Quase memórias

Quase memórias. By Ricardim
“Crônica é a literatura do olhar, da percepção do mundo, do cotidiano. Cronista é "flaneur" {perabulante}, alguém que sai por aí observando, sentindo e escrevendo.” Do amigo da Flávia.
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Domingo nascedouro de maio. Nele, compro remédio para pressão, é bem cedo da manhã. Na farmácia, escuto um rapaz resmungar sobre preço das fraldas. Tateia entre marcas e tamanhos. Estranha, assombra-se e pede ajuda à atendente. Liga para a esposa, amiga, parente - o que quer que seja, e pergunta-lhe se a que levará está boa. Na calçada, seu amigo o espera, no carro estacionado ao lado do meu, dormindo. No banco traseiro, duas enxadas. A placa é de Planaltina de Goiás, eles vem de longe, devem ir capinar algum lote... ganhar a vida para comprar fraldas. Meu respeito por aquele pai, amigo, parente, o que quer que seja, aumenta em proporção poética.
Chego em casa e escuto um som dolente, diferente dos pássaros de aqui presentes. um som rouco, balançante. Associo a um som que ouvi dias atrás, e era o de um tucano tomando um café da manhã na bananeira da Catarina Catão e Pergentino Araújo.
Armo-me com a câmera, troco a lente, e sigo o som.
Escuto-lhe cada vez mais forte, e um vôo rasante e assustado bate asas sobre mim, deixando-me sem tempo para fazer o close.
Persigo-lhe com a lente, perguntando-me como ele consegue se equilibrar no ar com tamanho bico?
Volto para guardar os pertences de feira livre. Uma galinha caipira, para sábado, um saquinho com moela e outro com sangue. A galinhada será boa.
Faço meu cappuccino, sento-me na cadeira de pneu, à sombra do umbuzeiro, e ligo para meus pais.
Miro o bezerro de louça que crio na calçada. Lembro-me que o pequeno Yasser (8 anos) sentou-se nele, sexta passada, como quem cavalga um carrossel do destino, que na vida dele girou de maneira tão trágica.
Aniversariou no domingo anterior do que escrevo, comemorou com sua mamãe. Na segunda, após deixá-lo na escola, ela sente-se mal. Interna-se num hospital, ele já volta da escola para casa de amiga. Na quarta ela falece. Agora o pequeno Yasser seguirá com sua vó e tios para outra cidade, ainda sem saber que sua mãe não o acompanhará. Mas, desconfio que ele sabe... Nas 24 horas nas quais convivemos não lhe escuto falar de sua Jamile. Crianças sentem.
Olho o bezerro da calçada e lembro de suas pequenas perdas, além da monstruosa que teve: a sua paquerinha da escola, que me falou chamar-se Natália. O seu cachorro, que me falou que destrói tudo. Nem se despedirá de seus brinquedos. Há pressa para procedimentos de partidas, dele e dela.
Na saída, pergunta-me se pode levar o saco de petas do café da manhã. Mordo a língua e a ofereço-lhe com ternura.
O cappuccino esfriou. Mas, a vida não. Mesmo girando em rodas vivas, de carroceis do destino. Que nos dão rasteiras, nos derrubam, mas que seguem sua jornada. E que mais à frente se ajeitam, se harmonizam novamente.
Então, a vida segue seu compasso: com pássaro solitário, de cor bonita, cantando para atrair sua amada.
Enxadas enxadeiam o solo, permitindo que plantinhas cresçam.
O bezerro olha para mim, confidenciando-me que agora se sente melhor, após sua nova pintura de branco e preto feita pelo Jackson e papai.
Lis (seis meses) balbucia alto e escuto-lhe.
De onde escrevo, agora miro a cadeirinha da primeira sopa do João Gabriel (6 anos). Ela olha para mim, largada num quarto dos fundos, daquele que nele largamos que não sabemos porque guardamos. Vejo JG nela. Quanta lambuzeira fez naquela plataforma de sopinhas. Quanto amor da Cristina, ao desafiar a eternidade do tempo, colher a colher, e lhe alimentar. Menino tinhoso pra comer. Nossa Senhora!
Balu toma sol, ao meu lado. Fiel amigo.
Ergo a cadeirinha de seu local, passo-lhe um pano.
Vou dá-la para a pequena vizinha, a Lis.
Pela rede vejo que meus outros filhos estão bem, cada um à sua maneira.
Procuro uma goiaba araçá sem bicho. Escolho as mais verdes.
Passo a vassoura na casa da árvore, lembro-me que o Yasser ficou de vir aqui e brincar nela. Tomara que não demore.
Elevo meu coração e coloco nos braços do Senhor o JG, a Lis, a criança das fraldas, e o pequeno Yasser, que a vida lhes seja fecunda em amor, paz e bênçãos.

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