Cartas ao JG - Filho, essa sombra não é tua.

Sabe filho, essa segunda foi um dia difícil para nós dois. Tu começou no primeiro ano fundamental. Cheio de medos e choroso, dizia-me que já tinha esquecido de tudo do ano anterior e estava inseguro. "Mas eu não sei matemática".
Quanto a mim, fazendo rota diferente da que por 5 anos fiz, ao trabalhar no final da Asa Norte. Acontece que durante minhas férias todo o andar em que eu trabalhava foi transferido para outro prédio, na parte Sul da cidade, a uns 15 Km de distância.
Não tive tempo de me despedir, de processar o desapego. Botaram minhas coisas numas caixas e mudança feita.

No meu primeiro dia para o novo prédio segui tateando. Novas rotas, Novas árvores à beira do caminho. Senti falta das que por 5 anos me acostumei a vê-las crescendo. Somos seres de apego.
Aprender o desapego e o mudar é uma arte, penosa, mas super necessária à sobrevivência.
Confesso-lhe que passei o dia como cachorro que cai de mudança. 
No final do expediente, para completar minha fase de abobalhamento, descobri que o elevador que pegara só ia até o térreo. Meu carro estava no subsolo do estacionamento. Resolvi testar a saída de incêndio. Descendo então pelas escadas, achava que acessaria o sub-solo pela porta de incêndio. 
Contudo, uma enorme surpresa tive ao abri-la e sair do outro lado. Não é que ela só abria pra fora. rsrs
Depois que entrei na área, ela voltou e travou. Não tinha maçanetas externas. Lá fora descobri que não era o estacionamento. Era um beco - espécie de corredor sem teto, entre o muro dos escritórios e o muro externo. Agora, o cachorro que caíra da mudança tornou-se real. Fiquei zanzando e atônito sem saber como voltar. "Arrudiei" o prédio (dei a volta) pelo beco e já entrando no modo pânico, achei uma outra porta de saída de incêndio que não fechara completamente, algum outro desavisado por ali passara mais deve ter a encostado lentamente que ela não conseguira travar. Por ali retornei, todo suado de medo - e podendo sentir a risadagem de quem estava me vendo pelas câmeras de segurança. 

Só comigo. Descobri que o acesso ao subsolo era pelo elevador 2. 
Mudanças são assim mesmo. Levamos um certo tempo para aprender novos hábitos, rotinas e padrões de comportamento. Tudo que é novo e precisa ser apropriado pela existência. Leva um certo tempo, mas aprendemos. Desde que não fiquemos numa posição de resistência ou saudosismo, que só dificultarão a adaptação. Mais nunca passo por uma porta de incêndio do mesmo jeito. 
Saindo do prédio passei a procurar a melhor melhor via para te buscar no colégio.
Tome engarrafamento e caminhos que amanhã não os farei mais, têm outros melhores. Mas, quanto a isto também se aprende.
Se é uma coisa que o erro pode ensinar é a mudar rotas. Isto vale pra tudo, preste atenção ao que falo!
Recebo-lhe no pátio. Você estava alegre, não teve aula de matemática. rsrs
Disse-me que livrou-se da boladas na brincadeira Queimada, que foi o campeão. Na minha terra chama de baleada este jogo.

Voltando pra casa, agora sim na rota das árvores amigas, percebo que um carro ao meu lado não emparelha comigo quando o sinal fecha. Ele espera lá atrás. Fica embaixo de uma sombra e deixa uns dez metros entre ele e o meu carro e uns 20 do sinal. 

O carro é o da foto que ilustra esse texto. Foto a que ao tirá-la fui reprendido por ti: "Pai, a vida não é uma foto". Não sei onde aprende estas tiradas.

Engraçado que cena parecida aconteceu durante nossas férias em João Pessoa. 

Um outro Zé Ruela atravancou o acesso ao sinal parando embaixo de uma sombra e mandando pras favas quem vinha atrás e queria avançar posição. Ele deixou tanto espaço que a fila que alguns carros da fila que emparelhou ao lado, passaram à sua frente, mesmo ficando no sol.

Quanto à mim, não dei sorte, eu estava atrás do ZR (Zé Ruela) e  no sol do que seria minha sombra. Não buzinei. Minha vingança é dar a outra face.

Ele ficou numa sombra que pelo fluxo natural dos carros não seria a sua, compreende?

A vida anda tão violenta que temi buzinar o o cara ainda partir pra cima de nós, tudo pelo seu "direito" de ficar na sombra enquanto o sinal estava fechado.

Mas três "acontecenças", e do mesmo tema chamaram minha atenção e hoje te conto.


Conto-lhe para que não esqueça de quem é, e não faça como eles. Ouse ser diferente.
Afinal, tenho 50 e tu 5.  E ando esquecendo de muitas coisas, então, prefiro que elas fiquem registrada para teu futuro. Quem sabe poderão ensinar-te algo?

A segunda cena, do mesmo mote, foi quando curtíamos a praia na barraca da Cibely na praia do Poço, em João Pessoa.

Uma barraquinha legal num trecho de praia bem bacana. Chegamos cedo ao local, um dos pontos de embarque para a paradisíaca praia de Areia Vermelha.

Pegamos uma mesa bacana, frente ao mar. Teu avô, Celina e você foram para o mar. Tua vó, foi se bronzear mais próxima da praia. Eu e tua mamãe saímos para uma caminhada básica, coisa leve.

Deixamos nossas coisas em cima da mesa, e pedimos ao garçom que olhassem para nós. Coisa que em João Pessoa ainda é possível. 

Quando voltei da caminhada sua mãe ficou contigo no mar e eu subi até a barraca para pedir uma cerveja.

Chegando á nossa mesa notei que um grupo grande estava ao lado. Umas dez pessoas. 

Duas delas, despudoradamente, ou melhor, descaradamente viraram duas das cadeiras de nossa mesa e nela sentaram-se olhando para seu grupo.

Ou seja, uma lateral de nossa mesa passou a servir ao outro grupo, mesmo que nos arranjos das cadeiras.

Eles me viram chegar. Eu esperei que devolvessem as cadeiras e se ajeitassem na mesa deles. Do jeito que sentaram não caberia mais quatro dos nossos.

Eles me viram e sorriam baixinho. 

Nenhum fez qualquer menção em pedir desculpas, levantarem e devolverem as cadeiras, ou simplesmente acomodarem-se na mesa deles, aproximando uma outra para acomodar as pessoas que estavam nas nossas cadeiras.

Conversando e sorrindo estavam, continuaram.

Quanto à mim, era invisível. Li os pensamentos deles: "os incomodados que se retirem".

Foi o que fiz. Arrastei as três mesas e nossas coisas para um lado vazio, peguei duas cadeiras que estavam sobrando noutras mesas, remontei nossa área e pedi minha cerveja.

Não eram geração Y.  Eram pessoas de meia idade, bem vestidas, com filhos pequenos -  gente bacana que chega de carro locado para fazer um dos passeios turísticos mais badalados de JP. Não era o povo simples da CVC. Eram pequenos burgueses que acham que o dinheiro compra tudo. 

Gente que ensina aos filhos, desde pequenos, com exemplos dessa natureza a amealharem tudo que podem, pois "merecem". Gente que não respeita e percebe os direitos, ou necessidades, de quem está ao lado. Gente que quando se agrupa vira uma horda bestial. Temo eles. Tenho pena deles.
Você poderia me dizer, mas pai, porquê não reagiu. 
Minha reação, filho amado, e dar a outra face. 
É a não violência ativa. 

Reagir com gente da espécie é se expor ao perigo. Se puder ceder, ceda. 
Tratam-se de pessoas sem valores que poderão te agredir, por coisas bestas como um espaço entre mesas de bar.

Corta a cena e lembro de uma praia paradisíaca entre Ilhéus e Itacaré que fomos juntos também nas férias de 2015. Chama-se Praia do Sargi. Fomos pra Cabana do Rubão e ali passamos amanhã e um pedaço da tarde. Pedi a conta forçado. Forçado por um carro que acabara de chegar de Vitória da conquista. Era uma daquelas camionetas imensas. Delas desceram dois casais de jovens marombados e suas namoradas.

Até aí uma beleza de cena, as moças eram bonitas. rsrs. 

Mas, do carro deles saltou uma besta fera, transmutando-se em forma de monstro. 
O monstro do som alto.

Caixas de som enormes estavam sob a lona da carroceria. Delas, ao se erguerem saíam uns 500 watts de som. 
Era som pra metro e meio. 

Ninguém mais conseguia conversar, e o garçom que me atendia disse-me com candura: "Isso aqui é normal, hoje demorou...".

Pedi a conta, e até chegar ainda ouvi uns três batidões de estilo psicodélico. 


Voltamos pela praia até nossa pousada Sargimar escutando o som, agora graças a Deus ficando cada vez mais distante. 

O que levou aqueles rapazes a se portarem como donos daquele local?

Ou a acharem que também queríamos escutar a música deles?

Quem privatizou a praia para os mesmos, a ponto de nem conseguirmos mais ouvir o doce barulho das ondas com tanto som?

Será que por um breve momento eles pensaram que poderia estarem incomodando crianças que dormiam embaixo de mesas, ou casais de namorado que contemplava o mar e curtiam a paz do local?

Será que um rasgo de consciência ainda existia naqueles quatro rapazes, de pelo menos por uma fração de segundo perceberem que poderiam baixar o som, e, mesmo assim, curtirem ainda sua música?

Não filho meu, nenhuma pergunta de teu pai é respondida com um sim. Todas não.

Será querer demais que pessoas educadas para o poder, ter e prazer pensem nos outros.
São narcisistas sociais. 

Simples assim. 

Para fechar a série, comento contigo sobre uma cena que vimos juntos na televisão. Você até deu umas gargalhas, de tão ridícula que era a cena. Trata-se do Certame do Miss Amazonas 2015. Não é que a segunda colocada,  Sheislane Hayalla,  arrancou a coroa da vencedora Carol Toledo!

O que mais me envergonhou foram os aplausos de muitos à cena, inclusive pela cobertura da mídia.

Não vou entrar nos méritos da justificativa que a mesma deu. Mas, saber perder é preciso.

Requer uma das mais raras preciosidades nos tempos atuais: inteligência emocional.

Fiquei imaginando o prejuízo à educação de crianças e jovens, e até adultos, que viram aquela cena e passaram a char normal a reação da moça: "que se sentiu lesada pela coordenação do certame por uma suspeita de tapetão nos resultados do Certame.

Todo o destaque dos jornais televisivos tentavam vender uma imagem e que  a moça foi tomada por uma ira ""quase santa", ao re "revoltar contra a coordenação do concurso".

De vilã virou santa na telas globais de norte a sul. Nenhuma reprovação, culpa, "faria tudo outra vez...".

Filho meu, não seja assim. Não fique procurando culpados, revoltas ou subversões que justifiquem teu fracasso. 

Perdeu, acolha o golpe e continue esperançando tua vida. 

Perdeu, aprenda e busque outras possibilidades e alternativas que ainda te restam.

Não fique cego pelo primeiro lugar no pódio. Ambição demais pode arruinar tua carreira e vida pessoal.

Há muita felicidade nos degraus inferiores. Então, deixe a corôa de quem te passar à frente intacta.
Não faça como ela.

Respire, recolha e retorne mais forte.  Saber perder é vital numa sociedade que educa somente para a vitória, para o sucesso e a prosperidade.  Em tempos de pais inseguros e ansiosos que só ensinam os filhos a quererem ser sempre os primeiros. Uma pena. 

Encontre seu jeito de ser diferente: justo, fraterno e amoroso.  Com certeza sua vida será mais feliz. 
Esse pessoal dos exemplos que teu pai falou são ocos por dentro. Precisam de muita música alta para calar a voz infeliz de seus corações. De muita sombra para suas almas sequiosas. De muitas mesas, para sua psiquê espaçosa. De muitas corôas de flores para se sentirem com a autoestima bacana.
E, a cada uma dessas conquistas: sombra, mesa, títulos (flores), som potente, precisarão de mais e mais, para viverem rasgos instantes de felicidade - tão volúveis como sorvetes ao sol. 

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