Presente Inusitado



Você já ganhou de presente um osso?

Pois é, nessa semana durante um almoço delicioso, com direito à refogado de vinagreira e galinha caipira, servidos no Pé Sujo Gourmet do Zé Nascimento, ganhei um osso do amigo Péricles.
Pela reverência do gesto, não era qualquer osso. Tratei logo de colocá-lo no bolso da camisa, o que me rendeu umas nódoas, coisa boba que com Omo sairá.

E o tema passou a ser aquele ossinho, conhecido como osso da sorte, jogador, forquilha, ou, cientificamente falando, Fúrcula.
Esse osso só existe nas aves. Na pré-história existiu nos dinossauros. Vai lá saber porque.
Ele é feito da soldadura de dois ossos num só. Unindo as clavículas dos pássaros, para que a tensão do vôo se distribua entre asas.

Que legal, não é?

O apelido, Osso da Sorte, veio de um hábito antigo. Nas cidadezinhas interioranas, os moleques que nem eu o usavam para resolver disputas, de qualquer coisa. O oponente segura numa de suas extremidades; o outro, na outra.
E ambos puxam ao mesmo tempo. O que quebrar primeiro perde a disputa.
Mas, permita-me uma visão diferente do sentido da sorte, embutido na tradição cultural desse ossinho de galinha.
As estruturas soldadas em V possuem a "quase mágica" de suportarem, sobre seus perfis, enormes tensões sem quebrarem.

Na vida rural, uma estrutura parecida é a cangalha. É uma estrutura de madeira que divide o peso da carga dos jumentos, ou outros animais, em forma de V invertido.
Na construção civil, entre em qualquer casa com teto de madeira visível, ou qualquer galpão de estrutura metálica. , e olhe para cima. Loo verá os triângulos, invertidos ou não. A famosas treliças. Que são triângulos piramidais de metal ou madeira, aço ou ferro que, ao se unirem, por solda, prego ou parafuso, tornam a estrutura muito mais forte, distribuindo pela mesma as tensões, até as vigas, colunas e alicerces. Creio que nós humanos quando possuímos esses ossinhos somos felizardos.

Como assim, Ricardim?

Sim amigos, e aqui está a singeleza do gesto de me ofertar o ossinho durante o almoço. É a beleza da metáfora.
Nossa outra haste, soldada em nosso existir, e que conosco ajuda a suportar as tensões do dia a dia, são as pessoas que colocamos na categoria de amigos(as).
Os que assim elegemos.
Todo aquele que com ele queremos dividir sonhos, mesa, corpos, eternidades, e a patola do caranguejo, é a outra haste de nossa fórcula interior.

Você tem hastes que lhe ajudam a suportar as tensões do viver?

Você tem hastes que lhe ajudam a suportara tensões do viver?

Se não tem, quanto azar! A sorte do jogo dos ossinhos não está no ver qual quebra primeiro, como fazíamos na infância para arbitrar as disputas.
A sorte é ter forquilhas existenciais.
Quem já passou por aperreios na vida sabe o quanto verdadeiros amigos são importantes.
Com eles distribuímos a carga de nosso viver. E tudo se torna mais leve.

Engraçado que o mesmo principio da distribuição de tensões entre estruturas é usado na junta de boi.
Aquela trave de madeira, que une os bois da esquerda aos da direita, chamado de jugo, distribui o peso da carga, e as tensões, entre eles.
Não à tôa Jesus nos disse para que depositássemos nosso jugo nele. "Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve." Mateus 11.28-30

Quando um amigo nos admira. Ele solda sua haste na nossa e ficamos mais forte.
Quando um amigo a nós se doa. Ele solda sua haste na nossa e ficamos mais forte.
Quando um amigo ativa o modo empatia para conosco. Quando um amigo nos visita. Quando um amigo nos reconhece. Quando um amigo nos ajuda. Nos apoia. Nos perdoa. Nos incentiva. Nos estimula. Nos ama. Nos repreende. Nos alerta, nos protege, nos encoraja. Nos é generoso. Em todos esses "nos", ele está fundindo em nós, a sua essência e nos tornando melhor. E, como numa amalgama ficamos soldados nele pela força do afeto. E melhores, e mais potentes para enfrentar os tempos presentes.

É uma pena que não estejamos ensinando às nossas crianças a disciplina de cultivar amigos.

Atitude que poeta Vander Lee assim descreve:

"Sabe o que eu queria agora, meu bem...?
Sair chegar lá fora e encontrar alguém
Que não me dissesse nada
Não me perguntasse nada também
Que me oferecesse um colo ou um ombro
Onde eu desaguasse todo desengano
Mas a vida anda louca
As pessoas andam tristes
Meus amigos são amigos de ninguém."

E que o Papa Francisco, na última quinta (5/5) também falou:

"Nos momentos de tristeza, na tribulação da doença, na angústia da perseguição e na desolação do luto, cada um de nós procura uma palavra de consolação. Temos intensa necessidade de alguém que esteja ao nosso lado e sinta compaixão por nós. Experimentamos o que significa estar desorientados, confusos, feridos profundamente como nunca tínhamos pensado acontecer-nos. Incertos, olhamos em redor para ver se encontramos alguém que possa realmente compreender a nossa dor. A mente enche-se de interrogações, mas as respostas não chegam. A razão, sozinha, não é capaz de iluminar o nosso íntimo, compreender a dor que sentimos e dar a resposta que esperamos. Nestes momentos, temos mais necessidade das razões do coração, as únicas capazes de nos fazerem entender o mistério que envolve a nossa solidão."

Na sociedade atual vive-se a solidão conectada. Todos em rede, mas pouco realmente com amigos pra chamar de seus - do tipo ossinho da sorte.

Amigos muito além dos "likes" que algum deles te dá, ou você implora.
Mas, como registrou a música e papa pop, os tempos são de isolamento social, de individualidade narcisística e relacionamentos descartáveis e banais.

Então, caro amiga e amiga, caso tenha um ossinho que possa soldar ao teu outro osso, e que o chame de amigo: parabéns!
Caso não tenha, pense nisso. quem sabe não é a hora de começar a cultivá-los. Sozinho é muito difícil resistir às pressões cotidianas. Precisamos da presença do outro para alçar vôo.

A arte de fazer amigos é a mesma de um jardineiro. Tem que sabe cuidar deles, tal qual com uma plantinha.
Tem que retornar emails. Tem que corresponder bom dias. Tem que guardar confidências. Tem que exercer a escutatória. Tem que retribuir gratidões. Tem que cuidar dele. Tem que admirá-lo, no que ele tem de melhor. E não ficar destacando o que ele lhe falta.

Um ossinho para você.

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