladinho), aos frequentadores da Peixada do Amor, os saquinhos iam sendo jogados ao léu, ou o vento os carregava para o chão. Aí, como eles era o fornecedor daqueles saquinhos, envoltos em deliciosos manjares, ele assumia, periodicamente, a limpeza dos plásticos que frequentadores jogavam no chão, ou não os colocava no lixo.
Perguntei seu nome e o porquê fazia aquilo. Ele me disse que se chama Ademir e que é “importante saber cuidar do que se conquistou”. Uauuu!!!!
Ademir é o único barraqueiro de calçada que pode ficar dentro da área do estabelecimento, com seu isopor de dindins, e uma banquinha que vende bolsas e chapéus de palha. Os demais vendedores ambulantes, que aproveitam o alto fluxo de turistas no restaurante, estão do muro pra fora, na calçada externa. Ele não. Ele está na área interna.
Disse-me que conquistou o respeito do proprietário e que limpar a área, que seus dindins eventualmente sujam, faz parte dessa conquista.
Sr. Ademr é um Jequitibá rosa. Espécie rara, quase em extinção, são pessoas que hoje se responsabilizam pelo seu agir, não ficam buscando justificativas para o não ser. Que assumem posição de protagonista, não terceirizando para os outros a sua liderança para um mundo melhor. Ele poderia ficar na defensiva dizendo e agindo assim: “problema do dono do estabelecimento recolher os sacos; problema dos turistas insanos que jogam no chão; não foi culpa minha; só estou vendendo meu dindin; não tenho anda com isso; se me tirarem daqui vendo na calçada...etc., etc, etc.”
Ele não. Pessoas Jequitibá pegam uma vassoura e uma pazinha e transformam seu lugar, não se importando se ninguém faria aquilo, no lugar delas, ou se a culpa não é delas.
Emocionado, comprei dindins de coco. JG e Sandra deliciaram-se, dizendo que foi o melhor que tomaram. Perguntei-lhe quem os faz. Ademir me disse que é sua esposa, e com a própria fruta. Saborear o dindin de coco de Sr. Ademir é uma experiência.
JG percebe que o casal da mesa vizinha, após pagarem a conta e saírem, deixaram a batata frita intacta. Ele vai lá e "confisca" o prato. Fica todo feliz com sua peraltice. Peço ao garçom que o embale, “será nossa janta”. JG sorri. E eu com sua astúcia e inocente simplicidade.
Satisfeitos, recolhemos os saquinhos, colocando-os embaixo dos talheres da refeição já “refeiçada”. Menos uma vassourada para Ademir.
Na saída, presenteei Cristina, Sandra e Guia (que está em Campina) com as bolsas de palha que Sr. Ademir comercializa, ao disputar com a caixa de isopor dos geladinhos o exíguo espaço de sua mesa-mostruário. Dei-lhe um forte abraço, prometi voltar. “Daqui há um ano por aqui novamente Não vá inventar de morrer, nem você nem eu.”
Na volta, paramos num terreno sombreado, perto do ponto mais extremo do Brasil, a Barreira de Cabo Branco. O objetivo era fotografar a baia de mesmo nome, a praia de Tambaú, Manaíra, Bessa e a ponta da praia do Poço, observados de uma posição mais que especial, numa vista privilegiada. Mas, senti a solidão no local. Éramos únicos. Para viver essa emoção tem que caminhar, pois a área está protegida do acesso de carros, para evitar vibrações na frágil barreira que ano a ano perde parte de seu terreno. Senti-me pequeno diante de tanta beleza, possibilitada por uma visão estonteante lá de cima, contemplando um horizonte de praias a perder de vista. Éramos os únicos, num sábado, no qual muitos voltavam dos programas das praias do litoral sul, apressados ou cegos demais, ou com olhos opacos pela rotina dos dias de belo, nos quais desprezamos com indiferença o que temos e não mais lhes damos valor. Voltamos para o carro com o coração exultante.
Naquela breve caminhada, de uns 200 metros, percebi que para apreciar algumas coisas que estão ali, todos os dias, e ao nosso redor tal qual o Sr. Ademir, a fonte de agua e o jequitibá, temos que aprender a caminhar para dentro de nós mesmos, e resgatar nossa própria essência de amor.
Temos que reaprender a caminhar mais 200 metros, para achar e valorizar o que realmente importa: em nós mesmos, nos outros e na realidade que nos circunda.






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