O Legado do Dadá


Perto das 16hrs, o Dadá entra em minha sala com olhos marejados. Vem se despedir de mim. A cena deixa-nos comovidos, a ambos, e no pleonasmo mesmo, pleonasmo de afetos.
Todos os dias Dadá me trazia algo de sua marmita: um pedaço de cuscuz: feito por ele mesmo.
Umas torradas que a mãe dele mandava na marmita, ou um bolinho de chuva.
Era sagrado, todos os dias entre as 8hrs e 9hrs da manhã, ele adentrava em minha sala. E sempre me trazia algo, para que eu tomasse com meu café da manhã.
Logo em seguida, abria a sua bolsa e botava uma folha, um galho, uma flor que durante seu trajeto até o trabalho achou bonita e queria decorar meu altar natural.
Tenho um altarzinho de folhas, galhos e flores que boto em cima de um ficheiro, compondo um quadro em terceira dimensão da natureza, e me lembrando que não somos máquina.
Você deve estar se perguntando o porquê da emoção do final da tarde.
O motivo foi que o Dadá, após treze anos conosco trabalhando como Office-boy, contratado de uma terceirizada, vai seguir por outras veredas profissionais.
Seguirá seu sonho de trabalhar numa oficina de retífica de motores, pertencente ao seu tio.
Dadá é uma daquelas unanimidades que vez por outra brotam no meio corporativo, quase um patrimônio imaterial da empresa.
Basta dizer-lhes que todos tiveram o maior carinho em pegar-lhe de surpresa para uma festinha de despedida. Do Presidente da Companhia ao Zelador, todos contribuíram para abrilhantar a festinha do Dadá, que tomado de surpresa, não se cabia em si de emoção.
Sentirei muita falta do Dadá. Ele sabia ser ir além de sua função. Dadá sabia surpreender-nos.
Tratava a todos com muita atenção, gentileza e disponibilidade. Por mais carregada que estivesse sua agenda, entre certidões cartoriais para registrar, e documentos para protocolar em órgãos governamentais, ele sempre encontrava um jeito de dizer sim.
Sabe aquele tipo de profissional que quando apresentamos para ele um problema, sentimos empatia nele, e que agora o problema é dele também.
Esse era o Dadá.
Dadá nunca se deixou envergar pelo baixo status de sua função. Muito pelo contrário, ele entendeu que tudo que fazia era conectar pessoas e instituições, através dos documentos que circulava, e que era preciso que circulassem.
Nunca mandei Dadá entregar e ele voltou com o documento. Ele dava um jeito. Se não achava quem eu falava que receberia, ele ia bater no chefe da pessoa, não sem antes, da frente dele, perguntar se poderia deixar com essa outra pessoa. “Claro Dadá”.
Sentirei muita falta dele.
Encontrar pessoas com sentido no trabalho, independentemente de seu cargo ou função, nos motivam ao nosso melhor. Aprendemos com eles.
Semana passada ele chegou todo orgulhoso, tinha conseguido “bater a meta” de redução de despesas da copa. Ele era responsável em comprar os mantimentos solicitados pelas Copeiras, e passou a me dizer, periodicamente, as frutas mais baratas e itens que ele tinha trocado por outros de preço melhor, mantendo a qualidade.
É amigos, um simples Office-boy entendeu os valores mais importantes à competitividade empresarial, nos tempos presentes:
Fazer mais com menos;
Foco no cliente.
Compreensão de seu papel organizacional
Ajuda nas metas corporativas, com o que pode fazer no seu raio de atribuição.
Agilidade
E muita, muita mesmo, inteligência emocional.
Se tivéssemos anunciado a saída do Dadá, teríamos que ter alugado um salão de festas para sua despedida. Mas, o preservamos e foi surpresa. Só um seleto grupo, convidado pela Paulinha, a telefonista, teve acesso a esse momento tão rico. Coube a Dona Estela, nossa copeira, preparar na lousa de vidro uma mensagem bem bonita, com letra caprichada.
No dia de ontem ele saiu visitando pessoas amigas pelos 5 andares da empresa. A cada uma delas deixava um cartaz, impresso por ele mesmo, com um agradecimento: “ao que fizeram por mim.”.
Ele começou a prestar serviços aos 17 anos, se vai agora aos 30, homem feito. Nós não queríamos que ele fosse. Mas, aí de nós se não respeitamos o sonho de quem ousar sair da gaiola da imobilidade corporativa. Ele ousou.
Não sem medo, pesar e até muita perda. No seu abraço e choro soluçante senti tudo isso.
O risco do pulo no vazio. Aquela vozinha interior, que uma parte dela diz: segue.
Enquanto a outra, não menos sonora e forte, diz: fica.
Mas ele seguiu, afinal quer ser mecânico de motores na Retífica de seu Tio.
Outra característica bacana que o Dadá preservou foi a humildade, sem ser submisso. Nem todo mundo que gravita no ecossistema de uma Presidência, de qualquer instituição que seja, preserva a humildade.
Tem gente que porque serve cafezinho na Presidência, não se relaciona legal com quem serve café no térreo. Entende a metáfora? O que já vi de eminências pardas gravitando nesses meios, pessoas que o poder transformou, e para pior.
No Dadá não. O poder do Dadá era o do servir, o de se doar ao seu cliente. Poder de encontrar o sentido no trabalho, e gostar do que se faz. Tem poder maior?
Aliás, o Dadá melhorava o clima organizacional quando chegava. Seu dom era ouvir. Nunca o vi mordendo ninguém, nem rabugindo a vida. Reclamação é uma palavra que não morava no coração dele.
O de fazer um monte de amigos no trabalho, tratando a todos com a mesma distinção e respeito. Afinal, 13 anos não são 13 dias.
Ele me revelava que enfrentava dificuldades pessoais, mas que estava animado a vencê-las. Um dia de cada vez.
Apesar de trabalhar servindo ao “alto-clero”, a Presidência e as Diretorias, ele nunca se portou de maneira arrogante, ou abestada, perante seus pares de categorias também humildes como: vigilantes, recepcionistas, zeladores e copeiras.
Nunca. Dadá tinha a complexidade do humilde, encarnada nele. Sabia entrar e sair em qualquer lugar, do Colegiado da PRESI, ao refeitório dos terceirizados, no qual ele almoçava a marmita que sua mãe mandava todos os dias, e que ele gentilmente sempre dividia algo comigo.
Só pelo prazer de me ver feliz com seu gesto.
Na foto, vieram homenagear Dadá: O Presidente, três Diretores, três Gerentes Executivos, um Gerente de Divisão, os motoristas, a telefonista, o pessoal da copa, limpeza, administrativo, e o professor de Inglês.
Todos abriram uns 20 min em suas agendas, algumas delas extremamente disputadas, para celebrarem o momento e desejarem sucesso na nova carreira profissional.
Isso também foi algo que me tocou profundamente. Muitas das vezes os terceirizados não são tratados como importantes nas Instituições.
São quase invisíveis, sem direito a um discurso do Presidente na sua despedida, aliás, nem despedidas têm. Hoje o discurso do Presidente deveria entrar nos livros de gestão, sobre a importância de um público tão desprezado.
São admitidos e demitidos sem nenhum pudor. Pela alta rotatividade, nessa camada do ecossistema corporativo, são o elo mais frágil do turnover organizacional.
Então, os que vão ficando, são sobreviventes do darwinismo institucional. Geralmente, pessoas muito especiais no mundo do trabalho.
Vai Dadá, segue teu sonho de ascensão na cadeia alimentar profissional.
Segue tenho sonho e nos dê notícias.
Bom é sair assim. De coração grato, expressando gratidão, sendo reconhecido, em paz, e deixando um legado. Mesmo como office-boy.
Precisamos reaprender como o Dadá a fazer, e a nos dar, em nosso melhor. Ser o melhor para o mundo, e não do mundo.

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