Cartas ao JG - Cuidado com Posições Inflexíveis, use sem moderação o: Será?


Cuidado com Interpretações de Narrativas Descontextualizadas (Autor Ricardim)
Entendam esse texto como um desabafo de um pai, escrito para seu filho. No caso, o pai sou eu. Temos que ter muito cuidado ao interpretar as narrações da realidade, mesmo que venham de nossos filhos.
Pois, muitas das vezes, não conhecemos nem estivemos no contexto da mesma, e podemos distorcê-las, seja por histórias anteriores vividas , seja por super-proteção, ou até por erro de interpretação mesmo, subindo a "Escada da Inferência" (de Chris Argyris). Segue o texto em forma de carta ao JG (meu quarto filho, o João Gabriel - 7 anos )
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Nessa sexta, fomos para o colégio caçando Pokémons. Um barato tem sido como estamos interagindo com esse joguinho.
No caminho, conversamos também sobre um de teus amigos de escola, e sobre a noite de ontem na qual o nosso cachorro parecia estar engasgado com algo.
Despedi-me de você, dizendo-lhe que mais tarde iria trazer-lhe um presente, para você entregar ao seu amigo.
É que houve um terrível mal-entendido entre vocês. Por extensão, entre nossas famílias e a escola. Tudo começou quando recebi um post de tua mãe dizendo-me que você estava machucado no olho, e que dissera que foi um chute dele.
A partir daí, cegamos para qualquer outra hipótese. E saímos acusando e julgando pessoas. Tínhamos uma história anterior com esse garoto, e bem desagradável, e aquela experiência amplificou nossa ira. Então, pessoal e meu filho JG, cuidado com traumas passados, eles alteraram a visão do presente, quando se repetem, mesmo que em novos palcos, cenas e até personagens.
Como o mal entendido fora desfeito?
Na manhã da quarta, quando íamos na Diretoria da escola, conversar sobre o caso, encontrei a mãe de seu amigo, na recepção.
E ela me abordou bem triste com o acontecido.
E eu a acolhi serenamente. Dei-lhe chance de falar-me sua versão.
Minha esposa ainda não chegara, então tinha tempo para ouvir aquela mãe com calma e respeito.
Sabe pessoal, e JG, a mãe de seu amiguinho estava chocada com a extensão do caso. Ela me disse que o seu filho tinha garantido-lhe que não fizera aquilo. Isto é, que não lhe chutou. Que o tratamento que vem fazendo para TDAH está dando certo, ele está cada vez mais concentrado.
E que ainda, (isso foi que me matou mesmo) é ele quem te defende de amigos mais agressivos, por ter te escolhido como melhor amigo dele. E está sentindo a tua ausência no recreio, por nossa recomendação.
Nessa hora, filho meu, um milagre aconteceu. Daqueles milagres que acontecem quando nos permitimos ao diálogo.
Eu me permiti abrir espaço em meu coração para o benefício da dúvida. Será que você tinha inventado?
O milagre é o benefício da dúvida. Apaguei logo uma postagem que tinha feito. Afinal, aquela mãe me fez misericordioso para com ela.
Logo depois de seu relato, ela foi embora e poco tempo depois tua mãe chegou, e seguimos para a reunião com a Diretoria.
Durante a reunião, surpreendi tua mãe, pedi ao diretor que apurasse melhor a versão da mãe de teu amiguinho; E afirmei categoricamente que não garantia mais, com 100% de certeza, que houvera acontecido um chute.
Sua mãe não entedia nada do que rolava na reunião.
Perguntei ao diretor se eles não tinham mais testemunhas, se não tinham câmeras.
Ele, num lampejo de discernimento, lembrou-se que principalmente nas áreas comuns, como ginásio no qual aconteceu o tal chute. E que talvez, como fazia só 48 horas, talvez as cenas de vídeo ainda pudessem estar estar disponíveis.
Mas, não garantia se tinham pego a cena, ou com a qualidade recomendável.
Insisti. E eles ficaram de nos retornar.
Coloquei em dúvida teu parecer. Mesmo me doendo e ter me sentido fuzilado pela mão-loba.
Ontem, quinta-feira, a Direção me ligou com o laudoa das imagens.
De fato, o que provocou a tua ferida perto do olho foi o pé do seu amigo, como num chute. Mas, não houve um chute proposital, como aquele que chutamos uma bola.
Vocês estavam brincando, correndo pela quadra, quando escorregaram e, acidentalmente, ele voou por cima de você, tendo o pé dele resvalado na sua cabeça, machucando-lhe no olho.
De tua posição, caído no chão, e olhando para cima, era o pé dele quem te chutava. Entende filho? Você não mentiu.
Nós, teus pais, é que falhamos em não explorar melhor a perspectiva da cena.
Fiquei muito aliviado, afinal vocês são amigos. Então, como forma de minimizar nossa falha em acusar o seu amiguinho, comprei um brinquedo para ele, e também presenteei a mãe dele com um de meus livros.
E muitos, mais muito mesmos pedidos de perdão.
Se tivéssemos te perguntado em que condições aconteceu o acidente, você mesmo teria dito que escorregou no chão, após um carrinho que deu no seu amigo, e que ele voara por cima de ti.
Pegamos a palavra "Chute", e dela fizemos tragédia.
Percebe que quando colocamos o contexto, no qual se deu o ocorrido, podem aparecer atenuantes?
Procure a verdade das coisas, observando-as de vários ângulos e perspectivas.
Cuidado com as primeiras impressões. Cuidado para não perceber algo, pelas lentes distorcidas das experiências anteriores, ou as do preconceito.
Foi assim que conosco ocorreu, distorcemos a realidade para que ele coubesse dentro de nosso modelo mental, e crucificamos indevidamente o teu amiguinho.
Este final de semana terei que me chicotear muito para expiar essa culpa.
Nesse mesmo dia, em que lhe escrevo sobre a verdade das coisas, um amigo crucifica o jogo Pokémon Go atribuindo-o a coisa do Demo. Um outro me diz com certeza que ele é um jogo de espionagem da CIA, dos EUA.
E aqui vai o segundo ensinamento sobre a natureza das coisas; cuidado com extremismos, radicalismos e visões carregadas de preconceito da realidade.
Cuidado com fundamentalismos.
Desenvolva o pensamento crítico. Pesquise outras fontes, antes de sair acreditando em tudo. E aí, lembrei-me de te falar para ter cuidado com esses extremos que circulam pelas redes sociais.
Não condene ninguém à fogueira da inquisição, por pensar e agir diferente de você.
As coisas são e não são. Nem tudo é 0 e 1. Ou, sim ou não.
Sabe meu filho, tenha cuidado com radicalizações. Busque a verdade das coisas, sem paixão, sem cegar pelo preconceito.
Tenha autonomia para nadar contra a corrente, permitindo-se elaborar uma nova visão sobre algo que ocorre, e que todo ao teu lado, apaixonadamente, metem o bedelho.
Permita-se pensar diferente, exercitar a liberdade do: “Será?”
Uma das melhores formas de pensar diferente é o estudo. É procurar as fontes, as referências sobre algo. É aprofundar-se num tema, possibilitando uma análise crítica mais ampla.
Quando tudo vira uma guerra de ideologias perde-se então o sentido, o prumo. Perde-se o juízo e a visão ponderada.
Cuidado com as ideologias radicais, sejam políticas, sociais e espirituais. Cuidado com seitas, cuidado com gente que é 100% uma única coisa. Cuidado com verdades sagradas. Cuidado com o corporativismo excludente.
Muitas das vezes um chute, será apenas um chute, sem intenção de chutar, entende filho?
Muitas das vezes um Pokémon será apenas um jogo lúdico, de geo-referenciamento, entende filho?
Cuidado com a visão binária da realidade, daquelas do tipo Sim x Não.
Do tipo: “ Ninguém mais convive com ninguém, pois as redes sociais estão acabando com a interação humana presencial.”
Será?
Quantas pessoas tornaram-se mais próximas exatamente após se conhecerem no mundo virtual. Percebe filho? A natureza está sempre grávida do seu contrário.
Não seja um chato radical de coisa nenhuma, nem dieta, nem crença, nem política, nem cultura, nem opção sexual, nem opiniões. Permita-se ao diferente.
Lembre-se, um chute pode não ter sido um chute, mesmo que chutado foi.
Permita-se ao benefício da dúvida. Possibilitando que seu pensamento crítico a encare de outros ângulos, de outras perspectivas, antes de tomar uma decisão, antes de sair julgando e aprisionando tudo no seu modelo mental.
Cuidado nas crenças arraigadas, que alterarão sua percepção.
Cuidado com as experiências anteriores estarem também alterando sua percepção sobre as de agora.
Abra possibilidade, antes de sair julgando e acusando todo mundo, para que a pessoa que acusa ofereça sua própria versão dos fatos.
Nunca seja radical em nada. Abra-se ao novo.
E não julgue quem não gosta do que tu gosta. Eles são apenas diferentes.
Posso não gostar de música eletrônica, mas não posso classificar quem gosta de “ povo estranho”. Afinal, quem de perto é normal?
De perto, somos estranhos. Com identidades e individualidades próprias, e, muitas das vezes, diferentes umas das outras.
Agora vamos caminhar um pouco para chocarmos um ovo do Pokémon. Temos 2 km pela frente. Bora?
Sim, em tempo, continue sendo uma criança meiga e alegre no colégio.
Esqueça o que lhe falei de sair mordendo e batendo em todo mundo, quando se sentisse ameaçado.
A coordenadora notou você bem agressivo, nesses últimos dias, e perguntou o que estava acontecendo em casa?
Sem graça, respondi que você é um menino obediente. rsrs
Nós sabemos o que aconteceu. Portanto, não mude, seja você mesmo, de natureza mansa e amiga.

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