Sejamos 3D Emocionais

Estava pernoitando no quarto da sogrona, e ali deitei minha visão naquele guarda-roupa que junto com uma cômoda, cama e penteadeira formam um conjunto harmônico. São móveis da década de 30, herdados do clã dos Pinatti de Pirajuí-SP, uma italianada que migrou para SP no início do século. Tutte le persone buone. Engraçado que nunca tinha parado para contemplar estes móveis, e frequento o lar dos Pinatti desde 1997. 
Fiquei assombrado com tamanha beleza e delicadeza dos entalhes. Mas assombrado ainda por nunca ter parado para contemplá-los com o devido respeito e admiração.
Como tem gente que passa pela vida, ao nosso lado, sem nunca ter olhos deitados sobre seu ser, vendo o que sempre tá ali pertinho e nunca é admirado, posto que resta só indiferença aos olhos opacos de retinas cansadas dos que lhes rodeiam.
Os móveis de hoje são retos, chatos, com acabamento sem detalhes algum. O povo chama de "estilo clean".
Os de antigamente esmeravam-se em estilo. Cada peça era uma obra de arte, cheias de tons sobre tons, ruelas, vales e montanhas.
São móveis em terceira dimensão. Seus acabamentos possuem largura, comprimento e fundura.
O artista, desse conjunto de móveis, era tão caprichoso que esculpiu no recanto deles, um conjunto similar de frisos, como se fosse sua assinatura; seu traço identitário.
Quando nascemos somos assim também. Carregamos o traço genético de nossas famílias e somos cheios de dobrinhas e plexos de todas as ordens, por isso somos complexos.
Ao amadurecer alguns de nós vão perdendo os plexos, as dobrinhas, vales e montanhas que nos tornam diferentes uns dos outros. Perdemos a terceira dimensão e fica-se 2D. Largura e comprimento, profundidade nenhuma.
Naquela madeira, no local que só havia 2D, um carpinteiro talhou um sulco, uma covinha, um recalque e deu no que os designers chamam de volumetria.
É amigos, precisamos de volumetria em nossa vida. Não falo das originárias do excesso de calórias, como as que porto no barrigão de chope.
Nem falo da volumetria, tão comuns nos móveis de nossos tataravós e em casas mais simples, nas quais as paredes verticais encaram a gravidade - com tanta coisa que nelas vão se afixando, criando espaços que desafiam a lógica subjacente, A La Niemeyer.
Falo de uma volumetria emocional, que nos destaque da multidão, que escreva a nossa história singular no viver de uma comunidade.
Afinal, cria-se filmes 3D, móveis 3D, casas 3D e porque não pessoas 3D?
Tem muita gente que perdeu o 3D com o que nasceu, o 3D emocional que fazia acreditar em sonhos, em fantasias, em acreditar em quem não conhecia e no brincar com tudo que tinha a mão. Aquele 3D que faz sorrir, amar e perdoar com uma naturalidade como o alimentar, assim éramos na tenra infância. Éramos 3D emocionais. Mesmo que inseguros e imaturos, ainda assim, cada um carregava um jeito próprio de chorar, sorrir, brincar, ser, fazer e acontecer. Pais de muitos filhos como eu, e talvez você, sabe bem do que falo. Todas fomos crianças diferentes, 3D falando, mas incrivelmente belas, por diferente que éramos.
Aí foram ficando rasos, aplainaram superfícies, como numa lima que lixa tudo que desafia a harmonia do toque.
De tanto se formarem, nas formas da família, igreja, escola, trabalho e sociedade perderam uma de suas dimensões, justamente a das dobrinhas, entalhes, vales e montanhas emocionais.
Aquela que nos diferencia, aquele jeito autêntico e soberano de ser, a que chamamo de autonomia.
Tudo tem ficando muito sem personalidade, sem diferenciação nos tempos atuais.
Tudo muito 2D - só largura e comprimentos emocionais - profundidade nada.
E, é justamente na profundidade que se faz a terceira dimensão do ser.
Quero recuperar minha função 3D emocional, qual o primeiro amor, qual quem lustra a prataria com KAOL.
Quero continuar podendo decidir se penso como todos, ou se tenho uma outra vista de um ponto. E, quando todos pensarem da mesma forma, quero exercitar o 3D emocional e tentar enxergar traços escondidos que na horda social em que nos tornamos não conseguimos ver.
Quero continuar escavando em mim emoções que me conectem às coisas boas da vida, à simplicidade e amorosidade do encanto do viver.
E, vez por outra, parar e olhar para o friso esculpido nos meus DNAs, que me tornam família, e sentir-me honrando de ter vindo de onde vim e pertencer aos clãs a que pertenço, inclusive os que foram moldando em meu viver, a que chamo das família sociais - a escolhemos para dividir nossas jornadas.
Se tua vida anda um tanto vazia, sem graça, sem sabor, quem sabe não é hora de levar-se a um carpinteiro para que em ti sejam entalhados novos adereços, novos projetos, sonhos e motivos para viver.
Não é hora de adormecer tua existência ficando igual a tantos que apenas sobrevivem. Afinal, é sobre a vida de que estamos falando e uma vida que não se envergonha das cicatrizes pelas quais passou, antes as têm como troféus que nos momentos de dificuldade - ao para elas olhar, sentirá mais forte.
Vamos lá, eu e você, esculpir coisas novas em nosso existir. Nos diferenciar de alguma maneira, sem ser diferente, mantendo aquele traço maior que nos faz a todos humanos e belos, o do amor.
Vamos deixar de aplainar tudo que temos de bom para nos ajustarmos à mediocridade dos que esperam de nós pouca coisa. Não espere de você mesmo pouca coisa. Nunca.
Somos eternos demais para perdemos nossa 3 Dimensão ao nos ajustarmos à tudo e a todos, sem nenhum senso crítico, apenas para nos sentirmos aceitos. Nem sempre valerá a pena lixar nossos volumes que nos diferenciam. Alguns de meus volumes emocionais são o que de melhor ainda tenho, outros nem tanto, lixa neles.
O perigo é ficar de de renúncia em renúncia ao nosso existir, acovardando nossa presença no mundo, ao ponto de se perder de si mesmo. Ficando mais um sem noção, sem história, sem rebelião, sem mudança, sem graça e vida - igualzinho a um tantão de zumbis sem emoção perambulando por aí. Gente bovina. Gente sem identidade, que não transforma, faz ou acontece, apenas repete a forma dos outros - a de móveis tipo modernoso, sem volumetria assimétrica.

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