Sobre Rafaela e "Geni"


Em agosto de 2012, todas as manchetes incriminavam a atleta Rafaela Silva, por ter sido desclassificada "por um golpe ilegal", nas Olimpíadas de Londres.
O peso da palavra "Ilegal" colou feito lepra na pobre moça. Noutras manchetes, era mais forte ainda: "Golpe Sujo".
Ela foi vítima de toda sorte de moralismo, de uma sociedade pretensamente ética, quando é nos outros.
Ninguém aprofundou-se no que de fato ocorreu. Saíram feito papagaios de pirata pronunciando a frase: "Desclassificada por um golpe ilegal". E a acusaram-na de ser a vergonha da família, do Brasil, entre outras coisas feias, que vou poupar-lhes.
Na rede social fizeram com ela bullying digital. Muitos dos que hoje a aclamam.
Ninguém perguntou: Mas o que ela fez de ilegal? Mas, era ilegal mesmo?
Passou a ser ilegal a partir de quando?
Essa mesma imprensa que hoje a endeusa, a incriminou sem dar direito aos especialistas falarem sobre as regras.
Sem atenuantes. Ninguém falou que João Derly foi bicampeão mundial fazendo catada de perna.
Ninguém falou que a mudança da regra, que tornava essa prática objeto de desclassificação,ainda estava na fase de assimilação pelos atletas, tendo vários outros sendo desclassificados, pelo mesmo motivo, pois que durante toda sua vida de treinos a incorporaram no seu instinto de luta.
Ninguém, em 2012, falou que a regra mudou em 2009, para resgatar o judô clássico, da escola japonesa. E que era uma questão puramente técnica, e não atitudinal, nem de jogo sujo. Esse erro dos judocas está muito mais associado com falta de orientação dos técnicos para mudar o estilo de luta, o que é algo complexo, e falta de atenção por parte dos atletas, além de uma regra cuja aplicação ainda é bem subjetiva. A desclassificação por catada de perna não é um mau exemplo, nem uma trapaça, é um vacilo técnico e uma desatenção.
Mas, precisamos de Genis: "Joga pedra na Geni".
Ela voltou pra casa e teve uma grave depressão. Sua família a apoiou e quase que dava comida em sua boca, para ela não morrer de inanição.
Sua dor maior era ter sido chamada de "Aquela do Golpe Sujo", e ter recebido xingamentos preconceituosos.
Sua dor maior era na honra, na alma. Dor que pobre sente na pele, sendo a única conquista a que tem direito. Em sua dor, ela não queria levar para a sua família a placa de anti-ética.
Essa mesma impressa que hoje a endeusa, a crucificou. Nenhum destaque saiu de sua versão, afinal, em nossa sede de vingança pelo não-outro precisávamos de um Cristo, de um bode-expiatório, vejam abaixo, trecho recuperado de uma entrevista em 2012, antes dela deprimir:
"Como foi o golpe proibido que te eliminou das Olimpíadas?
Eu entrei e senti a adversária nas minhas costas. Senti que ela tinha desequilibrado, por isso eu meti a mão para ajudar. Os três árbitros deram a pontuação, e o de fora disse que não foi e pediu para marcar o hansokumake (punição que elimina o atleta da luta). Achei que o juíz fosse mudar a pontuação. Mas foi quando eu vi o árbitro da mesa conversando com o central e ele fez o gesto da mão, vi que ele estava falando de hansokumake. Olhei para a Rosi (Rosicléia Campos, treinadora) e ninguém estava entendendo nada, nem a adversária. Quando ele tirou o wazari e deu a penalidade, nem ela acreditou." Agosto de 2012, Wordpress
Fica o ensinamento, precisamos ter cuidado com as palavras. As palavras são como roupas, vestem as ideias, dão estrutura às nossas crenças, que atuam diretamente em nossa ação e agir no mundo.
Aprendi que antes de sair feito papagaio de pirata propagando manchetes, calúnias da alcova, que tal ouvir da própria vítima das fofocas, calunias, maledicências e todo tipo de julgamento, a sua versão.
Que tal repensar nossas palavras com as quais julgamos os outros?
Nesses tempos de redes sociais tão violentas, todo mundo com um teclado na mão o faz de arma.
E tome a disparar no outro palavras cruéis, em qualquer um que pense ou aja diferente dele. Acompanhe o rodapé de qualquer reportagem com comentário aberto e verá.
Era só ter substituído, nas manchetes garrafais, o " Golpe Ilegal", ou o "Golpe Sujo" por: "Golpe Proíbido pelas Regras Atuais)
Há uma enorme distancia, em termos de semiótica, entre os termos: ilegal-sujo, para o termo "proibido".
Quantas coisas proibidas fazemos, e nem por isso nos sentimos ilegais, ou sujos?
Coisas que questionamos sua proibicao, e subvertemos a ordem reinante, expressa naquela placa: "Proíbido nadar no Pier 21, (Lago Paranoá-DF)".
Eu nadei. Regra boba. Se os caras que chegavam ali de lancha e jet-ski podiam se banhar, por que eu não podia? Proibições que não vejo sentido, desconsidero-as solenemente. Mesmo correndo riscos.
Já quanto ao uso de um termo "Ilegal", remete à ilegalidade, remete a crise à moral, e não perdoamos. Mesmo que, muitas das vezes,não possamos jogar a primeira pedra, no quesito moralidade.
Já o proibido, ou permitido, remete às leis vigentes, e nesses casos a ética nossa de cada dia, a ética da vida e de nossa consciência, atua como juiz e nos salva, em algumas situações.
Então, vai minha querida Rafaela, passa na cara de todo mundo o que fizeram contigo, não numa mágoa ressentida, mas num banho de cidadania - para que não se repita.
Somos muito rápidos em sair propagando tudo, sem um aprofundamento, sem uma crítica maior, vendendo postagens de orelhas de livro, como verdades verdadeira. Ou posts de todo tipo de rede social, sem um filtro crítico, humano, justo e ético. Sem passar pela peneira da verdade. Sem dimensionar o mal que podemos estar causando.
Vai Rafaela, e vive teu momento de glória, que é o nosso, se liberte de toda injúria, de toda mancha, de toda nódoa de incompreensão que em ti jogamos, em palavras inapropriadas, que remetiam a coisa muito mais grave, do domínio da atitude anti-ética, sem darem a ti o direito de se defender, apresentando suas próprias versões.
Vai Rafaela e torne-se um ícone de todos que um dia também foram julgados de forma cruel, com palavras cruéis, que distorceram o que eles cometeram, projetando aquilo para algo muito mais grave do que de fato ocorrera. Só com a edição do outro, ou o pinçamento de cenas descontextualizadas.
Somos ávidos por sangue, por ecoar tudo que não presta sobre o outro, não nos permitindo a deter o círculo de violência.
Vai Rafaela, foi preciso você vencer para que eu resgatasse tua história, e que ela me educasse - e por extensão a quem dela degusta, para um maior cuidado e respeito no juízo de valor do outro. E pensar duas vezes antes de sair propagando tudo que a gente lê ou ouve sobre ele. Seja de que "fonte séria" bebamos. Permitindo-nos a um "Será?", libertador da autonomia do outro. E, por tabela, de sua dignidade.
Ps. Um dia depois da publicação dessa crônica.
Redenção - A Imprensa, ao se referir ao que aconteceu com ela em 2012, usa termos corretos: "Um movimento errado". "Um golpe irregular, um erro que qualquer judoca pode cometer". Agora sim!
Perdição - No dia seguinte ao Ouro, a atleta de natação do Brasil, Joana Maranhão, é vítima de todo tipo de achincalhamento digital contra sua honra e dignidade. Sofre de violência cultural, racial e até de gênero.  

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